Em Fevereiro de 1995 António Vitorino — que foi secretário-adjunto para a Administração e Justiça de Macau entre 1986/87 — deslocou-se a Macau, na sequência de uma visita à República Popular da China. Entrevistado por o “O Direito” considera que relativamente ao recurso de amparo “a ideia era construir um sistema mais informal e mais eficaz numa ordem jurídica (…) mais dinâmica e mais activa do que a tradicional ordem jurídica portuguesa”.
“O Direito” – Como secretário-adjunto para a Administração e Justiça de Macau, entre 1986/87, esteve ligado à criação do Curso de Direito de Macau. Promoveu então “As primeiras jornadas sobre o ensino do direito em Macau” com a intenção de reflectir para quê e como criar o Curso de Direito de Macau. Uma das conclusões foi que “havia necessidade e interesse de que o Curso de Direito pudesse ser bilingue e ser dirigido para estudantes tanto de língua portuguesa como de língua chinesa”. Actualmente esta condição não se verifica e terá dado origem, no ano anterior, à criação de dois Cursos de Direito de Macau na China frequentados por bolseiros de Macau.
Nesta altura, apesar de haver quatro assistentes bilingues no Curso de Direito de Macau considera que há, ainda, interesse que o Curso seja bilingue?
António Vitorino – Essa foi uma das questões mais complexas com que tivemos de nos confrontar nas primeiras jornadas para o ensino do Direito em Macau que promovi como Secretário-Adjunto da Administração e Justiça. À época entendeu-se que, numa perspectiva de 12 anos de distância em relação à transferência da Administração, deveria ser dada prioridade à instituição de um curso de Direito bilingue. Ninguém ignorava as dificuldades práticas que a questão colocava e tratou-se de ver em que medida era possível minorar essas dificuldades.
A Administração seguinte entendeu que essas dificuldades eram inultrapassáveis e optou por um modelo diferente de organização do Curso de Direito. Creio que então fazia sentido colocar essa questão. Neste momento, tendo em vista o período que falta em relação à transição, considero que a questão perdeu alguma actualidade e acuidade, mas não deixo de sublinhar que, se nós acreditamos de facto que a Declaração Conjunta é para cumprir e que garante a subsistência do especial modo de vida de Macau durante 50 anos e deste sistema jurídico, acredito que ainda não estão esgotadas as possibilidades de haver destino para um curso de Direito efectivamente bilingue.
“D” – Nestes últimos anos tem-se questionado localmente, com alguma insistência, a competência do Tribunal Constitucional em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade e da legalidade. Diz-se, nomeadamente, que o Estatuto Orgânico, ao contrário do que se passa quanto à fiscalização abstracta, não prevê, expressamente, a competência do Tribunal Constitucional (art.º 41, n.º 1). Vê, nesse facto, um fundamento sério para impedir o recurso para o Tribunal Constitucional?
A. V. – Trata-se de uma opinião jurídica respeitável, mas que, em meu entender, o elemento histórico e o elemento literal do Estatuto Orgânico de Macau não credibiliza, antes pelo contrário, desmente. Se se comparar a redacção do Estatuto Orgânico de 1976 com a do Estatuto Orgânico de 1990, é evidente que a redacção de 1990 é muito mais insistente na ligação do ordenamento jurídico de Macau aos valores, princípios e regras da Constituição da República, designadamente, na parte que diz respeito aos direitos, liberdades e garantias. Há referências expressas a princípios e a regras constitucionais, há referências expressas a direitos, liberdades e garantias consagrados na Constituição da República Portuguesa. Ora, o recurso de constitucionalidade, em sede de fiscalização concreta, é uma forma de tutela dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Nesse sentido tem uma vocação adjectiva, embora muito substantiva também; vocação adjectiva essa que fundamentou que, já à luz da redacção de 1976 do Estatuto Orgânico, o Tribunal Constitucional tenha considerado que a sua Lei Orgânica o habilitava a exercer a fiscalização concreta em todo o espaço judiciário português. Creio que esse argumento de ordem jurisprudencial só saiu reforçado com a alteração do Estatuto Orgânico em 1990.
