Regente de «Direito Internacional Público Geral e Regional» no ano lectivo de 1990/1991, a Professora Paula Escarameia foi a primeira professora a ser contratada pela Fundação Macau após o dissídio, que culminou no ano lectivo de 1989/1990, com a Faculdade de Direito de Lisboa. No ano lectivo 1991/1992 solicitou a rescisão do seu contrato. A realidade de Macau no âmbito do Direito Internacional é, também, aflorada e em relação ao preceito da Declaração Conjunta referente à aplicação do Direito de Macau até 2049 acentua que tal só se verificará se a RPC nisso tiver um interesse prático dado que «os tratados internacionais são inferiores, na hierarquia das normas chinesas, não só à Constituição, o que é ainda extremamente corrente na maioria dos ordenamentos jurídicos, mas também às declarações políticas».
«Na China os tratados internacionais são inferiores às declarações políticas»
«O Direito» – Leccionou Direito Internacional Público Geral e Regional ao segundo ano do Curso de Direito da Universidade de Macau no ano lectivo de 1990/91. Como perspectiva essa experiência de um ponto de vista académico?
Paula Escarameia – Foi uma experiência muito interessante sobretudo pelo contacto com alunos duma cultura diferente daquelas em que anteriormente tinha estado inserida como professora ou estudante. Foi também muito gratificante leccionar adultos com grande interesse na matéria e com uma experiência de vida que facilitou muito a apreensão prática dos problemas. O conhecimento das circunstâncias sócio-políticas das relações internacionais por muitos dos estudantes, não só dos problemas presentes mas também dos mais recuados no tempo, constituiu um estímulo para mim, permitindo um método dialogado que creio ter sido bem aceite.
Do ponto de vista da investigação e já não propriamente do leccionar das aulas, foi muito bom poder dispor de tempo para ler o que me foi possível sobre Macau e Hong Kong sob o ponto de vista do Direito Internacional, para além de obras gerais sobre o Direito e culturas chinesas.
O aspecto mais negativo, contudo, foi a falta de contactos académicos internacionais no meu ramo, já que, enquanto vivi em Macau, nunca houve quaisquer congressos ou conferências que reunissem internacionalistas especializados num ou noutro campo, tendo que me deslocar a Hong Kong para poder usufruir de alguns desses contactos e ter acesso ao que de mais recente se tinha escrito sobre assuntos vários de Direito Internacional.
«D.» – De um ponto de vista de materiais de apoio, nomeadamente bibliografia, acha que em Macau, nomeadamente a biblioteca do Curso de Direito está bem apetrechada?
P.E.- Parece-me ser consenso geral de que um dos maiores problemas do ensino e investigação do Direito em Macau reside na falta de materiais. Referindo-me particularmente ao Direito Internacional, devo dizer que a melhor colecção de bibliografia que conheci foi no Gabinete de Assuntos Legislativos. A biblioteca da Universidade era muito pobre e, infelizmente, o orçamento para compras de obras era extremamente baixo. Fui várias vezes à biblioteca da Faculdade de Direito da Universidade de Hong Kong, sobretudo se tinha necessidade de fontes documentais primárias, já que era neste campo que Macau era especialmente deficitário, não havendo colecções das publicações das Nações Unidas referentes aos tratados, às resoluções dos órgãos principais ou aos acórdãos do Tribunal Internacional de Justiça.
Como várias vezes tenho repetido, acho que não se pode ter um ensino sério do Direito sem uma boa biblioteca como base. Infelizmente, tanto em Macau como em Portugal ainda domina a ideia de que esta é dispensável e que não é tão necessária como um laboratório o é para os cursos experimentais, o que eu considero errado.
«D.» – No âmbito do Direito Internacional em particular e no campo do Direito em geral como enquadra a realidade de Macau?
P.E. – Macau é muito fascinante precisamente por ser uma situação tão única, tendo apenas paralelos, e só em alguns pontos, com Hong Kong. O próprio título de aquisição, se é que alguma vez existiu, é muito discutível, pelo que torna esse estudo extremamente atractivo e o individualiza de Hong Kong.
