Pareceres

A fiscalização da constitucionalidade das normas de Macau

J. J. Gomes Canotilho/ Vital Moreira*

1. Introdução

No Acórdão n.º 292/91 (publicado no Diário da República, II série, de 30 de Outubro de 1991), o Tribunal Constitucional decidiu não tomar conhecimento de um pedido de declaração de inconstitucionalidade de certas normas legislativas de Macau, feito pelo Procurador-Geral da República ao abrigo do n.º 2 do art. 281.º da Constituição, com fundamento em falta de legitimidade processual do requerente. No entendimento do TC essa disposição constitucional não vale para as normas oriundas dos órgãos de governo próprio daquele território, pelo que as normas em causa só poderiam ser directamente impugnadas nos termos previstos no Estatuto Orgânico de Macau, o qual não atribui tal competência às entidades referidas no citado preceito da Constituição.

Na fundamentação dessa decisão, o TC socorreu-se essencialmente de dois argumentos. Primeiro, a CRP não vale directamente para o território de Macau, mas apenas nos termos do respectivo Estatuto, que é a sua lei fundamental e que por isso há-de reger em primeira linha o regime da fiscalização da constitucionalidade das respectivas normas. Segundo, o EOM contém efectivamente um regime específico de fiscalização da constitucionalidade das normas emitidas pelos órgãos legislativos do território, segundo o qual a faculdade de impugnação é reservada àqueles mesmos órgãos (a saber, a Assembleia Legislativa e o Governador), relativamente às normas uns dos outros, sem qualquer menção das entidades referidas no art. 281.º da Constituição.

Sintetizando a sua posição, o Tribunal conclui que «o legislador do Estatuto de Macau, não só encarou ex professo a questão do controlo abstracto sucessivo da constitucionalidade das normas editadas pelos órgãos legislativos desse território, mas estabeleceu para esse controlo um regime e um esquema específicos», pelo que «não tem cabimento fazer apelo, nessa matéria, ao disposto no n.º 2 do art.º 281.º da Constituição da República».

Esta decisão do TC — que não foi tirada por unanimidade, tendo registado vários votos de vencido — parece-nos absolutamente correcta, e bem fundamentada no essencial. Dada a importância da decisão, que veio solucionar uma questão nova, justifica-se uma apreciação doutrinária tanto quanto possível aprofundada daquele aresto. E o que nos propomos fazer aqui[1].

O problema que nos é colocado consiste apenas em saber se vale para o Território de Macau o que o n.º 2 do artigo 281.º da CRP dispõe em matéria de legitimidade processual para requerer ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral, em processos de fiscalização abstracta.

Trata-se de decidir se será ou não possível às entidades mencionadas na citada disposição constitucional (Presidente da República, Presidente da Assembleia da República, Primeiro-Ministro, Provedor de Justiça, Procurador-Geral da República e um décimo dos deputados à Assembleia da República) requerer ao Tribunal Constitucional a apreciação abstracta e sucessiva da inconstitucionalidade e/ou da ilegalidade (com fundamento em violação do Estatuto Orgânico de Macau) de normas constantes de diplomas aprovados por órgãos de governo próprio do Território.

Numa perspectiva mais ampla, a questão reside em determinar se o regime constitucional de fiscalização da constitucionalidade e da legalidade, designadamente quanto à fiscalização abstracta (único ponto aqui em causa), é ou não aplicável em globo às normas do território de Macau, incluindo quanto à legitimidade processual para desencadear o respectivo processo.

Sucede, na verdade, que o Estatuto Orgânico de Macau (EOM) prevê a fiscalização abstracta das normas locais, a cargo do Tribunal Constitucional, mas só menciona como entidades competentes para desencadear o respectivo processo o Governador e a Assembleia Legislativa, respectivamente quanto às normas emitidas pela Assembleia Legislativa e pelo Governador [EOM, art.º 11.º-1, alínea e) e art.º 30.º-1, alínea a)].

Haverá portanto que averiguar se o regime específico previsto no EOM prejudica e substitui o regime previsto no art.º 281.º da CRP, ou se, pelo contrário, sem prejuízo daquele, o regime estabelecido na Lei Fundamental da República é extensivo à fiscalização da constitucionalidade e da legalidade das normas locais de Macau[2].

Cabe dizer, desde já, que não é a primeira vez que nos debruçamos sobre este problema (e, em geral, sobre o sistema de fiscalização da constitucionalidade e da legalidade das normas locais de Macau). Na 2.ª edição da nossa Constituição da República Portuguesa Anotada escrevemos o seguinte:

«Já não é líquido se vale para essas normas o sistema de fiscalização da constitucionalidade previsto na Constituição. Por duas razões: (a) porque o Estatuto de Macau regula explicitamente — embora não inequivocamente — o sistema de fiscalização da constitucionalidade; (b) porque o CRP não faz qualquer menção explícita às normas do território de Macau, ao passo que entendeu necessário consagrar alguns especialidades em relação às próprias Regiões Autónomas da República (os Açores e a Madeira).

