Entrevistas

Controlo da legalidade das leis de Macau após 1999

Foi, em Macau, secretário-adjunto para a Administração e Justiça entre 1986/87 e é actualmente membro do Tribunal Constitucional. António Vitorino continua, assim, ligado a Macau e a acompanhar os rápidos desenvolvimentos a nível da autonomia judiciária do Território: princípio consagrado na 2.ª revisão constitucional de que foi um dos protagonistas.

Esta autonomia levará à criação, no Território, de um Tribunal Superior de Justiça e em matéria de fiscalização da legalidade dos actos legislativos em vigor em Macau após 1999, António Vitorino, entrevistado por «O Direito», considera:

«Defendo o controlo da conformidade com a Lei Básica através dos tribunais locais»

 

«O Direito» — O senhor esteve em Macau como secretário-adjunto para a Administração e Justiça, acompanhando a fase inicial e de arranque do Curso de Direito. Quais são as suas espectativas em relação ao Curso de Direito em Macau e ao seu futuro?

vitorinoAntónio Vitorino — Quando fui secretário-adjunto para a Administração e Justiça, entre 1986/87, promovi, em Outubro de 1987, «As primeiras jornadas sobre o ensino do Direito em Macau». Participadas por professores catedráticos, pelo Procurador-Geral da República, o director do Centro de Estudos Judiciários — actualmente ministro da Justiça — e pessoas vindas do Instituto Nacional de Administração. O objectivo era, fundamentalmente, reflectir em conjunto para quê e como criar o Curso de Direito de Macau. Aí ficaram sublinhadas três grandes conclusões que são as que ainda hoje mais se fazem sentir sobre o Curso:

1.ª — Tornava-se necessário formar pessoas no Direito de Macau e nesse sentido criar uma instituição universitária que estivesse vocacionada para o estudo do Direito de Macau, que é um Direito que embora tendo uma base portuguesa, em função da evolução política e da Declaração Conjunta Luso-Chinesa sobre o futuro de Macau, tenderia, cada vez mais, a ser um direito localizado. O que justificava a existência de uma instituição universitária vocacionada para o seu estudo e para a elaboração doutrinária;

2.ª — Um curso com forte vocação profissionalizante, porque os desafios da Declaração Conjunta e do período de transição apontavam para a necessidade de juristas para os quadros da Administração e dos tribunais com formação jurídica de base;

3.ª — Havia necessidade e interesse de que o ensino do Direito pudesse ser bilingue e ser dirigido para estudantes tanto de língua portuguesa como de língua chinesa.

Creio que as conclusões destas jornadas, no já longínquo mês de Outubro de 1987, continuam válidas e a condicionarem muito a existência e evolução do Curso de Direito em Macau.

«D.» — O senhor foi secretário-adjunto para a Justiça de Macau. O cargo foi, posteriormente, ocupado pelo Dr. José António Barreiros e pelo Dr. Magalhães e Silva tendo ambos pedido exoneração. Acha que é muito difícil gerir a pasta da Justiça?

A.V. — Acho que no meu tempo já não era, de facto, uma tarefa fácil. Com o evoluir do tempo a situação tem-se tornado mais difícil, porque gerir a área da Justiça é acima de tudo uma luta contra o tempo. E o tempo corre enexoravelmente. Mas acho que é também um desafio aliciante que passa por adaptar a legislação em vigor em Macau às condições concretas do Território, que passa por formar agentes da vida jurídica do Território no futuro e que passa por propiciar a criação de um sistema de administração da Justiça centrado e localizado. E penso que a consciência aguda destas prioridades esteve na base do modesto contributo que dei à 2.ª revisão constitucional onde ficou consagrado o principio da autonomia judiciária do Território e posteriormente no âmbito das minhas funções no Grupo de Ligação Conjunto Luso Chinês sobre Macau, e no âmbito da revisão do Estatuto Orgânico de Macau que criou a Lei de Bases de organização judiciária que se espera seja aprovada dentro em breve pela Assembleia da República.

«D.» — Voltando ao Estatuto Orgânico de Macau e aos direitos liberdades e garantias que nele encontram eco através de remissão para a Constituição portuguesa. Mas tal não acontecerá após 1999, porque é inconcebível invocar princípios consagrados numa Constituição política que deixará de se aplicar. Acha que o Território de Macau deve sentir a necessidade de, à semelhança do que se está preparando em Hong Kong, elaborar um «Bill of Rights» recolhendo e sistematizando os princípios e direitos fundamentais para que possam vigorar após 1999?