“D” – Por outro lado a Lei Orgânica do Tribunal Constitucional não foi mandada publicar no Boletim Oficial. Acha que tal facto é relevante?
A. V. – À luz da redacção do Estatuto Orgânico é, de certeza absoluta, relevante em relação ao Território. No entanto, creio que se sobrepõe à lógica do Estatuto Orgânico a regra geral da Constituição da República que, entende a lei do Tribunal Constitucional como uma Lei Orgânica onde se prevê expressamente que o Tribunal Constitucional tem jurisdição em todo o espaço judiciário de matriz portuguesa. Creio que, conjugando o preceito do art. 226.º da Constituição com o preceito da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional sobre esta matéria resulta que, conjugadamente, esses dois preceitos se sobrepõem à ausência de publicação da lei em concreto no Território e, portanto, ao cumprimento do preceito do Estatuto Orgânico que prevê que todas as leis, para vigorarem no Território, têm que cá ser publicadas.
“D” – Relativamente ao recurso de amparo, porque é que a Assembleia da República não consagrou o instituto na ordem jurídica portuguesa e o consagrou na ordem jurídica de Macau?
A. V. – Acho que é uma experiência muito motivante e inovatória no ordenamento jurídico português. Posso até mesmo acrescentar, sem violar nenhum dever de sigilo, que a ideia surgiu do Senhor Procurador-Geral da República, Dr. Cunha Rodrigues, que me pareceu, na altura, uma sugestão excelente tendo em vista criar um novo mecanismo de garantia e de tutela dos direitos individuais dos cidadãos que fosse mais dinâmico, mais activo e subtraído a algum cepticismo formalista que, normalmente, os mecanismos de tutela dos direitos têm num direito de raiz continental como Portugal. A ideia era construir um sistema mais informal e mais eficaz numa ordem jurídica que é também ela, ou que deve ser em função do espaço económico e político onde se insere, uma ordem jurídica mais dinâmica e mais activa do que a tradicional ordem jurídica portuguesa.
“D” – Portugal negociou com a CEE o Segundo Quadro Comunitário de Apoio e Macau não foi tido em conta como, eventual, destinatário desse apoio. Portugal receberá até ao final do século apoios na ordem de 1,9 milhões de contos por dia para modernizar, nomeadamente, as estruturas produtivas, educação, qualificação de recursos humanos, qualidade de vida e redução das assimetrias regionais. Sem ter em conta as verbas do Fundo de Coesão, as regiões autónomas dos Açores e da Madeira receberão, respectivamente, 4% e 3,6% do investimento. Per capita os Açores e no Alentejo receberão os investimentos mais elevados.
Será possível, uma vez que Macau se encontra sob Administração portuguesa, que o Território seja destinatário do referido investimento?
A V. – As verbas comunitárias são verbas destinadas a programas, e esses programas têm sobretudo como vocação o espaço europeu. Não há, contudo, objecções a que Macau seja incluída num conjunto de programas específicos da comunidade, não para Portugal, mas para relações com países de outras zonas do mundo, designadamente da Ásia, como é o caso de Macau. Aliás, creio que há um programa em matéria de apoio à tradução jurídica que já foi aprovado.
“D” – Tem conhecimento da evolução da cooperação nesse domínio?
A. V. – Conhecimento directo não tenho. Falaram-me no programa aqui Macau e estou certo que as autoridades não deixarão passar essa oportunidade.
“D” – Na década de sessenta o sistema português, quanto à aquisição originária da nacionalidade, dava prevalência ao critério do local de nascimento em detrimento da consanguinidade. Na década de 80 com a extinção do império colonial português, a alteração da status quo de Macau e o refluxo da emigração, a nacionalidade adquire uma dimensão de direito subjectivo público, nomeadamente, com a Constituição da República de 1976: o relevo da vontade. O facto de ter nascido em território português, ou então ser filho de pais portugueses não implica que se adquira originariamente a nacionalidade portuguesa a menos que haja uma declaração expressa nesse sentido.