Nestes termos parece razoável concluir que as normas do território de Macau estão sujeitas também a fiscalização da constitucionalidade, mas apenas nos termos do seu próprio Estatuto —; que é anterior à Constituição — e não nos termos da CRP, a qual pode no entanto servir para efeitos de interpretação ‘conforme à Constituição’ e de integração do regime previsto no Estatuto»[3].

Cumpre, portanto, reexaminar-se e em que medida é que a doutrina aí expendida continua ou não a ser válida, tendo em conta os novos dados da questão, nomeadamente a 2.ª revisão constitucional, que introduziu algumas alterações na CRP nesta matéria, e a revisão do EOM (Lei n.º 13/90, de 10 de Maio), que esclareceu vários dos problemas suscitados nesta matéria pelo texto originário do Estatuto, ao mesmo tempo que lhe introduziu várias e consideráveis alterações.

Importa afirmar desde já — antecipando as conclusões a que chegámos na reapreciação da questão — que todos os elementos se conjugam para reafirmar e reforçar a doutrina que desde o princípio defendemos sobre a matéria, no sentido de que, instituindo o EOM um sistema específico de fiscalização da constitucionalidade (e da legalidade), são as normas estatutárias que prevalecem ao regular a respectiva disciplina, pelo que a CRP não é aplicável de plano, nesta como noutras matérias, ao território de Macau.

2. A CRP e Macau

2.1. A situação constitucional do Território

Para começar, há que ter em conta o lugar de Macau na ordem constitucional portuguesa.

Desde o texto originário da CRP que nunca houve dúvidas quanto ao facto de que Macau não faz parte integrante de Portugal. No art.º 5.º da Constituição, que define o território nacional sem nele incluir Macau, o seu primitivo n.º 4 esclarecia que este território se encontrava «sob administração portuguesa» e se regia por «estatuto adequado à sua situação especial».

A «situação especial» consistia justamente no facto de Macau não ser parte da República portuguesa, mas apenas um território «sob administração portuguesa»[4].

Correspondentemente, o art.º 6.º da CRP, sobre a estrutura unitária do Estado, mencionava as regiões autónomas dos Açores e da Madeira («dotadas de estatutos político-administrativos e de órgãos de governo próprio», na redacção actual), mas era e é omisso a respeito de Macau, justamente porque este território está fora da estrutura do Estado, sendo uma entidade territorial diferente, extra nacional, sobre que o Estado português exerce a «administração»[5]. Recorrendo a uma expressiva passagem de Afonso R. Queiró, dir-se-á que Macau «é um território estranho ao Estado português» e que «não é Inland, é Ausland (para retomar aqui conceito e terminologia clássica alemã), não é elemento constitutivo do Estado português, é um elemento extrínseco ou acessório, uma espécie de apêndice deste Estado (…)»[6].

Neste aspecto, dois factos supervenientes vieram acentuar essa estraneidade do território de Macau em relação ao Estado português.

Um foi o tratado entre Portugal e a China sobre Macau, a «Declaração Conjunta», celebrada em 1987, aprovada para ratificação pela Assembleia da República pela Resolução n.º 25/87 (Diário da República, I série, de 14 de Dezembro) e ratificada pelo Presidente da República através do Decreto n.º 38-A/87, de 14 de Dezembro. Esse instrumento de direito internacional, além de reconhecer a responsabilidade portuguesa transitória pela «administração» do território chinês de Macau, estabeleceu a reintegração deste no Estado chinês em 20 de Dezembro de 1999, com estatuto de «Região administrativa especial». Por efeito da Declaração Conjunta, Macau entrou num «período de transição» para a reintegração na soberania chinesa, ficando portanto em vias de deixar a «administração portuguesa».

O segundo facto relevante foi a revisão constitucional de 1989, que em consonância com a referida Declaração Conjunta, retirou a referência a Macau do art.º 5.º da CRP, transferindo-a para as disposições transitórias finais, modificando simultaneamente a formulação do preceito, passando a sublinhar-se o carácter transitório da situação daquele território[7]: Consequentemente acentuou-se a natureza provisória e temporária da responsabilidade portuguesa pela administração do Território, o que não pode deixar de se fazer sentir no entendimento das relações entre aquele e a ordem constitucional portuguesa.

2.2. O dualismo ordenamental

Congruentemente com a situação especial de Macau, a CRP renunciou a regular ela mesma a organização política e administrativa do Território, remetendo-a integralmente para um estatuto próprio, acolhendo desde logo o estatuto preconstitucional constante da Lei n.º 1/76, de 17 de Fevereiro, e limitando-se a regular o modo da sua modificação ou substituição (primitivo art.º 306.º, correspondente ao actual art.º 292.º).