A.V. — O Território de Macau tem o seu «Bill of Rights» na Constituição da República Portuguesa (CRP) 1976, na parte primeira, nos títulos referentes aos direitos, liberdades e garantias, mas naturalmente depois de 1999, a CRP (1976) deixará de vigorar em Macau. Mas nas negociações da Declaração Conjunta houve o cuidado de recolher no texto da própria Declaração Conjunta o enunciado dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos que serão respeitados e garantidos na futura Região Administrativa Especial de Macau. O que significa que a Lei Básica da futura Região Administrativa Especial de Macau terá forçosamente que conter o elenco de direitos, liberdades e garantias que serão respeitados após 1999 e terá que garantir esse respeito por parte das autoridades da Região Administrativa Especial de Macau.

Portanto, eu creio que até 1999 a CRP (1976) é absolutamente taxativa na garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos. Após 1999 esses direitos terão que ser garantidos pela Lei Básica e pela legislação avulsa sobre direitos fundamentais: a adaptação à realidade do Território do Código Civil, Penal, das Leis Processuais Civis e Criminais, das Sociedades, Propriedade, Direitos de Autor e Liberdade de Expressão e de Imprensa.

«D.» — Defende uma transposição taxativa dos actuais direitos fundamentais na futura Lei Básica?

A.V. — Parece-me inevitável que a futura Lei Básica tenha um elenco de direitos fundamentais porque é isso que corresponde à Declaração Conjunta e acho que a Lei Básica terá as características de uma mini-constituição da futura Região Administrativa Especial de Macau. Acho que não deve regular exaustivamente todos os direitos fundamentais, mas deve ir tão longe quanto possível para garantir os direitos dos cidadãos e reforçar a confiança da população do Território no futuro.

Manutenção do modelo político do EOM

«D.» — A Lei Básica para a futura Região Administrativa Especial de Macau está actualmente em fase de elaboração. A actual estrutura de organização do poder político que se desenha através do Estatuto Orgânico de Macau é ainda uma organização muito colonial. Qual acha que deve ser a futura organização do poder político da futura Região Administrativa Especial de Macau? Ainda uma cópia da actual formação do EOM?

A.V. — O Estatuto Orgânico de Macau (EOM) só algo injustamente pode ser acusado de ser muito colonial, porque desde 1976 garante, por exemplo, que 2/3 dos deputados da Assembleia Legislativa sejam eleitos: mais de 1/3 por sufrágio directo e mais de 1/3 por sufrágio indirecto. Isto só recentemente foi passado para um texto legislativo em Hong Kong e ainda nem foi experimentado.

O modelo do Estatuto Orgânico de Macau é de equilíbrio entre o Governador e a Assembleia Legislativa, um modelo, no fundo, inspirado no sistema tradicional de organização do poder político em Portugal. Porque em Portugal, na Constituição de 1933 o Governo tinha poderes legislativos e o Parlamento tinha também, em termos formais, poderes legislativos. Mas o Governo nessa altura tinha um peso predominante e o Parlamento era uma instituição decorativa. Porém nos termos da letra da Constituição quer o Governo quer a Assembleia Nacional tinham poderes legislativos e havia até um equilíbrio de poderes legislativos entre os dois órgãos em termos formais. A CRP (1976) manteve esse modelo. O Governo tem poderes legislativos e a Assembleia da República também e partilham o exercício da função legislativa.

Ora em Macau existe também um modelo de inspiração portuguesa porque o Governador e a Assembleia Legislativa têm poderes legislativos e ambos partilham o exercício desses poderes legislativos. E eu creio que na revisão do Estatuto Orgânico de 1990, houve competências legislativas que eram da Assembleia da República que foram transferidas em benefício do Território e que beneficiaram, sobretudo, a Assembleia Legislativa de Macau, mais até do que o Governador.