Para além disso, trata-se da única ex-colónia portuguesa cuja transição de estatuto internacional foi realizada através dum tratado internacional para o qual, corno em Hong Kong, a população local não foi consultada (pelo menos em termos internacionalmente considerados democráticos, como seja o caso de um referendo baseado em sufrágio directo e universal). Aliás a insistência no exercício da autodeterminação através, por exemplo, de um tal referendo, como prevê a res. 1541 (XV) da Assembleia Geral da ONU para casos de integração noutro estado, tornou-se particularmente difícil de aplicar as estas duas colónias que, por proposta da República Popular da China, aquando da aceitação dos seus representantes em 1971, pelas Nações Unidas, foram retiradas da lista de «territórios não-autónomos», aos quais se aplica o direito de autodeterminação, para passarem a ser considerados pela ONU como parte integrante da China.
Em relação à Declaração Conjunta e ao preceito referente à aplicação do Direito de Macau até 2049, parece-me que tal só se irá verificar se a República Popular da China nisso tiver um interesse prático. Como é sabido, os tratados internacionais, são inferiores, na hierarquia das normas chinesas, não só à Constituição (o que é ainda extremamente corrente na maioria dos ordenamentos jurídicos) mas também às «declarações políticas», pelo que será extremamente fácil a justificação interna do não cumprimento de um tratado internacional ou partes dele, se este se tomar inconveniente.
«D.» – Pouco antes do ano lectivo terminar houve uma conferência na UAO sobre o Curso de Direito e a Transição em que a senhora apresentou uma comunicação. Pode referir, em síntese, as ideias que desenvolveu?
P.E. – Pelo exemplar da revista «O Direito» que tiveram a atenção de me enviar, vi que esta comunicação tinha sido publicada, pelo que penso não ter já actualidade esta resposta.
«D.» – Considera que o reconhecimento do Curso em Portugal é uma consequência natural que ajudará a consolidar este projecto?
P.E. – Parece-me que é da máxima importância o reconhecimento do curso em Portugal, tanto mais que há vários estudantes que tencionam vir a exercer a sua profissão neste país e outros que desconhecem o futuro que os espera, como é bem compreensível atendendo à imprevisibilidade das circunstâncias.
Este reconhecimento terá que ser feito pelo Ministério da Educação (as universidades podem apenas conceder equivalências numa base individual, o que é moroso e, por vezes, imprevisível) mas, para tal, é preciso que estejam preenchidos os requisitos exigidos por lei. Assim, penso que o preenchimento dos mesmos e a actuação concreta para concretizar o dito reconhecimento constituem uma prioridade.
«D.» – No ano lectivo anterior o seu nome surgiu como a primeira contratação de um professor, com doutoramento, tendo em vista a mudança que se aproximava. Foi até ventilada a ideia de, além de docência, poder vir a ocupar outros cargos na estrutura da já então falada Faculdade de Direito de Macau. Tendo a hipótese de assinar um contrato de três anos optou por assinar apenas por um ano. Porquê?
P.E. – Em Portugal sabe-se bastante sobre Macau sob os pontos de vista social e profissional pois há muita gente que visita o território, que tem conhecidos aí ou que já aí residiu durante algum tempo. Penso que devo ser franca em confessar que a imagem que se tem, infelizmente, não é das melhores, sobretudo devido a notícias de corrupção. Assim, resolvi acautelar-me, tanto mais que a Universidade e, sobretudo, o Curso de Direito, tinham gerado muita polémica. Mesmo assim, e contra o conselho de outros professores, resolvi tentar e ver a realidade por mim mesma.
«D.» – Segundo apuramos o Gabinete para os Assuntos Legislativos terá contactado a senhora, como especialista em Direito Internacional, para colaborações pontuais o que aliás foi feito em relação a outros professores. Entretanto no seu caso registaram-se problemas por parte de responsáveis da Fundação Macau. Pode explicitar mais especificamente os problemas que lhe surgiram?