Além disso, a CRP absteve-se mesmo de determinar qualquer limite ou directiva material à liberdade de conformação do Estatuto próprio de Macau. O actual n.º 5 do art.º 292.º, que prevê para Macau uma «organização judiciária própria», só foi aditado na segunda revisão constitucional, em 1989.

Há portanto um dualismo constitucional, entre o ordenamento constitucional da República portuguesa e o ordenamento básico do território de Macau. Aquele não se aplica por si mesmo a Macau; o segundo é reconhecido mas não absorvido pelo primeiro.

Que a CRP não se aplica de plano a Macau, eis o que é quase uma comunis opinio[8].

Logo em 1978, Jorge Miranda, invocando de resto a lição de A. R. Queiró, era definitivo na resposta à questão:

«Aplica-se a Constituição a Macau? Como território estranho à República portuguesa, a Constituição não vale automaticamente nele e para ele (…)»[9].

Sintetizando essa opinião comum, escreve enfaticamente J. A. Dimas de Lacerda:

«Deixando de integrar o território nacional, a Constituição da República portuguesa não vale automaticamente no território de Macau. O território de Macau tem uma lei constitucional própria (…). A Constituição da República Portuguesa, como os princípios nela consagrados, valerão no território de Macau, nos termos em que a lei fundamental do território — o Estatuto Orgânico — o consentirem»[10].

Em termos menos enfáticos, mas convergentes no fundamental, escreve António Vitorino:

«A CRP não é susceptível de aplicação integral a Macau (…), mas é aplicável em largos trechos: seja por efeito de referências expressas do EOM, seja pela necessidade de preencher os vazios normativos que se observem na carta política do Território»[11]/[12].

As únicas normas constitucionais directa e automaticamente aplicáveis a Macau são aquelas que especificamente se lhe referem, a começar pelo art.º 292.º que é a Grundnorm do ordenamento do Território[13]. Além disso, as demais normas constitucionais só poderão valer em Macau por efeito de devolução estatutária, e naquilo em que não contrariem o Estatuto[14].

Tendo remetido o ordenamento fundamental de Macau para um Estatuto específico, a CRP absteve-se de se ocupar do Território e de se lhe aplicar directamente. Mas isso não impedia naturalmente que o Estatuto viesse, por sua vez, a reenviar para a Constituição, fazendo essa aplicar-se ao Território em maior ou menor medida. O dualismo ordenamental é densificado por um sistema de reenvios recíprocos, a CRP devolve para o Estatuto, e este pode reenviar para a Constituição.

Ao dispensar-se de estabelecer limites materiais à formulação do Estatuto, a CRP deixou uma grande margem de conformação deste. Mas isso não implicava uma total liberdade do Estatuto e uma absoluta indiferença constitucional ao seu conteúdo. Pois é evidente que, estando o Território sob responsabilidade portuguesa, não poderia o Estatuto consagrar soluções essencialmente discrepantes com os princípios constitucionais básicos da CRP. Como diz pertinentemente J. Miranda, «os princípios fundamentais do direito constitucional português não poderão ser afastados num território onde se exerce um poder de autoridade portuguesa»[15].

É fácil ver que, desde o início, o EOM considerou os princípios constitucionais da CRP, em geral, e os direitos, liberdades e garantias, em particular, como elementos (ou, ao menos, como balizas) da ordem constitucional de Macau e, portanto, como limites à sua autonomia legislativa Hoje o art.º 2.º do EOM é explícito a esse respeito, quando considera como limites da autonomia do Território a «ressalva dos princípios e o respeito dos direitos, liberdades e garantias estabelecidos na Constituição da República». Mas já o texto primitivo ressalvava no mesmo art.º 2.º os «princípios estabelecidos nas leis constitucionais da República Portuguesa», enquanto que de outros preceitos — nomeadamente do art.º 11.º-1, al. d) — se retirava implicitamente o requisito do respeito pelos direitos, liberdades e garantias constitucionais[16]. Neste aspecto, a revisão de Estatuto não fez mais do que clarificar o âmbito da recepção da CRP na ordem «constitucional» de Macau, sem de algum modo a ter intensificado[17]. É de sublinhar desde já que nenhuma referência particular se faz às normas da CRP referentes ao regime de fiscalização da constitucionalidade, matéria que o Estatuto se encarrega de regular especificamente, aliás — como se verá — com respeito dos «princípios» do regime constitucional nessa matéria.

Em resumo, a lei fundamental de Macau é o seu Estatuto, cujos únicos limites são as normas específicas da CRP sobre o Território (nomeadamente o art.º 292.º), bem como os princípios constitucionais fundamentais da CRP. Para além das normas especificamente dedicadas ao Território, a Constituição só é aplicável a Macau, naquilo em que o Estatuto reenvia para ela, como é o caso dos direitos, liberdades e garantias, ou quanto à competência legislativa reservada da AR como limite de autonomia legislativa do Território [arts.º 167.º e 168.º, por força dos art.os 13.º-1 e 31.º, alínea c), do EOM]. Mas essas normas constitucionais vigoram no Território «não por efeito próprio, mas por exclusiva acção das normas constitucionais do Território, essencialmente contidas no seu Estatuto Orgânico»[18].

