Overview of the evolution of Macau’s Code of Civil Procedure
Isabel Alexandre
Professora Associada, Faculdade de Direito, Universidade de Lisboa*
Resumo: A estabilidade do Código de Processo Civil de Macau deve-se essencialmente aos compromissos assumidos por Portugal e pela China na Declaração Conjunta sobre a Questão de Macau e à Lei Básica da RAEM, mas para ela também tem contribuído a integração de juristas que aprenderam o Direito de Macau na estrutura política da RAEM (designadamente nos tribunais) e na advocacia de Macau, bem como a adequação dos princípios do Código à maneira de viver de Macau.
Na presente comunicação, reflete-se sobre quatro áreas em que se justificaria a atualização do Código, sem afetação dos respetivos princípios.
A primeira é a da mediação de litígios, sugerindo-se que, uma vez definido, em Macau, um regime de mediação civil e comercial: se preveja a possibilidade de remessa das partes para mediação e, obtido um acordo na mediação, a extinção da instância que estava suspensa; se preveja a homologação judicial dos acordos resultantes da mediação, ou, em alternativa, a atribuição aos mesmos do valor de título executivo (tal como faz a Convenção de Singapura), de modo a facilitar a instauração de ações executivas, em caso de não cumprimento voluntário desses acordos.
A segunda área diz respeito aos procedimentos cautelares, sugerindo-se a consagração de um mecanismo semelhante àquele que hoje existe em Portugal (a inversão do contencioso), que evite a inútil duplicação de procedimentos cautelares e ações principais.
A terceira área prende-se com a ação de despejo, recentemente objeto de uma alteração legislativa: para além de se estabelecer uma comparação entre a nova ação de despejo especial de Macau (fundada em mora igual ou superior a 3 meses no pagamento de qualquer prestação da renda) e o procedimento especial de despejo (PED) de Portugal, sugere-se o alargamento do regime daquela nova ação a outros casos e, bem assim, a reformulação, tendente à respetiva simplificação, da ação de despejo geral de Macau.
A quarta área é a da uniformização da jurisprudência em processo civil, cujo regime parece ter escassa ou inexistente relevância prática em Macau, diversamente do que tem sucedido no processo penal: tenta-se encontrar uma resposta para este contraste e aventa-se a possibilidade de a consagração de um recurso extraordinário para esse fim no âmbito do processo civil facilitar a concretização do objetivo da previsibilidade das decisões judiciais.
Palavras-chave: Código de Processo Civil de Macau / Estabilidade / Mediação / Procedimentos cautelares / Despejo / Uniformização da jurisprudência
Abstract: The stability of Macau’s Code of Civil Procedure is essentially due both to the commitments made in the Luso-Chinese Joint Declaration and to the Basic Law of the Macau SAR.
The integration of jurists who studied Macau Law into the political structure of the Macau SAR (namely in the courts) and in Macau law firms has also contributed to this stability, as well as the harmony between the principles of the Code and the way of life in Macau.
This communication contains reflections on four areas in which updating the Code would be justified, without affecting the respective principles.
The first area is dispute mediation, suggesting that, once a civil and commercial mediation regime has been defined in Macau: the law provides for the possibility of referring the parties to mediation and, once an agreement is reached in mediation, the extinction of the instance that was suspended; the law provides for the judicial approval of agreements resulting from mediation, or, alternatively, the attribution to them of the value of an enforceable title (as the Singapore Convention does), in order to facilitate the filing of enforcement actions, in case of voluntary non-compliance of these agreements.
The second area concerns provisional measures proceedings, suggesting the establishment of a mechanism similar to the one that exists today in Portugal (the “inversão do contencioso”), which avoids the useless duplication of provisional measures proceedings and main actions.
The third area is related to eviction action, whose legal regime has recently changed: in addition to establishing a comparison between Macau’s new special eviction action (applicable to cases of delay equal to or greater than 3 months in paying any installment of the rent) and the Portuguese special eviction procedure (“procedimento especial de despejo”), it is suggested that the regime applicable to that new action be extended to other cases and, as well, it is suggested the reformulation, aimed at simplifying it, of the general eviction action in Macau.
The fourth area is the unification of case law in civil proceedings, the regime of which appears to have little or no practical relevance in Macau, unlike what has been happening in the context of criminal proceedings: it is suggested that the provision of an extraordinary appeal for unification of case law in civil proceedings would make it possible to achieve the objective of predictability of judicial decisions more effectively.
Keywords: Macau’s Code of Civil Procedure / Stability / Mediation / Provisional measures proceedings / Eviction / Unification of case law
Sumário:
1. Introdução e indicação de sequência;
2. Mediação de litígios;
2.1. Remessa das partes para mediação;
2.2. Valor dos acordos resultantes de mediação;
3. Providências cautelares;
4. Ação de despejo;
4.1. Panorama da ação de despejo em Macau, antes da Lei n.º 19/2024, de 28 de outubro;
4.2. A nova ação de despejo especial de Macau;
4.3. Diferenças entre os modelos de despejo português e de Macau;
4.4. Novas alterações ao regime do despejo de Macau?;
5. Uniformização da jurisprudência;
6. Conclusões
1. Introdução e indicação de sequência
O Código de Processo Civil de Macau (adiante, CPC de Macau), aprovado em 8 de outubro de 1999, não tem sido afetado pela turbulência legislativa dos nossos tempos.