P.E. – Foram precisamente esses problemas a causa próxima da minha decisão de não renovação do contrato. Estou habituada a agir sempre dum modo muito transparente e vertical, numa base de confiança e de respeito pelos que me cercam. Assim, e embora eu não tivesse realizado nunca qualquer trabalho para o dito Gabinete, fui injustamente acusada duma série de acções que nem poderia sequer imaginar. Não desejo entrar em mais pormenores porque este assunto incomodou-me de tal modo que ainda hoje me é muito penoso referi-lo, para além de considerar que se trata de situação de tal modo pessoal que não aproveita ser do conhecimento público. Mas tudo isto são coisas passadas, que é melhor esquecer.
«D.» – Apuramos também que inclusivamente terão surgido alguns problemas colocados por colegas seus em reuniões de professores. Pode especificar?
P.E. – Novamente, desculpar-me-ão, mas penso que se trata de um assunto que não considero correcto que venha a público, pelo que prefiro abster-me de dar mais esclarecimentos sobre ele.
«D.» – O certo é que decidiu solicitar a não renovação do seu contrato. Como encara a «crítica» que alguns alunos manifestaram até no jantar de despedida: apesar de tudo devia ter permanecido a dar aulas. Porque nada muda se desistirmos…
P.E. – Penso que essa crítica tem muita razão de ser, mas a verdade é que as forças me abandonaram. Já não é a primeira vez que essa afirmação é tecida «contra» mim mas também devo dizer que é muito difícil estar sempre só a lutar por causas contra forças muito maiores. A causa fundamental para a minha saída penso que reside no grande respeito que tenho pela Universidade enquanto centro de saber, o que implica o desenvolvimento dum espírito livre, crítico, capaz de constantemente melhorar a situação existente e de sentir apoio a esse desejo permanente de progresso, numa base de respeito pela individualidade de cada um. Já conheci muitas universidades na minha vida, como estudante e professora, e pude constatar que elas só se tornam centros de saber se é dada liberdade às pessoas e espaço a cada um para fazer sugestões. A situação que vivi em Macau, segundo o meu ponto de vista, era algo de muito diferente daquilo que tinha esperança de poder ter visto. Ainda pensei que pudesse alterar alguma coisa. Quando me apercebi de que tal era impossível, vim-me embora.
De tudo, claro, aquilo de que tive mais pena foi de deixar os meus alunos, que me trataram dum modo muito especial, que nunca poderei esquecer, e que me deram o ânimo de que tanto precisava.
«D.» – Em relação a Macau qual a ideia com que parte tanto de um ponto de vista físico: a cidade, o trânsito, a limpeza, o jogo, as relações entre as diferentes comunidades, como no que toca às relações entre as pessoas?
P.E. – Macau é um manancial impressionante de potencialidades, nem todas devidamente aproveitadas. Do ponto de vista físico, considerei desde o primeiro momento e continuo a considerar que é um escândalo o que se passa com a limpeza e esquemas de sanidade em geral. Se acaso a situação não mudou desde que parti, parece-me inconcebível que não haja tratamento de esgotos, controlo adequado de poluição e, sobretudo serviços de remoção do lixo minimamente adequados. Aliás, a situação é tão contraditória com a promoção do turismo em que tanto se tem investido, que nunca percebi como é que não foi considerada como uma das prioridades da administração local.
Outras impressões são muito mais positivas: admirei muito a vitalidade dos negócios, a abundância dos estabelecimentos comerciais e a rapidez e eficiência do trabalho da população de Macau por exemplo.
Um aspecto que penso que muitos portugueses lamentam é a dificuldade de comunicações entre dois sectores da população. Devido à dificuldade da língua tonal, toma-se bastante árduo aprender o cantonense em pouco tempo, pelo que, no meu caso, a comunicação foi quase inexistente com a população chinesa, o que muito lamento, pois me privou de aprender muito sobre os costumes, modos de ver as coisas e cultura em geral, já que só podia comunicar com as pessoas que falassem inglês ou português.
«D.» – A árvore das patacas. Tem algum significado para si?