2.3. O Estatuto de Macau como lei básica do Território

O Estatuto de Macau não é uma manifestação de autonomia territorial, visto que é uma lei da República e só pode ser modificado por via de lei da República. A Constituição não concedeu ao Território autonomia estatutária, que implicaria poderes para elaborar o seu próprio Estatuto.

Todavia, também é verdade que o Estatuto, sendo uma lei da República, não é uma lei como as outras. Originariamente, era uma lei constitucional anterior à CRP, que esta manteve em vigor EOM essa natureza. Acresce que ela não pode ser livremente modificada pela Assembleia da República. Nos termos do art.º 292.º da Constituição, a iniciativa da revisão cabe sempre aos órgãos de governo próprio do Território, e não pode haver alterações que não obtenham a anuência prévia destes. O Estatuto Orgânico de Macau não pode portanto ser rigorosamente concebido como «norma outorgada»[19], mas antes como norma ordenamental pactuada, com valor constitucional, progressivamente edificada no uso de poderes próprios.

Sendo quase exclusivamente uma norma organizatória, o EOM é uma «constituição incompleta», faltando-lhe nomeadamente um catálogo de direitos fundamentais. Eis porque se tornou necessário efectuar remissões para a CRP, a qual, nessas matérias em que o Estatuto é omisso, assume a natureza de direito constitucional comum à República e ao Território.

2.4. O EOM e a autonomia normal normativa do Território

Nos termos do art.º 2.º do EOM, Macau goza de autonomia administrativa, económica, financeira e legislativa. Neste elenco, interessa fundamentalmente a autonomia normativa, que inclui principalmente a autonomia legislativa.

Nos termos do Estatuto, as normas locais, a começar pelas normas legislativas, estão submetidas a um triplo parâmetro: a Constituição, o Estatuto e as leis da República que devam prevalecer sobre as leis locais nos termos do art.º 41.º do EOM, nas áreas de legislação concorrente entre a República e o Território.

Como se viu, por força do próprio EOM, as normas locais devem respeitar os princípios da CRP, bem como os direitos, liberdades e garantias constitucionais (EOM, art.º 2.º). Além disso, as leis do Território não podem incidir em matérias constitucionalmente reservadas aos órgãos de soberania, nomeadamente à AR, exceptuadas as indicadas no art.º 31.º do EOM. Esta última baliza à competência legislativa do Território é obviamente uma autolimitação estatutária, visto que nenhuma imposição nessa matéria resulta da Constituição.

Em segundo lugar, a legislação local deve naturalmente respeitar o EOM, tanto sob o ponto de vista material, como sob o ponto de vista Orgânico ou de competência, e quanto à forma e ao procedimento.

Por último, as leis do Território, nas áreas de legislação concorrente com a República, devem respeitar o «conteúdo essencial» das leis da República nas matérias indicadas no art.º 41.º-2 do EOM. Trata-se também aqui de uma autolimitação estatutária, visto que tal limite não era constitucionalmente obrigatório.

Em comparação com as regiões autónomas da República (Açores e Madeira), verifica-se que Macau goza hoje de uma autonomia legislativa muito maior:

— as leis da República não se aplicam por princípio a Macau, tendo de haver uma explícita decisão de extensão normativa ao Território, com necessidade de publicação no respectivo jornal oficial (EOM, art.º 72.º);

— a legislação local não carece de invocação de um «interesse específico», como sucede nos casos das Regiões Autónomas[20];

— a competência legislativa local estende-se a diversos temas constitucionalmente reservados à Assembleia da República pelos arts.º 167.º e 168.º da Constituição (EOM, art.º 31.º), que estão constitucionalmente vedados às regiões autónomas;

— as leis locais não têm de respeitar todas as leis gerais da República (como sucede em princípio com as regiões autónomas), mas apenas o conteúdo essencial das leis que versem determinadas matérias e que sejam explicitamente aplicáveis a Macau (EOM, art.º 4 1.º-2);

— fora das áreas indicadas, a legislação local prevalece sempre sobre a legislação da República (art.º 41.º -3).

Isto quer dizer que, salvo as matérias dos arts.º 167.º e 168.º da Constituição não excepcionadas no art.º 31.º do Estatuto, existe a possibilidade de constituir uma ordem jurídica autónoma formada por normas produzidas localmente. Tal como existe um dualismo constitucional, verifica-se também um dualismo de ordens jurídicas em geral.

2.5. A organização judiciária própria

Como território autónomo, Macau não podia deixar de possuir estatutariamente os seus órgãos de governo próprio[21]. Nos termos do n.º 5 do art.º 292.º da CRP, após a última revisão constitucional, Macau passou também a dispor de «organização judiciária própria, dotada de autonomia e adaptada às suas especificidades (…)».