A estabilidade do Código deve-se essencialmente aos compromissos assumidos pela República Portuguesa e pela República Popular da China na Declaração Conjunta sobre a Questão de Macau e à própria Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau (adiante, RAEM), que determinam que, durante cinquenta anos, se mantenham inalterados o sistema capitalista e a maneira de viver anteriormente existentes em Macau, bem como que se mantenha basicamente inalterada a legislação previamente vigente em Macau.
Mas para essa estabilidade também tem contribuído, na minha opinião, o ensino do Direito de Macau na Universidade de Macau, a integração de juristas que aprenderam este Direito na estrutura política da RAEM (em particular, nos seus tribunais) e na advocacia de Macau, bem como a adequação dos princípios do Código – designadamente a salvaguarda da autonomia das partes, o respeito pelo contraditório, a atribuição ao juiz de significativos poderes de direção do processo e de regularização da instância, o incentivo à cooperação entre todos os intervenientes processuais ou a preocupação com a descoberta da verdade – à maneira de viver de Macau.
No futuro, o Código enfrentará o desafio da preservação da sua matriz perante as alterações que, para responder às novas exigências da sociedade em que se insere, nele terão de ser feitas: importa conservar os princípios do Código, eventualmente aprimorando alguns regimes nos quais eles se refletem, para evitar ruturas que prejudicariam o regular funcionamento dos tribunais e comprometeriam a confiança no exercício do poder judicial em Macau.
Proponho-me refletir sobre algumas alterações que, a meu ver, seriam desejáveis para a atualização do Código e que não afetariam os respetivos princípios.
Tais alterações prendem-se com os seguintes aspetos:
– Articulação do Código com a mediação, enquanto meio de resolução extrajudicial de litígios;
– Introdução da possibilidade de composição definitiva de litígios através de providências cautelares;
– Simplificação da ação de despejo;
– Dinamização do mecanismo de uniformização da jurisprudência.
Terminarei a reflexão com algumas conclusões.
2. Mediação de litígios
2.1. Remessa das partes para mediação
O CPC de Macau não prevê a remessa das partes para mediação, por iniciativa do juiz ou das partes, enquanto causa de suspensão da instância, nem a possibilidade de a mediação, quando culmine num acordo que ponha fim ao litígio, constituir causa de extinção da instância.
Trata-se de vantagens da mediação previstas no artigo 273º do atual Código de Processo Civil português, aprovado em 2013 (adiante, CPC português).
É claro que o acolhimento destas soluções no Código de Macau só seria possível se, simultaneamente, se definisse em Macau um regime relativo à mediação civil e comercial – um regime que, nomeadamente, a dotasse de garantias de confidencialidade, imparcialidade e independência –, acompanhando a tendência para a resolução extrajudicial dos litígios que se regista na generalidade dos ordenamentos.
Neste momento, a Associação dos Advogados de Macau dispõe de um Regulamento de Mediação e de Conciliação de Conflitos e de um Centro de Mediação e de Conciliação (de acordo com a informação disponível no sítio desta Associação, aqui: https://aam.org.mo/pt-pt/centro-de-mediacao/), mas ainda está em elaboração pelo Governo da RAEM, salvo erro desde 2018 (conforme relatório disponível no sítio da Assembleia Legislativa, aqui: https://www.al.gov.mo/uploads/attachment/2020-03/748475e61be2e45076.pdf), uma proposta de lei relativa ao regime jurídico da mediação civil e comercial.
Crê-se que seria importante dar seguimento a esta iniciativa, tendo em vista o descongestionamento dos tribunais, o favorecimento do cumprimento voluntário das obrigações assumidas pelas partes e a continuidade das relações amistosas entre elas.
2.2. Valor dos acordos resultantes de mediação
Se em Macau vier a ser aprovada uma lei relativa à mediação civil e comercial, será também conveniente que fique esclarecido, fora do CPC de Macau ou mesmo no Código, o valor jurídico dos acordos eventualmente obtidos através de mediação.
Com efeito, os acordos resultantes de mediação, que em geral constituirão documentos particulares não autenticados, nem sempre se subsumirão na previsão da alínea c) do artigo 677º do CPC de Macau, que só a certos documentos particulares não autenticados confere valor de título executivo: mais precisamente, só o confere aos “documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do artigo 689.º, ou de obrigação de entrega de coisas móveis ou de prestação de facto”.
Ora, quando um acordo resultante de mediação não se subsuma na previsão daquela alínea c) – ou, desde logo por não estar autenticado (o que será a situação normal), na previsão da alínea b) do mesmo artigo –, a falta de cumprimento voluntário, por uma das partes, de uma obrigação dele emergente onerará a parte contrária com a proposição de uma ação declarativa de condenação, nos termos do artigo 11º, n.º 2, alínea b), do CPC de Macau – cuja causa de pedir será esse mesmo acordo –, a fim de obter uma sentença que condene no cumprimento dessa obrigação, pois só com base na sentença condenatória (que constitui título executivo, ao abrigo da alínea a) do artigo 677º do CPC de Macau) a parte cumpridora poderá instaurar uma ação executiva destinada ao cumprimento coercivo da obrigação.