Agora, o que será o modelo político da futura Região Administrativa Especial de Macau em termos de organização do poder político é um debate sempre em aberto: o sistema deve ser predominantemente parlamentar ou presidencial, ou dando prevalência à função executiva? Penso que a tendência será a de manter o modelo do EOM. Um certo equilíbrio de poderes entre o Governador e a Assembleia Legislativa em que a Assembleia Legislativa será o órgão representativo da população do Território com a função primordial de representar os seus anseios, aspirações e a pluralidade das populações do Território e em que o Governador, nos termos da Declaração Conjunta, sendo um habitante local será contudo escolhido pelo Governo Central da República Popular da China e terá, portanto, funções de representação das autoridades centrais e junto das autoridades centrais da República Popular da China.

«D.» — Acha que a futura Assembleia Legislativa devia ser totalmente eleita por sufrágio directo, universal e secreto?

A.V. — Creio que a Declaração Conjunta deixa em aberto várias possibilidades: uma Assembleia Legislativa eleita por sufrágio directo, ou constituída por deputados eleitos por sufrágio directo e indirecto. Tendo em conta a Lei Básica de Hong Kong e o modelo resultante verificamos que nem toda a Assembleia Legislativa da futura Região Administrativa Especial de Hong Kong será objecto de eleição por sufrágio directo e universal e será previsível que em Macau nem toda a Assembleia Legislativa venha a ser objecto de eleição por sufrágio directo e universal. O que é importante ter em linha de conta, o ponto de partida, é que actualmente 1/3 da Assembleia Legislativa de Macau é eleita por sufrágio directo e universal.

«D.» — Em Macau vai ser criado um tribunal superior, o futuro Tribunal Superior de Macau. Esse tribunal superior vai, após 1999, receber competências de fiscalização da constitucionalidade, actualmente reservadas ao Tribunal Constitucional em Portugal?

A.V. — Acho que há, essencialmente, dois tipos de competências: o controlo da constitucionalidade para verificar a conformidade das leis de Macau à CRP (1976) que se aplica a Macau e competências para o controlo da legalidade para verificar a conformidade das leis de Macau ao EOM.

É óbvio que a CRP (1976), por natureza, deixará de vigorar em Macau em 1999, portanto o controlo da constitucionalidade nunca passará para além de 1999. A Constituição da República Popular da China só num número muito limitado de casos é que se aplicará a Macau — política externa, defesa nacional e, eventualmente, certos aspectos de relacionamento entre as autoridades centrais e as autoridades da futura Região Administrativa Especial de Macau — e a tradição no sistema chinês em relação à fiscalização da constitucionalidade é de controlo concentrado a cargo da Assembleia Política. Portanto, provavelmente não haverá uma continuidade directa a cargo de um tribunal quanto ao controlo da constitucionalidade.

Defendo que nada impede, antes pelo contrário, que o controlo da legalidade, isto é, o controlo da conformidade dos actos legislativos em vigor em Macau em relação ao EOM, possa prosseguir para além de 1999 através de um controlo a cargo dos tribunais, incluindo o Tribunal Superior de Justiça de Macau, da conformidade das leis vigentes em Macau em relação à futura Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau.

Fiscalização sucessiva da constitucionalidade

«D.» — Acha que a fiscalização sucessiva e abstracta da constitucionalidade e legalidade das normas produzidas em Macau pode, para além dos órgãos de governo próprio do Território, também ser desencadeada pelos órgãos de soberania da República?

A.V. — Penso que é uma questão muito interessante porque não tenho dúvidas que as normas dimanadas dos órgãos de soberania da República para serem aplicadas em Macau podem ser fiscalizadas por iniciativa dos órgãos de soberania da República: Presidente da República, Primeiro-Ministro, Presidente da Assembleia da República, Provedor de Justiça, Procurador-Geral Adjunto e um 1/10 dos deputados da Assembleia da República, por exemplo, quanto às normas dimanadas dos órgãos de governo próprio do Território, o Governador e a Assembleia Legislativa, aparentemente, a única previsão do Estatuto Orgânico é a de que a fiscalização sucessiva só pode ser pedida para os diplomas do Governador pela Assembleia Legislativa e para os diplomas da Assembleia Legislativa pelo Governador.

Admito, contudo, que aplicando-se a parte 5.ª da Constituição da República Portuguesa (1976) a Macau, sobre as garantias e controlo da constitucionalidade, que quando estiver em causa a violação da CRP, se entenda que as mesmas entidades que no artigo da CRP podem suscitar a fiscalização sucessiva das leis da República junto do Tribunal Constitucional o possam fazer, através de uma interpretação extensiva, em relação às leis dimanadas pelos órgãos de governo próprio do Território de Macau.