P.E. – Devo dizer que um dos aspectos que mais me entristece sobre o mundo em que hoje vivemos é o facto de a procura duma situação financeira estável ter assumido uma importância que é, do meu ponto de vista, desmesurada e que foi conseguida à custa de valores que prezo muito mais. Assim, encaro o dinheiro como um mal necessário, sem o qual não posso comprar livros ou telefonar à minha família que vive no estrangeiro. São essas as minhas maiores despesas porque consigo viver muito frugalmente e devo dizer que não me sinto à vontade num estilo de vida mais dispendioso quando tenho sempre presente a fome e as necessidades básicas não satisfeitas de grande parte da população do nosso mundo. É por isso que não entendo a atitude daqueles que vivem para acumular dinheiro e para o usar com as suas próprias pessoas. A moral do nosso século não critica esta atitude e, de certo modo, governos e outras instituições, até a encorajam, mas confio num futuro em que haverá uma repartição mais equitativa e em que as pessoas terão mais prazer em contribuir para um mundo melhor (seja através de donativos directos, do seu trabalho ou por outro meio) do que comprar um casaco de peles ou um automóvel de luxo que não lhes faz falta nenhuma.
Respondendo mais directamente à pergunta, não há dúvida de que Macau é árvore das patacas. Consegue-se, com relativamente pouco trabalho e em pouco tempo, acumular uma pequena fortuna. Segundo o meu ponto de vista, isto não tem nada de mal se não for conseguido à custa da repressão de outros valores e se for utilizado proveitosamente para o bem de todos. Infelizmente, não foi isso que me foi dado a ver em Macau e Hong Kong em termos gerais. O que vi foi muito dinheiro ganho de modos nem sempre muito ortodoxos e gasto de forma nem sempre proveitosa para a sociedade. Pareceu-me triste viver num meio em que há pessoas que se submetem a qualquer situação desde de que possam dela tirar vantagens financeiras.
«D.» – Antes de conhecer Macau já conhecia outros países desta região? Em caso afirmativo como encara o papel desta região, tanto de um ponto de vista político como económico, na comunidade internacional?
P.E. – Antes de ter ido para Macau só conhecia o Japão, onde tinha passado um mês nas casas de vários amigos japoneses, já há alguns anos. Penso, contudo, poder dizer que conheço bem a cultura japonesa pois alguns dos meus amigos mais chegados são nacionais desse país e convivi com eles quando estava a estudar nos Estados Unidos.
Em relação à cultura chinesa, embora nunca tivesse estado antes no território, tinha várias pessoas amigas de Hong Kong, Pequim, Tailândia, Malásia, Taiwan, Coreia, Filipinas, etc, algumas das quais tive muita alegria em rever.
Sob um ponto de vista mais académico, a Faculdade de Direito da Universidade de Harvard tem, à semelhança de muitas outras universidades americanas, um centro de estudos jurídicos orientais, tendo eu assistido a numerosas conferências que me ensinaram muito sobre problemas jurídico-político-económicos dos estados dessa zona do mundo. Tinha visitado, igualmente, no passado, várias universidades e tribunais japoneses.
Quanto à importância da região, não parecem restar dúvidas de que o Japão vai desempenhar um papel (ainda) mais importante na cena mundial, agora que a guerra fria deu origem definitivamente à «guerra económica» e os Estados Unidos se encontram numa recessão que já atinge alguns países da Europa. À estabilização da situação política na Coreia do Sul e o tratado com a Coreia do Norte também são bons augúrios para o desenvolvimento económico mais acelerado, para já não falar nos casos óbvios de Singapura e, se bem que a um nível menor, da Tailândia e de Taiwan. Assim, penso que, com a queda da União Soviética, a necessidade de ajuda por parte da CEE aos países ex-bloco soviético e a recessão nos Estados Unidos, a zona da Ásia Oriental tornar-se-á de importância crucial.
«D.» – Vai regressar a Portugal para continuar a dar aulas?
P.E. – Estou presentemente a leccionar no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, no curso de Relações Internacionais. Dou aulas de «Direito Internacional» ao curso de licenciatura de «Sistema das Nações Unidas» ao curso de mestrado. Tem sido um trabalho muito estimulante até porque o corpo de estudantes é muito interessado, activo e diversificado (no curso de mestrado, por exemplo, há mais estrangeiros do que portugueses) e porque, estando em dedicação exclusiva, tenho podido dedicar o meu tempo a escrever, a investigar e a organizar grupos como foi o caso duma plataforma internacional de juristas por Timor-Leste.
Texto publicado na edição de ‘O Direito’ de Março de 1992.