Dito de outro modo, quando um acordo resultante de mediação não se subsuma na previsão das alíneas c) ou b) do artigo 677º do CPC de Macau, a parte cumpridora não poderá instaurar uma ação executiva fundada no próprio acordo obtido por via de mediação, porque este não constitui título executivo e a execução tem sempre por base um título executivo (cf. o artigo 12º, n.º 1, do CPC de Macau).
Esta solução, que é a do Direito atual de Macau, não é, certamente, conveniente para a parte cumpridora, que investiu tempo e dinheiro na mediação e que pouca ou nenhuma utilidade retirará do acordo a que nela se chegou, uma vez que ainda terá de seguir o normal percurso judicial (ou arbitral, caso alguma convenção de arbitragem tenha sido celebrada) para obter um título executivo.
Uma via para superar este inconveniente consiste em prever a homologação judicial dos acordos obtidos por via de mediação realizada em Macau, pós-judicial ou pré-judicial, do que decorrerá a possibilidade de, com base nas sentenças homologatórias desses acordos – que constituirão títulos executivos, nos termos gerais da já referida alínea a) do artigo 677º do CPC de Macau –, ser logo instaurada ação executiva em caso de incumprimento dos acordos, sem necessidade de prévia ação declarativa.
Trata-se de uma via consagrada no Direito interno português. Com efeito:
– O artigo 273º, n.º 5, do CPC português estabelece que, tendo o juiz determinado a remessa do processo para mediação (ou seja, em caso de mediação pós-judicial) e sido bem-sucedida a mediação, por nela ter sido alcançado um acordo entre os litigantes, este acordo “é remetido a tribunal, preferencialmente por via eletrónica, seguindo os termos definidos na lei para a homologação dos acordos de mediação”. Deve entender-se que, no caso da mediação pós-judicial referida neste preceito, a homologação é oficiosa, não só porque se prevê a remessa do acordo para o tribunal (sem se exigir um requerimento das partes nesse sentido), como também porque, no caso paralelo da transação judicial, o artigo 290º, n.ºs 3 e 4, do CPC português não exige, para o proferimento da sentença homologatória, que as partes requeiram a respetiva homologação; e
– O artigo 14º da Lei n.º 29/2013, de 19 de abril (Lei da Mediação) prevê a homologação judicial, a pedido das partes, dos acordos obtidos por via de mediação pré-judicial. Mas, conforme decorre dos n.ºs 1 e 2 do mesmo artigo, é necessário que todas as partes que subscreveram o acordo requeiram a homologação, o que significa que ela não tem lugar – nem tem consequentemente lugar a constituição do título executivo – oficiosamente ou por vontade de apenas uma das partes.
Outra via possível para evitar que, após a obtenção de um acordo resultante de mediação, a parte cumpridora se veja obrigada a propor uma ação declarativa quando a outra parte o não cumpra voluntariamente, é atribuir força executiva ao próprio acordo na eventual futura Lei da Mediação de Macau, que assim constituiria título executivo nos termos da alínea d) do artigo 677º do CPC de Macau, isto é, título executivo por força de disposição especial.
A lei portuguesa adota esta solução, que é a mais simples, mas apenas quando os acordos resultantes de mediação revistam certas caraterísticas.
Efetivamente, o artigo 9º da Lei da Mediação portuguesa, que tem como epígrafe “princípio da executoriedade”, estabelece, entre o mais, que “[t]em força executiva, sem necessidade de homologação judicial, o acordo de mediação: a) Que diga respeito a litígio que possa ser objeto de mediação e para o qual a lei não exija homologação judicial; b) Em que as partes tenham capacidade para a sua celebração; c) Obtido por via de mediação realizada nos termos legalmente previstos; d) Cujo conteúdo não viole a ordem pública; e e) Em que tenha participado mediador de conflitos inscrito na lista de mediadores de conflitos organizada pelo Ministério da Justiça” (n.º 1), bem como que “[o] disposto na alínea e) do número anterior não é aplicável às mediações realizadas no âmbito de um sistema público de mediação” (n.º 2).
A Convenção das Nações Unidas sobre Acordos Internacionais de Transação resultantes de Mediação, assinada em 7 de agosto de 2019 em Singapura (por isso conhecida como Convenção de Singapura) e à data em que escrevo estas linhas já assinada por 57 países, entre os quais a China, vai mais longe do que a lei portuguesa na atribuição de força executiva aos acordos resultantes de mediação por ela abrangidos.