«D.» — Ainda em relação à fiscalização sucessiva: como sabe, em termos de relacionamento institucional entre os dois órgãos de governo próprio do Território existe um certo «horror ao conflito». Se o Governador suscitar a fiscalização a Assembleia Legislativa poderá encarar este gesto como o início de uma crise institucional de confiança ou vice versa. A questão de «perda de face». O evitar destas situações não poderá originar que na prática, esse instrumento de fiscalização venha a ser inútil?

A.V. — Percebo que sob esse ponto de vista possa haver várias interpretações políticas sobre o significado de uma iniciativa desse género. Mas é um acto normal em democracia que tem que ser desdramatizado e tornado comum e banal até. É o exercício de uma competência legal e constitucional e não forçosamente um acto de desautorização. Até porque ninguém sabe qual a decisão do Tribunal Constitucional: poder-se-á pedir a fiscalização e o Tribunal Constitucional não se pronunciar pela inconstitucionalidade.

Creio que essa situação existe em função dos dados da vida política concreta do Território e reconheço que têm alguma razão na observação que fazem, mas acho que a experiência vai demonstrar, penso eu, que o desenvolvimento da maturidade democrática permite encarar esse tipo de fiscalização como um acto normal em democracia.

«D.» — O artigo 75.º do Estatuto Orgânico de Macau refere-se à aquisição da plenitude e exclusividade de jurisdição dos tribunais de Macau. Na sua conferência defende que esta transferência deve ser faseada e gradual. Porquê?

A.V. — Porque penso que com a aprovação da Lei de Bases de organização judiciária ficam criadas as condições para instituir um sistema judiciário próprio do Território autocentrado e portanto para criar o tribunal de recursos, o Tribunal Superior de Justiça. Mas levará tempo até que esse tribunal possa ser considerado um tribunal rodado, no sentido de estar adaptado às realidades do Território, com pessoas locais capazes de integrarem esse tribunal. Portanto, entendo que haverá um desenvolvimento natural do sistema judiciário que irá determinar, a cada momento, que competências ainda ficam nos tribunais superiores da República e quais as que devem ser transferidas para o Território: designadamente as competências que permanecem no âmbito do Supremo Tribunal Administrativo quanto ao conhecimento dos recursos contenciosos dos actos administrativos do Governador e dos secretários-adjuntos, as competências em matéria civil e criminal do Supremo Tribunal de Justiça e as matérias de controlo da constitucionalidade e legalidade a cargo do Tribunal Constitucional.

«D.» — o Estatuto Orgânico de Macau prevê a figura de ratificação por parte da Assembleia Legislativa de actos legislativos dimanados pelo Governador. Acha que prevê duas ou três formas de ratificação: a recusa, a emenda e a confirmação?

A.V. — Acho que talvez existam até quatro formas. Pode haver a confirmação expressa e a confirmação tácita, porque com o decurso do tempo se a ratificação não for concedida expressamente ou não for recusada é considerada como tacitamente dada. Pode, portanto, haver emendas, confirmação simples, a recusa e a revogação. Creio que existem as quatro formas no Estatuto Orgânico de Macau.

«D.» — Caso o Governador legisle em matérias da competência reservada da Assembleia Legislativa sem a necessária autorização legislativa, acha que a Assembleia Legislativa pode, através de ratificação, validar o acto?

A.V. — É um tema muito controverso sobre o qual há diferentes entendimentos, mesmo na República Portuguesa, se a ratificação pela Assembleia Legislativa pode convalidar, ou não, uma inconstitucionalidade orgânica, ou uma ilegalidade orgânica, isto é, um vicio quanto à natureza do órgão.

A doutrina divide-se sobre esta matéria na República e é natural que também se vá dividir em relação a Macau.

«D.» — Não quer adiantar a sua opinião pessoal?

A.V. — Preferia neste momento não adiantar porque poderei vir a estar a curto prazo confrontado com a necessidade de o Tribunal Constitucional decidir sobre uma questão desse género em relação a Macau. Um dos recursos pendentes aborda exactamente essa temática. Não queria antecipar a pronúncia.

Recursos para o Tribunal Constitucional

«D.» — Na sua conferência referiu que havia relativamente poucos recursos em relação a Macau para o Tribunal Constitucional, mas manifestou também o desejo de que houvesse mais. Espera de facto que haja condições para que aumente o número de recursos? Quais as condições que deveriam mudar em Macau para que aumentasse o número de recursos?