Toma-se agora evidente que a organização judiciária da República (arts.º 212.º e ss.) não vale directamente para o Território, e que Macau deve ter uma organização judiciária sua, independente daquela. Isto quer dizer, seguramente, que os tribunais do Território devem ser autónomos, não integrados na organização judiciária da República. Resta saber se isto é compatível com a atribuição de competência jurisdicional, em assuntos do Território, a tribunais da República[22].

A este respeito, a revisão do EOM operada pela Lei n.º 13/90 aponta inequivocamente para investir os tribunais próprios do Território «na plenitude e exclusividade da jurisdição», confiando ao Presidente da República a competência para determinar o momento em que isto deverá ocorrer (art.º 75.º do EOM), o que pressupõe obviamente prévias reformas legislativas[23]. Mas, entretanto, é o próprio Estatuto que continua a prever a competência de tribunais da República em assuntos jurisdicionais de Macau. É o que sucede com o Supremo Tribunal Administrativo, para o julgamento dos recursos interpostos dos actos do Governador e dos Secretários do Governo (EOM, art.º 19.º-5); é o que acontece com o tribunal da comarca de Lisboa para o julgamento das acções cíveis ou criminais em que sejam réus o Governador ou os Secretários-adjuntos (art.º 2.º-2); é o que se verifica com o Tribunal de Contas da República para decidir os recursos previstos no art.º 66.º do EOM.

E é sobretudo o que ocorre com a competência atribuída ao Tribunal Constitucional para a fiscalização da constitucionalidade e da legalidade das normas emitidas pelos órgãos do Território [EOM, art.º 11.º-1, alínea e); art.º 15.º-2; art.º 30.º-1, alínea a); art.º 40.º-3].

Estas normas atributivas de competência jurisdicional aos tribunais da República colocam dois problemas: (a) se elas são compatíveis com o princípio constitucional da «organização judiciária própria do território»; (b) se é prevista investidura dos tribunais próprios de Macau na «plenitude e exclusividade da jurisdição» implica a caducidade daquelas normas, ocasionando o fim da competência desses tribunais da República (incluindo do Tribunal Constitucional) em matérias relativas a Macau, sem necessidade de alteração do estatuto[24].

Estes problemas não têm que ser aqui resolvidos. Qualquer que seja a solução, afigura-se ser indiscutível que a competência dos tribunais da República — incluindo o Tribunal Constitucional — em assuntos de Macau, se lícita, só pode ser entendida como uma compressão provisória do principio constitucional da autonomia judicial do Território, restrição destinada a desaparecer de acordo com a Constituição e o EOM[25].

Também aqui é de concluir que os tribunais da República, se competentes, só o podem ser nos termos do EOM. Em suma, a CRP, as leis da República e os tribunais da República só estendem a sua acção a Macau em virtude e por via do Estatuto.

Resta saber se o mesmo princípio se verifica também quanto ao sistema constitucional de fiscalização da constitucionalidade e da legalidade.

3. A Fiscalização da Constitucionalidade da Legalidade das Normas de Macau

3.1. O Sistema de fiscalização da CRP e as normas de Macau

Parece evidente que as normas dos arts.º 277.º e ss. da Constituição não se aplicam de per si, directamente, à fiscalização da constitucionalidade e da legalidade das normas de Macau. Só se encontram previstas as normas da República e as normas das regiões autónomas (além das normas de direito internacional aplicáveis a Portugal).

Falta de todo em todo a mínima referência às normas de Macau.

Começando pela fiscalização preventiva (art.º 278.º), mencionam-se as normas emitidas pelos órgãos legislativos da República e pelos órgãos legislativos das Regiões Autónomas, mas não as de Macau. Emergindo a fiscalização preventiva, normalmente, da iniciativa de quem tem de assinar ou promulgar os diplomas — no caso, o Presidente da República e os Ministros da República para as Regiões Autónomas —, é notória a falta de referência ao Governador de Macau, a quem incumbe assinar as leis da Assembleia Legislativa e os seus próprios decretos-leis [art.º 11.º-1, alínea b) do EOM].

Quanto à fiscalização concreta da constitucionalidade e da legalidade (CRP, arts. 207.º e 280.º), mais uma vez falta qualquer referência específica às normas de Macau, ao passo que estão expressamente previstas as normas das regiões autónomas.

O mesmo se verifica flagrantemente no caso do art.º 281.º, relativo à fiscalização abstracta da constitucionalidade e da legalidade, onde a omissão de toda e qualquer referência às normas de Macau contrasta com a meticulosa discriminação das normas regionais e dos órgãos regionais com legitimidade processual na matéria.

Por último, idêntico fenómeno ocorre no caso da inconstitucionalidade por omissão (art.º 283.º da CRP), onde mais uma vez apenas se teve em conta a República e as regiões autónomas, ignorando-se o caso de Macau.