Na verdade, à luz da Convenção de Singapura, basta que um acordo seja reduzido a escrito (cf. o corpo do seu artigo 1º, n.º 1; sobre o alcance desta exigência, veja-se o artigo 2º, n.º 2) e assinado pelas partes (cf. o artigo 4º, n.ºs 1, alínea a), e 2), que a parte que o quer fazer valer prove, perante a autoridade competente para a outorga da medida requerida, que o mesmo resultou de mediação (cf. o artigo 4º, n.º 1, alínea b)) – a qual se carateriza simplesmente pela prestação de auxílio por um terceiro, carecido de poderes de autoridade, para a obtenção de um acordo entre as partes desavindas (cf. o artigo 2º, n.º 3, da Convenção) – e que o acordo diga respeito a um litígio internacional de natureza comercial e preencha os restantes requisitos de aplicação da Convenção estabelecidos no seu artigo 1º, para que tal acordo possa fundar uma ação executiva e devam ser reconhecidos os direitos e obrigações dele emergentes (a menos que, nos termos do artigo 5º, haja fundamento de recusa de reconhecimento ou execução).
3. Providências cautelares
Outra alteração que, a meu ver, é desejável para o CPC de Macau diz respeito aos procedimentos cautelares.
Admito que em Macau ocorram situações caraterizadas por a ação principal, da qual o procedimento cautelar depende, consistir na pura repetição do procedimento cautelar, quer no que diz respeito aos factos alegados pelas partes, quer no tocante às razões jurídicas por elas invocadas, quer no que se refere às provas apresentadas e produzidas pelas partes.
Por outro lado, admito também a existência de casos em que a decisão proferida na ação principal, embora definitiva, acabe por repetir a decisão final do procedimento cautelar, ou seja, tenha o mesmo conteúdo desta.
Com efeito, e pensando, por exemplo, num procedimento cautelar (especificado) de alimentos provisórios ou num procedimento cautelar (comum) destinado a obter uma ordem judicial que impeça o requerido de perturbar o requerente com telefonemas, visitas e qualquer tipo de aproximação, o que é expectável é que sejam os mesmos os factos, as razões de direito e as provas daqueles procedimentos e das correspondentes ações de alimentos ou inibitória.
E é consequentemente expectável que a decisão que fixe os alimentos definitivos atribua o mesmo montante que a decisão relativa aos alimentos provisórios e atendendo aos mesmos pressupostos, bem como que a ordem de não aproximação que o juiz decrete tenha o mesmo conteúdo no procedimento cautelar e na ação principal.
Partindo deste cenário provável, várias soluções se colocam, tal como se colocaram ao legislador português aquando da aprovação, em 2013, do atual CPC português, todas elas visando, por razões de economia processual, abolir a inútil repetição de meios processuais.
Uma dessas soluções é a que ficou consagrada no CPC português, por via do mecanismo da inversão do contencioso.
Este mecanismo permite ao requerente da providência cautelar, verificados certos requisitos, obter uma decisão definitiva, sem necessidade de propor, ele próprio, a ação principal, assim alterando os termos da tradicional dependência do procedimento cautelar em relação a esta ação.
A inversão do contencioso do CPC português refere-se, portanto, à inversão do ónus de propositura da ação principal, que deixa de ser do requerente da providência cautelar (como seria normal, já que é o requerente o titular do direito invocado no procedimento cautelar e na ação principal), para passar a ser um ónus do requerido.
Para que a decisão definitiva seja obtida através do mecanismo da inversão do contencioso, exige-se, em primeiro lugar, que o requerente formule o correspondente pedido (de dispensa de proposição da ação principal ou de inversão do contencioso) no procedimento cautelar, até ao encerramento da audiência final. Não é, portanto, possível ao juiz decretar oficiosamente a inversão do contencioso, isto é, sem que tal tenha sido pedido pelo requerente, e também é necessário formular o correspondente pedido dentro de um certo prazo.
É necessário, em segundo lugar, que o tribunal adquira a convicção segura da existência do direito acautelado, o que significa que a probabilidade séria da existência do direito, embora seja suficiente para o decretamento da providência cautelar, já não o é para que esse decretamento seja acompanhado de dispensa de proposição da ação principal pelo requerente.
Em terceiro lugar, a obtenção de uma decisão definitiva através do mecanismo da inversão do contencioso pressupõe que a natureza da providência decretada seja adequada a realizar a composição definitiva do litígio. Este pressuposto significa, por um lado, que o regime da inversão do contencioso só se aplica, em princípio (há várias exceções a esta regra), às providências antecipatórias e não às conservatórias, e, por outro lado, que a providência que se transformará em definitiva tem de consistir numa decisão com um conteúdo que permita obter os mesmos efeitos práticos da decisão que teria sido proferida na ação principal.
Em quarto lugar, a obtenção de uma decisão definitiva através do mecanismo da inversão do contencioso exige uma omissão do requerido, consistente na não proposição da ação principal num certo prazo, na não promoção dos termos da ação principal ou na não proposição de nova ação após absolvição da instância. Ou seja: para que a consolidação da providência cautelar ocorra é necessário que o requerido tenha uma conduta omissiva.
Se em Macau vier a ser adotado o mecanismo da inversão do contencioso, é conveniente que o CPC de Macau esclareça um ponto que não está claro no CPC português (e que, por causa disso, tem provocado intenso debate doutrinário), e que é o de saber se, tendo o juiz decretado a providência cautelar acompanhada da inversão do contencioso, as partes têm, na ação principal que o requerido eventualmente proponha, os mesmos ónus de prova que teriam numa ação principal não precedida da inversão do contencioso (isto é, na ação principal que ao requerente competiria propor).