A.V. — Sensibilidade dos protagonistas do Direito: advogados, juízes, magistrados do Ministério Público à questão da Constituição e à sua possibilidade de aplicação a Macau e às competências acrescidas que foram atribuídas ao Tribunal Constitucional, quer sobre a inconstitucionalidade quer sobre matérias de legalidade na sequência da revisão do Estatuto Orgânico de Macau.

«D.» — Classifica uma violação ao Estatuto Orgânico de ilegalidade qualificada. Porque opta por esse adjectivo?

A.V. — Penso que qualificar como ilegalidade é o próprio Estatuto Orgânico que aponta nesse sentido quando fala em inconstitucionalidade por violação de regra constitucional e quando fala de ilegalidade por violação de regras estatutárias.

Chamo-lhe qualificada para a distinguir da ilegalidade dos actos regulamentares e outros demais actos normativos de natureza administrativa que podem violar leis e, nesse sentido, serão ilegais. Neste caso trata-se de um caso de ilegalidade qualificada que tem um paralelo com outros tipos de ilegalidade na República portuguesa. Por exemplo:

— uma lei comum que viola o que a CRP passou a chamar depois da revisão de 1989 de lei com valor reforçado, uma lei orgânica. É uma ilegalidade qualificada em sentido amplo. É uma lei que viola outra lei que tem valor superior sendo por isso a primeira ilegal, porque a segunda tem valor superior;

— um decreto-lei de autorização legislativa que viola a respectiva lei de autorização legislativa. Se aí não se vir, desde logo, uma inconstitucionalidade indirecta, que se pode ver por violação do artigo 168.º da CRP, é um caso de ilegalidade qualificada;

— leis gerais da República que violem os estatutos político-administrativos das regiões autónomas dos Açores e Madeira. São leis que violam uma lei com valor reforçado (os estatutos político-administrativos das regiões autónomas). É uma ilegalidade qualificada;

Daí a razão porque eu classifiquei uma violação ao Estatuto Orgânico de Macau como ilegalidade qualificada: para distinguir esses casos de ilegalidade, cujo controlo cabe ao Tribunal Constitucional, dos casos de ilegalidade das leis comuns por parte dos regulamentos que são do conhecimento dos tribunais administrativos.

«D.» — Na sua conferência afirma que o Estatuto Orgânico é lei constitucional. Qual o seu alcance?

A.V. — É uma questão que não merecia qualquer dúvida à luz da Lei n.º 1/76. O próprio artigo 296.º da redacção originária da Constituição da República Portuguesa dizia que permaneciam em vigor com valor constitucional as leis que estavam expressamente ressalvadas.

Essa ressalva subsiste ainda em 1989. A diferença que existe é que a Lei n.º 1/76 foi integralmente substituída, em 1990, pela Lei 13/90 da revisão do Estatuto Orgânico de Macau. O Estatuto Orgânico de Macau foi objecto de uma nova publicação na integra apesar de não terem sido revistos todos os artigos. Eu pessoalmente creio que continua a haver na intenção do legislador da revisão constitucional a ideia de que o Estatuto Orgânico de Macau é uma lei, no mínimo, com valor materialmente constitucional. Funciona como a constituição do Território de Macau.

«D.» — Classifica o Estatuto Orgânico como uma lei reforçada?

A.V. — Sim, é sem dúvida uma lei reforçada. É no mínimo uma lei reforçada. Tem valor de acto parâmetro em relação aos actos legislativos do Território; que se têm de conformar ao Estatuto Orgânico de Macau.

«D.» — É um parâmetro pela negativa ou positiva?

A.V. — Depende das matérias. Se for matéria de direitos, liberdades e garantias será um parâmetro pela negativa na medida em que remete para a aplicação da Constituição da República Portuguesa.

Em relação a matérias organizatórias e de autonomia administrativa e financeira é pela positiva claro.

O poder de revisão da futura Lei Básica

«D.» — A Lei Básica de Hong Kong tem sido considerada uma boa hipótese de trabalho para Macau. Em matéria de revisão não há uma iniciativa exclusiva da região. A iniciativa cabe ao Conselho Permanente do Congresso Nacional Popular, ao Conselho de Estado e à Região Administrativa de Hong Kong. Se este vier a ser o modelo adoptado para Macau ficarão salvaguardadas as garantias de autonomia do Território?