Comprova-se assim, sem margem para a dúvida, que o sistema de fiscalização da CRP não vale directa e automaticamente para as normas de Macau. Resta saber se e em que medida ele se aplica por remissão do Estatuto ou para preencher lacunas do Estatuto.

3.2. A evolução do regime estatutário de fiscalização

Desde o princípio que o EOM contém um sistema específico de fiscalização da constitucionalidade e da legalidade.

Na primitiva versão do Estatuto, o sistema de fiscalização compreendia os seguintes aspectos:

— fiscalização preventiva apenas das leis da Assembleia Legislativa, no caso de o Governador ter recusado a assinatura por motivo de inconstitucionalidade ou de ilegalidade e a Assembleia Legislativa ter confirmado o diploma vetado (art.º 40.º);

— fiscalização sucessiva abstracta incidental, no caso de a Assembleia Legislativa ter recusado a ratificação de um decreto-lei do Governador por motivos de violação da Constituição ou das leis da República (art.º 14.º-3);

— fiscalização sucessiva abstracta ordinária, promovida pela Assembleia Legislativa em relação à violação da Constituição ou das leis da República por qualquer norma local [art.º 31.º-1, alínea c)];

— fiscalização judicial da inconstitucionalidade material das normas locais (art.º 41.º).

Neste regime havia vários aspectos obscuros[26], entre os quais sobressaíam os seguintes:

— saber se o «tribunal competente» para a fiscalização abstracta, preventiva ou sucessiva, a que o EOM se referia sem o identificar [arts.º 31.º-1, alínea c), e 40.º-3], era ou não o Tribunal Constitucional[27];

— saber se a fiscalização judicial prevista no art.º 30.º era ou não uma fiscalização incidental concreta, e se ela admitia recurso para o Tribunal Constitucional[28].

A revisão estatutária operada pela Lei n.º 13/90 veio clarificar e alterar vários aspectos deste regime. Entre os aspectos inovadores mais importantes, são de registar os que consistiram em:

— conferir ao Governador competência para promover a fiscalização abstracta da inconstitucionalidade e da ilegalidade das normas emanadas da Assembleia Legislativa [art.º 11.º-1, alínea e)];

— restringir a legitimidade da Assembleia Legislativa para promover a fiscalização da inconstitucionalidade e da ilegalidade, que passou a abranger apenas as normas emitidas pelo Governador [art.º 31.º-1, alínea c)];

— esclarecer que o «tribunal competente» para a fiscalização abstracta é efectivamente o Tribunal Constitucional [arts.º 11.º- 1, alínea e), 30.º-1, alínea c), e 40.º-3];

— explicitar e alargar o âmbito de fiscalização concreta judicial difusa, de modo a abranger todas as formas de inconstitucionalidade e de ilegalidade (art.º 41.º), e não apenas a ilegitimidade material, embora continuando sem esclarecer expressamente sobre a existência do recurso para o Tribunal Constitucional[29].

3.3. O sistema estatutário de fiscalização

Importa colher a imagem de conjunto do sistema específico de fiscalização da constitucionalidade (e da legalidade) de Macau, na sua actual versão, decorrente da revisão do EOM operada pela Lei n.º 13/90, de 10 de Maio.

Os parâmetros de controlo exterior das normas locais, como já se viu acima, são três: a Constituição, o EOM e as leis da República que prevalecem sobre as leis locais nos termos do Estatuto[30].

A Constituição tanto é parâmetro autónomo, a se, nas normas especificamente relativas a Macau (a começar pelo art.º 292.º), como o é por via de remissão do Estatuto, como sucede com os direitos, liberdades e garantias (art.º 2.º do Estatuto) e com os limites estatutários à competência legislativa local em matérias constitucionalmente reservadas aos órgãos legislativos da República [arts.º 13.º-1 e 30.º-1, alínea c) do EOM].

O Estatuto, por sua vez, sendo originariamente uma lei constitucional — como tal salvaguardada pela CRP —, pode todavia ser alterado por lei ordinária, não sendo claro se as normas afectadas mantêm ou não a sua natureza constitucional originária[31]. Seja como for, a desconformidade estatutária gera ilegitimidade das normas locais, por infracção de normas com valor constitucional ou de normas legais de valor reforçado, sendo o regime de fiscalização em qualquer dos casos idêntico.

Por último, as normas de leis da República só constituem parâmetro das normas locais nos precisos e limitados termos enunciados no Estatuto (art.º 41.º-1 e 2), ou seja, as normas locais só estão limitadas pelo «conteúdo essencial» das leis da República que versem matérias da competência legislativa constitucionalmente reservada à AR e que estejam também abertas à competência do Território nos termos do art.º 31.º do EOM[32].