Assim, por exemplo, tendo sido decretados alimentos provisórios com inversão do contencioso, o requerente/credor continua, na ação principal (instaurada pelo requerido/devedor), a estar onerado com a prova da necessidade dos alimentos, ou é o requerido/devedor (autor na ação principal) que está onerado com a prova da desnecessidade dos alimentos?
Embora o artigo 371º n.º 1, 1ª parte, do CPC português aponte no primeiro sentido – pois usa a expressão “[s]em prejuízo das regras sobre a distribuição do ónus da prova” – e, bem assim, embora seja essa a solução que melhor se coaduna com a regra geral do artigo 364º, n.º 4, do CPC português, segundo a qual nem o julgamento da matéria de facto, nem a decisão final proferida no procedimento cautelar, têm qualquer influência no julgamento da ação principal, a verdade é que o benefício do requerente com a decisão que decretou a inversão do contencioso será maior (não se limitando à libertação do ónus de proposição da ação principal) se ocorrer a inversão do ónus da prova na ação principal.
Convirá, portanto, que o legislador de Macau esclareça se pretende também este benefício para o requerente, caso opte pela consagração do mecanismo da inversão do contencioso que em 2013 foi instituído em Portugal.
4. Ação de despejo
4.1. Panorama da ação de despejo em Macau, antes da Lei n.º 19/2024, de 28 de outubro
Antes da Lei n.º 19/2024, de 28 de outubro, o panorama da ação de despejo em Macau era, em termos muito sintéticos, o seguinte.
A ação de despejo constituía, a par do depósito de rendas, um processo especial referente ao arrendamento, encontrando-se regulada nos artigos 929º e seguintes do CPC de Macau.
O senhorio tinha de lançar mão da ação de despejo quer pretendesse a cessação do arrendamento, quer o arrendamento já tivesse cessado, neste último caso se não possuísse título executivo que lhe permitisse instaurar execução para entrega de coisa certa (cf. o mencionado artigo 929º).
Apesar de qualificada como um processo especial, a ação de despejo seguia essencialmente, na sua fase declarativa, os termos do processo comum (ordinário ou sumário, conforme determinado no artigo 930º do CPC de Macau).
À fase declarativa da ação de despejo seguia-se, se fosse ordenado o despejo, a fase executiva: mas esta fase, embora não pressupusesse a apresentação de um requerimento executivo, não podia iniciar-se unicamente com base na sentença que ordenasse o despejo, sendo ainda necessário obter um mandado, nos termos do artigo 935º do CPC de Macau.
A tramitação muito pesada acabada de descrever podia lesar de forma desproporcionada o direito de propriedade do senhorio, nesta medida não estimulando o mercado do arrendamento.
4.2. A nova ação de despejo especial de Macau
A Lei n.º 19/2024, de 28 de outubro estabelece, para certos casos de não pagamento atempado de rendas (descritos no artigo 930º, n.º 4, do CPC de Macau, na versão emergente daquela Lei), uma tramitação processual mais simplificada do que a descrita no ponto anterior para a obtenção do despejo de um prédio.
Essa simplificação verifica-se em vários planos, nomeadamente no dos requisitos da petição inicial, citação, patrocínio judiciário, (in)admissibilidade da reconvenção, ou efeitos da sentença que ordena o despejo.
Algumas das alterações constantes da Lei n.º 19/2024, de 28 de outubro correspondem a soluções já consagradas no Direito português, tal como, aliás, se refere na nota justificativa da correspondente Proposta de Lei (intitulada “Alteração ao regime da acção de despejo do Código de Processo Civil” e pesquisável em https://www.al.gov.mo/pt/law/lawcase/590).
É o caso da realização oficiosa da citação pela secretaria (veja-se a nova redação do n.º 5 do artigo 177º-A do CPC de Macau), que está prevista no artigo 226º, n.º 1, do CPC português de 2013 para a generalidade das ações e é também aplicável, em Portugal, à ação de despejo, por força do artigo 14º, n.º 1, da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, que aprovou o Novo Regime do Arrendamento Urbano (adiante, NRAU).
É também o caso da atribuição, à sentença que ordena o despejo, do valor de título executivo suficiente para a execução do despejo (veja-se o n.º 1 do novo artigo 937º-H do CPC de Macau): na verdade, nem o NRAU, nem as disposições do CPC português de 2013 sobre a execução para entrega de coisa certa fazem depender a execução da sentença que ordena o despejo de um pedido do senhorio de passagem de mandado de despejo, tal como, para a ação de despejo geral, se exigia no CPC de Macau (conforme se mencionou no ponto anterior) e continua, aliás, a exigir para esta ação.
É o caso, ainda, do oferecimento das provas com a petição inicial (veja-se os n.ºs 2 e 5 do novo artigo 937º-A do CPC de Macau), regra que o CPC português de 2013 aplica à generalidade das ações (veja-se o artigo 552º, n.º 6, deste Código).
A aplicação da nova tramitação (mais célere) a certos casos de não pagamento de renda parece ter encontrado igualmente inspiração no Direito português, mais precisamente:
– No artigo 14º, n.º 5, do NRAU, que, se bem que na pendência da ação de despejo, admite o despejo imediato quando o arrendatário não pague ou deposite rendas vencidas por um período igual ou superior a dois meses;
– Em particular, no procedimento especial de despejo (PED), de que tratam os artigos 15.º a 15.º-S do NRAU.