Por outro lado, a concepção da nacionalidade como um direito subjectivo público implica que, ao contrário do que acontecia na década de sessenta, em caso algum pode haver perda da nacionalidade portuguesa por iniciativa do Estado. O sistema da nacionalidade chinês não prevê a perda da nacionalidade por acto unilateral do Estado, mas admite a perda de direitos políticos abrangendo, assim, a nacionalidade. Para além de evitar situações de apatridia o sistema português, ao contrário do chinês, admite a dupla nacionalidade.
Como harmonizar esta evolução com a concepção de nacionalidade da R.P.C?
A. V. – Bem essa questão é uma questão muito complexa sob o ponto de vista político e sob o ponto de vista técnico. Que não cabe no espaço de uma entrevista e, portanto, não vou habilitar-me sequer a dar uma resposta integral. O que eu vou dizer é que todas as Convenções Internacionais, a tradição histórica e jurídica portuguesa, a própria lógica do reconhecimento da dupla nacionalidade por parte do Estado português apontam todas no sentido de que Portugal não pode tergiversar, um milímetro que seja, em matéria da nacionalidade daqueles que neste momento detêm a nacionalidade portuguesa. E, portanto, há uma garantia formal do Estado português dada na Declaração Conjunta de estabilidade da nacionalidade dos cidadãos portugueses de Macau. Independentemente da sua etnia e independentemente do título através do qual adquiriram essa nacionalidade, que mudou ao longo do tempo, primeiro um critério de ius soli e depois um critério ius sanguinis. Os Memorandos anexos à Declaração Conjunta constituem um primeiro quadro de referência da resolução do problema da nacionalidade, que eu creio que encerram o essencial da solução da questão, na medida em que têm zonas de convergência que há que potenciar e têm algumas zonas de divergência que resultam da diferente natureza da Lei da Nacionalidade Chinesa e da Lei da Nacionalidade Portuguesa. Que, em meu entender, devem ser resolvidos através de arranjos práticos, de modalidades concretas de implementação desses Memorandos anexos à Declaração Conjunta, em termos de reforçar a confiança das populações no Território. Desde que haja confiança mútua entre Portugal e a R.P.C., e indicações claras à populações do Território acerca do complexo de direitos e deveres que cada estatuto em Macau pressupõe eu creio que será possível desdramatizar a questão da nacionalidade e será possível incutir às pessoas do Território confiança àcerca do seu próprio estatuto pessoal futuro.
“D” – Prevê-se, para breve, a realização em Macau de diversos julgamentos por alegados crimes de abuso de liberdade de imprensa. Em alguns desses processos está constituído como assistente o Presidente do Tribunal Superior de Justiça e do Conselho Judiciário de Macau. Atendendo ao sistema que preside às renovações das comissões de serviço dos magistrados em exercício nos tribunais de Macau, acha que está assegurada a isenção e a independência destes julgamentos? O que sugere para obviar a este tipo de situações?
A. V. – Não vou emitir nenhuma opinião em concreto sobre situações que desconheço e desconheço completamente o contexto em que a questão se coloca, mas devo dizer que não basta a invocação desses factos para poder retirar conclusões acerca da independência ou não independência do julgamento de juízes. Em Portugal também é perfeitamente possível que um membro do Conselho Superior da Magistratura apresente uma queixa crime contra um jornalista em tribunal e que isso seja julgado, inevitavelmente, por um juiz cuja progressão na carreira está submetida a decisões do Conselho Superior da Magistratura onde tem assento esse membro do Conselho Superior da Magistratura que é queixoso e se pode constituir como assistente. Não se impute ao sistema nada que não possa efectivamente ser imputado ao sistema. Eu creio que o sistema que foi definido para Macau na Declaração Conjunta e depois de alguma forma vertido na Lei de Bases da Organização Judiciária é um sistema experimental. Naturalmente terá que ser aperfeiçoado em função da experiência e da prática, mas não vamos criar aqui uma imagem de descredibilização do sistema em função de eventuais vícios de procedimento apenas de natureza subjectiva.
Entrevista publicada na edição de “O Direito” de Junho de 1995.