O controlo da legitimidade constitucional, estatutária e legal das normas locais de Macau cabe ao Tribunal Constitucional, por um lado, e aos demais tribunais, por outro lado[33]. Quanto ao Tribunal Constitucional, em particular, não estando prevista directamente na Constituição a sua competência em relação às normas de Macau, a extensão daquela por efeito do Estatuto só pode ocorrer se a Lei Fundamental o consentir, atento o princípio constitucional de que os órgãos de soberania — entre os quais se incluem os tribunais, em geral, e o Tribunal Constitucional, em particular — só têm a competência que a Constituição lhes atribui ou consinta que a lei lhes atribua (cfr. art.º 113.º-2 da CRP). Não chega a surgir aqui nenhum problema, todavia, visto que a remissão genérica da Constituição para o Estatuto de Macau (art.º 292.º) não poderia deixar de compreender a admissibilidade do alargamento da competência dos tribunais da República (incluindo o Tribunal Constitucional) aos assuntos do Território, acrescendo que é a própria Constituição que explicitamente admite que a lei confira ao Tribunal Constitucional outras atribuições além das constitucionalmente previstas (CRP, art.º 225.º-3)[34].

Como se viu, a competência do Tribunal Constitucional como órgão da justiça constitucional (e equiparada) de Macau está hoje explicitamente prevista no Estatuto, o que não sucedia na versão originária deste, em cuja data, aliás, o Tribunal ainda não existia. A doutrina, porém, já se inclinava decisivamente para essa solução, e o próprio Tribunal Constitucional teve ocasião de se considerar competente como tribunal de recurso em processos de fiscalização concreta da constitucionalidade respeitantes a normas de Macau[35].

O argumento fundamental a favor da competência do Tribunal Constitucional em relação a Macau consistia em que o Estatuto não só não contrariava tal solução, como ela se apresentava como a mais adequada para integrar a óbvia lacuna estatutária relativa ao «tribunal competente» em matéria de fiscalização da constitucionalidade. Além disso, o Tribunal Constitucional é constitucionalmente o órgão supremo da justiça constitucional, pelo que, no silêncio do Estatuto, era lógico considerar aplicável esse princípio constitucional. Acrescia, no caso da fiscalização concreta, uma razão de coerência: sendo evidente que, se os tribunais de Macau desaplicassem uma norma de diploma da República, isso daria lugar a recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo das regras constitucionais, não haveria nenhuma lógica em negar a possibilidade de recurso quando, em vez de uma norma da República, estivesse em causa a desaplicação de uma norma local do Território.

Hoje o Estatuto resolve expressamente a questão da competência do Tribunal Constitucional para a fiscalização abstracta, mas os argumentos mencionados continuam a ser decisivos para resolver no mesmo sentido a questão da intervenção do Tribunal na fiscalização concreta, tanto no caso de inconstitucionalidade, como tem decidido o próprio Tribunal, mas, porventura, também no caso de desaplicação de normas por violação do Estatuto do Território ou por infracção do «conteúdo essencial» de leis da República aplicáveis ao Território e que estatutariamente devam prevalecer sobre as normas locais.

3.4. As particularidades do regime estatutário de fiscalização

Não é necessário grande esforço para mostrar que o regime estatutário de fiscalização da constitucionalidade e da legalidade das normas próprias de Macau apresenta consideráveis divergências em relação ao regime de fiscalização previsto na CRP.

Quanto à fiscalização preventiva (art.º 40.º-3):

— ela não está prevista como faculdade genérica do Governador em relação a todo e qualquer diploma legislativo que tenha de assinar;

— só se prevê no caso de o Governador ter vetado uma lei da Assembleia Legislativa por razões de inconstitucionalidade, por desconformidade estatutária ou por ilegalidade, e a Assembleia Legislativa confirmar a lei vetada, diferentemente do que ocorre em Portugal, onde. Segundo a doutrina dominante, o Presidente da República não pode recorrer ao Tribunal Constitucional depois de ter optado pelo veto político ainda que fundado em considerações de inconstitucionalidade;

— a fiscalização é obrigatória, uma vez verificada a situação referida, sendo portanto um dever do Governador enviar o diploma ao Tribunal Constitucional;

— abrange não apenas a fiscalização da inconstitucionalidade, mas também a desconformidade estatutária e a desconformidade com leis da República prevalecentes em Macau, diferentemente do que sucede na CRP, mesmo em relação à legislação regional, em que só pode versar a inconstitucionalidade;

— só pode ter por objecto as leis da Assembleia Legislativa e não os decretos-leis do próprio Governador, em relação aos quais não pode verificar-se a situação descrita de veto e confirmação pela Assembleia;

— no caso de o Tribunal Constitucional se pronunciar pela inconstitucionalidade, o veto toma-se definitivo e a confirmação da Assembleia Legislativa toma-se ineficaz, ao passo que no regime da CRP, no caso de leis da AR, esta ainda pode confirmar o decreto, habilitando o Presidente da República a promulgar o diploma, apesar do juízo de inconstitucionalidade.