Com efeito, este procedimento é, de acordo com o artigo 15º, n.º 1, do NRAU, “um meio processual que se destina a efetivar a cessação do arrendamento, independentemente do fim a que este se destina, quando o arrendatário não desocupe o locado na data prevista na lei ou na data fixada por convenção entre as partes”, e a lei prevê a desocupação do locado em virtude de resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas, nos termos conjugados dos artigos 1087º, 1083º, n.ºs 3, 4 e 5, 1084º, n.ºs 2, 3 e 4, e 1085º, n.º 2, todos do Código Civil português: por isso mesmo, de acordo com o artigo 15º, n.º 2, alínea e), do NRAU, podem servir de base ao PED, independentemente do fim a que se destina o arrendamento, “[e]m caso de resolução por comunicação, o contrato de arrendamento, acompanhado do comprovativo da comunicação prevista no n.º 2 do artigo 1084.º do Código Civil”.
4.3. Diferenças entre os modelos de despejo português e de Macau
Apesar das assinaladas semelhanças, tanto o regime da ação de despejo geral de Macau (que se mantém com a Lei n.º 19/2024, de 28 de outubro e que sinteticamente se descreveu no ponto 4.1. deste texto), como o regime da ação de despejo especial introduzido pela Lei n.º 19/2024, de 28 de outubro, são diversos do regime português contemporâneo relativo ao despejo.
Com efeito, no Direito português há a considerar 3 meios processuais relativos ao despejo:
– A ação de despejo, que se destina a fazer cessar a situação jurídica do arrendamento sempre que a lei imponha o recurso à via judicial para promover tal cessação. A ação de despejo portuguesa não constitui verdadeiramente um processo especial nem comporta, como a ação de despejo de Macau (tanto a geral como a nova ação especial), uma fase executiva (ou seja, é uma pura ação declarativa), pois o artigo 14º, n.º 1, do NRAU determina que a ação de despejo siga a forma de processo comum declarativo;
– A execução para entrega de coisa imóvel arrendada, referida no artigo 862º do CPC português, à qual pode servir de base a sentença que ordena o despejo. Diferentemente do que sucedia e continua a suceder em Macau, mesmo depois da Lei n.º 19/2024, de 28 de outubro, em Portugal a execução da sentença que ordena o despejo envolve a instauração de uma ação executiva para entrega de coisa certa, não representando uma mera fase de um processo já instaurado;
– O já referido procedimento especial de despejo (PED), regulado nos artigos 15.º a 15.º-S do NRAU. São várias as diferenças entre o PED e a nova ação de despejo especial de Macau, tal como está desenhada na Lei n.º 19/2024, de 28 de outubro, designadamente as seguintes.
Em primeiro lugar, o PED, diversamente do despejo especial de Macau, não é aplicável apenas a casos de mora no pagamento de rendas: o que releva é que o arrendatário não tenha desocupado o locado na data prevista na lei ou na data fixada por convenção entre as partes.
Em segundo lugar, o PED pressupõe que o contrato de arrendamento já tenha cessado, podendo a cessação do contrato de arrendamento ter-se ficado a dever a revogação, caducidade, oposição à renovação, denúncia ou resolução (cf. o artigo 15º do NRAU). Diferentemente, a ação de despejo especial de Macau destina-se a fazer cessar o arrendamento, pois um dos seus pressupostos – a comunicação do senhorio ao arrendatário, por escrito, que o mesmo se constitui em mora igual ou superior a 3 meses no pagamento de qualquer prestação da renda (veja-se o artigo 930º, n.º 4, alínea c), do CPC de Macau) – não opera a cessação do contrato de arrendamento, devendo a resolução do arrendamento pelo senhorio por incumprimento pelo arrendatário ser decretada pelo tribunal (cf. os artigos 1017º, n.º 2, 1019º e 1034º, alínea a), todos do Código Civil de Macau).
Em terceiro lugar, o PED é tramitado, por força do artigo 15º-A do NRAU, no Balcão do Arrendatário e do Senhorio (BAS), junto da Direção-Geral da Administração da Justiça – sem prejuízo, nos termos do artigo 15º, n.º 9 do NRAU, de os autos serem “distribuídos ao tribunal da situação do locado no primeiro momento processual em que se suscite uma questão sujeita a decisão judicial”, ou de, nos termos do artigo 15º-H, do NRAU, deduzida a oposição, o BAS dever apresentar os autos à distribuição ou fazê-los conclusos, “conforme o caso” [conforme não tenha ou já tenha havido distribuição, ao que parece: a lei não é clara] –, diversamente do que sucede com a nova ação de despejo especial de Macau, que é, toda ela, e tal como a ação de despejo geral, tramitada num tribunal.