A.V. — A Declaração Conjunta atribui à Assembleia Nacional Popular da República Popular da China a competência para aprovar a Lei Básica e é natural que quem aprova, emende. Portanto esta parte da solução não me surpreende. Quanto à metodologia da revisão, aí há que ponderar sempre dois valores: o primeiro é a necessidade de adaptação dos textos legislativos às realidades concretas da vida e aos desejos e aspirações das populações, que vão mudando; outro valor é a estabilidade que um texto como este deve garantir a uma comunidade, isto é, a sua permanência durante um período de tempo significativo de maneira a que as pessoas saibam quais são as regras do jogo, quais são as regras da vida colectiva e o que podem contar de forma a não se alterar as regras do jogo todos os dias.

Entre um e outro valor o equilíbrio é sempre difícil. Essa é uma fórmula tentada de equilíbrio. Há outras possíveis. O sistema da Constituição da República Portuguesa é diferente: só pode ser revista de cinco em cinco anos por maioria de 2/3 dos deputados, ou então a qualquer momento desde que votem nesse sentido 4/5 dos deputados. Enfim, são soluções diferentes que visam conciliar aqueles dois objectivos.

«D.» — Mas actualmente o Estatuto Orgânico de Macau é rígido no processo de alteração. A iniciativa é exclusiva de Macau através do Governador ou da Assembleia Legislativa. Tomada a iniciativa se a Assembleia da República Portuguesa quiser introduzir alterações é necessário o acordo do órgão que fez a proposta.

A.V. — Digamos que o Estatuto Orgânico de Macau é mais generoso no que toca à sua revisão do que a Lei Básica de Hong Kong. Nada significa, contudo, que a Lei Básica de Macau tenha de seguir exactamente o mesmo modelo.

«D.» — O que acha da Declaração Conjunta Luso-Chinesa sobre a questão do futuro de Macau. É boa ou poderia ter sido melhor?

A.V. — Tenho muitas responsabilidades pessoais na negociação da Declaração Conjunta Estava em Macau durante esse período de tempo e sinto-me pessoalmente envolvido nas negociações. Embora não tenha participado na equipa negociadora tive frequentes contactos com os negociadores e posteriormente no âmbito do Grupo de Ligação Conjunto Luso-Chinês.

Acho que a resolução da questão de Macau, através de negociações, seria sempre por definição uma solução delicada, difícil e com muitas incógnitas como é natural a qualquer período de transição e não há textos jurídicos perfeitos que respondam cabalmente às dúvidas humanas. Portanto, tudo vai depender da prática concreta do período de transição, da maneira como a administração portuguesa preparar essa transferência de poderes e da maneira como a República Popular da China souber congregar, em volta da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau, o apoio da esmagadora maioria da população do Território.

Pessoalmente entendo que o texto da Declaração Conjunta foi o texto possível na altura, nas condições em que foi negociado, que corresponde aos interesses fundamentais das populações de Macau, que garante a subsistência do modo de vida de Macau durante 50 anos após 1999 e estou convencido que é do interesse da República Popular da China cumprir de boa fé e empenhadamente a Declaração Conjunta após 1999. Mas não estamos a falar de um período de tempo muito longo, provavelmente o termo da vigência dos 50 anos já não será na minha vida e não me considero muito velho, mas não devo chegar aos 93 anos e, portanto, entendo que muita coisa vai mudar até lá. A China vai mudar, Macau mudará decerto, e nós temos de ter confiança nessas mudanças: numas e noutras.

«D.» — Acha que não se poderia ter conseguido mais?

A.V. — Acho que foi o melhor possível que se obteve naquelas circunstâncias. Não há textos perfeitos, porque são obras humanas.

«D.» — Quem solicitou o início das negociações sobre o futuro de Macau?

A.V. — Acho que quem pode responder melhor a essa pergunta é o sr. general Ramalho Eanes. Nunca ficou totalmente esclarecido em que condições é que a questão das negociações sobre Macau foi suscitada no decurso da visita de Estado que o general Ramalho Eanes, então Presidente da República, fez a Pequim em 1985.

Texto publicado na edição de «O Direito» de Janeiro de 1991.

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