Em quarto lugar, no âmbito do PED podem formar-se duas categorias de títulos executivos para o efeito da entrega de coisa imóvel arrendada – o título extrajudicial para entrega do locado, formado nos termos do artigo 15º-E do NRAU (o qual resulta da conversão do requerimento de despejo em título para desocupação do locado, designadamente no caso de falta de oposição do requerido, e verificados certos requisitos), ou o título judicial para entrega do locado, formado nos termos do artigo 15º-I, n.º 11, do NRAU (que estabelece que “[q]uando a oposição seja julgada improcedente, a decisão condena o requerido a proceder à entrega do imóvel no prazo de 30 dias, valendo tal decisão como autorização de entrada imediata no domicílio”) –, enquanto no âmbito da ação de despejo especial de Macau apenas se poderá formar um título judicial para entrega do locado, atendendo a que tal ação não conhece (ao contrário do PED) uma fase declarativa de natureza administrativa, correndo integralmente num tribunal.
Em quinto lugar, no PED é obrigatória a constituição de advogado para a dedução de oposição ao requerimento de despejo e as partes têm de se fazer representar por advogado nos atos processuais subsequentes à distribuição (cf. artigo 15º-S, n.ºs 3 e 4 do NRAU), enquanto na ação de despejo especial de Macau só é obrigatória a constituição de advogado na fase de recurso (veja-se o n.º 4 do artigo 74º da atual redação do CPC de Macau).
Em sexto lugar, no PED não se proíbe a dedução de reconvenção pelo arrendatário, ao contrário do que sucede na nova ação de despejo especial de Macau, nos termos do n.º 3 do artigo 937º-C do CPC de Macau: com efeito, embora o NRAU não seja claro quanto à admissibilidade da reconvenção no PED e tal até pareça incompatível com a celeridade e simplificação que se pretende para este procedimento, a jurisprudência e a doutrina portuguesas têm-se pronunciado maioritariamente no sentido de tal admissibilidade, invocando razões de economia processual (evitar a proposição de ação autónoma pelo arrendatário) e de tutela efetiva do arrendatário.
Em sétimo lugar, o PED tem natureza urgente (cf. o artigo 15º-S, n.º 10, do NRAU), diversamente do novo despejo especial de Macau, que não a estabelece.
4.4. Novas alterações ao regime do despejo de Macau?
O regime da ação de despejo de Macau resultante da Lei n.º 19/2024, de 28 de outubro, a que se tem feito referência – o qual contempla, como se viu, um despejo geral (que aquela Lei mantém) e um despejo especial (que aquela Lei introduz) –, constitui um marco importante no sentido da simplificação do despejo.
De todo o modo, justifica-se que se pondere a possibilidade de extensão das regras do novo despejo especial a casos diversos do da falta de pagamento das rendas, em que a cessação do arrendamento já tenha ocorrido e seja apenas necessário obter a desocupação do locado: talvez seja excessivo continuar a aplicar a estes casos as regras da ação de despejo geral, mais pesadas.
A atribuição de caráter urgente ao despejo especial seria igualmente uma medida vantajosa, pois o mero encurtamento de prazos e a supressão de atos processuais pode não ser suficiente para lhe conferir a celeridade desejada.
Crê-se que a própria ação de despejo geral (mantida pela Lei n.º 19/2024, de 28 de outubro) carece de simplificação: para além de não se justificar que a fase executiva dessa ação dependa da emissão de um mandado, a subsistência de duas formas de processo (ordinária e sumária) na sua fase declarativa introduz uma complexidade desnecessária na tramitação. Mas este é provavelmente um aspeto transversal ao CPC de Macau: talvez não se justifique a manutenção, dentro do processo comum de declaração, daquelas duas formas de processo, podendo o mesmo seguir uma forma única, tal como desde 2013 se verifica em Portugal.
5. Uniformização da jurisprudência
Finalmente, há um regime do CPC de Macau que, não tendo sido ainda objeto de uma proposta de alteração legislativa (tanto quanto sei), talvez seja conveniente reformular.
Refiro-me ao regime relativo à uniformização da jurisprudência, destinado a assegurar a previsibilidade das decisões judiciais em processo civil e, consequentemente, a segurança jurídica.
Este regime tem tido escassa ou inexistente relevância prática, o que significa que não tem cumprido o objetivo que justificou a sua consagração no Código.
Na verdade, e diversamente do que tem sucedido no âmbito do processo penal, o Tribunal de Última Instância da RAEM não tem proferido acórdãos de uniformização da jurisprudência em processo civil.
O que explicará este contraste entre o processo penal e o processo civil?
Será que ele se prende com a espécie de recurso a interpor, quando se pretenda a uniformização da jurisprudência?
Como é sabido, o Código de Processo Penal (adiante, CPP) de Macau admite o recurso extraordinário de fixação de jurisprudência de decisões contraditórias do Tribunal de Última Instância e do Tribunal de Segunda Instância, nos termos e condições dos seus artigos 419º e seguintes.
Já o CPC de Macau admite, seja qual for o valor da causa, e nos termos respetivamente das alíneas c), d) e e) do n.º 2 do artigo 583º, a interposição de recurso ordinário:
– Para o tribunal imediatamente superior, de uma decisão que contrarie jurisprudência uniformizada;
– De “acórdão do Tribunal de Última Instância que esteja em contradição com outro proferido por este tribunal no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se aquele acórdão for conforme com jurisprudência obrigatória”; e
– De “acórdão do Tribunal de Segunda Instância que, não admitindo recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, esteja em contradição com outro por ele proferido no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se aquele acórdão for conforme com jurisprudência obrigatória”.
Por outro lado, no âmbito de um recurso ordinário já interposto para o Tribunal de Última Instância, os artigos 652º-A e seguintes do CPC de Macau admitem o julgamento ampliado para o efeito da uniformização da jurisprudência, por decisão do presidente daquele Tribunal ou sugestão das partes, do Ministério Público, do relator ou de qualquer dos juízes-adjuntos, quando se “verifique a possibilidade de vencimento de solução jurídica que esteja em oposição com a de acórdão anteriormente proferido pelo mesmo tribunal”.
Em todos os casos em que, no âmbito de recurso ordinário (em processo civil) ou extraordinário (em processo penal) interposto para o Tribunal de Última Instância, se proceda à uniformização da jurisprudência, o recurso é julgado com intervenção dos juízes mencionados no artigo 46º, n.º 2, da Lei de Bases da Organização Judiciária, e nos termos deste mesmo preceito: mais precisamente, “intervêm na conferência, para além de todos os juízes do Tribunal de Última Instância, o presidente e o juiz mais antigo em exercício de funções no Tribunal de Segunda Instância que se não encontre impedido ou, neste caso, o juiz seguinte na ordem de antiguidade”. Os artigos 652º-A, n.º 1, do CPC de Macau, e 425º, n.º 1, do CPP de Macau confirmam, nos respetivos campos de aplicação, a intervenção desta conferência alargada.
Não é, portanto, a intervenção de mais ou menos juízes no julgamento do recurso que explica a disparidade entre o processo penal e o processo civil, no que diz respeito ao número de acórdãos de uniformização da jurisprudência até agora proferidos.
Uma via possível de dinamização do mecanismo da uniformização da jurisprudência em processo civil seria eliminar o recurso ordinário previsto no artigo 583º, n.º 2, alínea d), do CPC de Macau – o recurso ordinário do “acórdão do Tribunal de Última Instância que esteja em contradição com outro proferido por este tribunal no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se aquele acórdão for conforme com jurisprudência obrigatória” – e prever, em vez dele, um recurso extraordinário para o caso aqui contemplado, com um regime semelhante ao do processo penal: é que a consagração de um recurso extraordinário poderá redundar, na prática, num prazo mais alargado para a parte vencida fundamentar a necessidade de uniformização da jurisprudência.
A par desse novo recurso extraordinário, poderiam manter-se os recursos ordinários fundados em violação de jurisprudência obrigatória e em acórdãos conflituantes do Tribunal de Segunda Instância (os recursos já previstos no artigo 583º, n.º 2, alíneas c) e e), do CPC de Macau), conservando-se igualmente a possibilidade de uniformização de jurisprudência no âmbito de recurso ordinário já interposto para o Tribunal de Última Instância com outros fundamentos, nos termos gerais dos artigos 652º-A e seguintes do CPC de Macau.
O sistema acabado de delinear não dispensa, como é obvio, a identificação dos eventuais constrangimentos que, no regime atual, parecem estar a impedir a resolução de conflitos jurisprudenciais em processo civil e o proferimento dos correspondentes acórdãos de uniformização da jurisprudência.
6. Conclusões
Nas linhas antecedentes assinalou-se a possibilidade de incentivo à resolução extrajudicial de litígios em Macau, através da remessa do processo para mediação (com suspensão da instância) e da clarificação do valor dos acordos resultantes de mediação, enquanto títulos executivos, ponderando, para este efeito, a força que lhes é atribuída pela Convenção de Singapura.
Salientaram-se igualmente as vantagens da introdução, no CPC de Macau, de um mecanismo que evite a duplicação inútil de procedimentos cautelares e ações principais, eventualmente inspirado na inversão do contencioso portuguesa, mas evitando algumas ambiguidades deste regime.
Registaram-se, ainda, os benefícios das recentes alterações ao regime do despejo em Macau, sob o ponto de vista da simplificação processual, considerando-se, porém, que é possível ir mais além neste desiderato, designadamente consagrando um regime mais simples do que o da ação de despejo geral, quando se trate de efetivar uma cessação do arrendamento já ocorrida.
Finalmente, e perante o insucesso prático do mecanismo da uniformização da jurisprudência em processo civil, aventou-se a possibilidade de consagração de um recurso extraordinário para este fim, semelhante ao do processo penal.
Mais do que propostas concretas de alteração de um Código a servir Macau há 25 anos, indicaram-se algumas pistas de reflexão sobre o seu futuro, na convicção de que qualquer alteração deve favorecer a estabilidade social e o desenvolvimento económico de Macau, valores subjacentes à Declaração Conjunta Luso-Chinesa sobre a Questão de Macau e à Lei Básica da RAEM.
* Texto da conferência proferida na Décima Quarta Conferência Internacional “Estudos sobre o Código Civil, o Código Comercial e o Código de Processo Civil. Celebrando o 25.º Aniversário da RAE de Macau”, em 29 de outubro de 2024, em Macau.
Este texto será publicado no Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Macau.
25 de Novembro de 2024