Quanto à fiscalização sucessiva abstracta incidental (art.º 15.º-2):

— é uma figura peculiar, que não tem paralelo na CRP;

— só pode ter por objecto os decretos-leis do Governador sujeitos à ratificação na Assembleia Legislativa, a qual seja recusada por motivos de inconstitucionalidade, de desconformidade estatutária ou ilegalidade (nem todos os decretos-leis do Governador podem ser sujeitos a ratificação, como se estabelece no art.º 15.º-1 do EOM);

— a fiscalização é obrigatória, uma vez verificada a situação descrita, devendo o Governador enviar o diploma ao Tribunal Constitucional;

— não existe um pedido de declaração de inconstitucionalidade, como no art.º 281.º da CRP, mas sim a submissão ao Tribunal Constitucional da questão de constitucionalidade suscitada;

— não é líquido se o efeito da declaração de inconstitucionalidade ou ilegalidade é a confirmação de recusa de ratificação ou se aquela se sobrepõe a esta, com os efeitos do art.º 282.º da CRP[36].

Quanto à fiscalização abstracta comum arts.º 11.º-1, alínea e), e 30.º-1, alínea a)]:

— o pedido ao Tribunal Constitucional não tem que necessariamente requerer a declaração de inconstitucionalidade (art.º 281.º da CRP), mas apenas a respectiva «apreciação»;

— a iniciativa da fiscalização das leis da Assembleia Legislativa cabe ao Governador, enquanto que, em contrapartida, a da fiscalização das normas do Governador (decretos-leis ou regulamentos) cabe à Assembleia Legislativa;

— podem ser objectivo de fiscalização apenas as normas locais (leis da Assembleia Legislativa e os diplomas do Governador), mas não as leis da República aplicáveis a Macau que contrariem as normas constitucionais sobre Macau ou que infrinjam o EOM (e também não as normas de EOM, por violação da Constituição);

— os parâmetros de controlo são a CRP, o EOM e as leis da República prevalecentes, mas o art.º 30.º-1, alínea a), do Estatuto parece incluir também as próprias leis locais (da Assembleia Legislativa de Macau), o que abarcaria na fiscalização pelo Tribunal Constitucional também a ilegalidade dos regulamentos do Governador contrários às respectivas leis[37].

Quanto à fiscalização concreta, o Estatuto equipara ao controlo da constitucionalidade o controlo da desconformidade das normas locais com o próprio EOM e com as leis da República estatutariamente prevalecentes no Território.

Por último, quanto à inconstitucionalidade por omissão, ela não está prevista em relação às normas de Macau.

Em resumo, falta um tipo de fiscalização — a inconstitucionalidade por omissão — e, com a possível excepção da fiscalização concreta, as demais figuras são em geral mais restritas do que as da CRP[38].

Desnecessário se torna sublinhar que a fiscalização das normas da República respeitantes a Macau não tem qualquer particularidade prevista no Estatuto, seguindo portanto o regime comum estabelecido na Constituição. A única particularidade está em que, além da inconstitucionalidade, elas podem também violar o próprio Estatuto do Território, o qual, mesmo que não fosse uma lei de valor constitucional, teria de ser contado entre as leis de valor reforçado, cuja fiscalização é constitucionalidade equiparada à da inconstitucionalidade [CRP, art.º 280.º-2, alínea a), e art.º 281.º-1, alínea b)][39].

A este propósito, deve ainda observar-se que os órgãos de governo próprio de Macau não têm poder para requerer a verificação da inconstitucionalidade nem da desconformidade estatutária de normas da República aplicáveis ao Território, mesmo que elas infrinjam a autonomia constitucional ou estatutária deste. Quanto à fiscalização abstracta por via de acção directa junto do Tribunal Constitucional, o Estatuto ocupa-se apenas das normas locais. Diferentemente se passam as coisas obviamente no caso da fiscalização concreta incidental, como decorre explicitamente do art.º 41.º do Estatuto.

3.5. Incompatibilidade dos dois regimes

Deste rol de diferenças tem de concluir-se que o regime de fiscalização das normas locais previsto no EOM é claramente distinto do regime da CRP. Há figuras totalmente novas; outras, aparentemente idênticas, possuem um regime substancialmente diferente. Trata-se de outro regime, que não está em consonância, nem é possível harmonizar, com o da Constituição.

A fiscalização preventiva obedece a uma filosofia totalmente diversa e até oposta à CRP (o art.º 279.º desta não tem nenhuma aplicação). A fiscalização abstracta sucessiva como incidente do processo de ratificação não tem pura e simplesmente paralelo na CRP. A fiscalização sucessiva abstracta oferece igualmente algumas peculiaridades, desde logo quanto à legitimidade processual. A fiscalização da inconstitucionalidade por omissão não está sequer prevista. A fiscalização concreta incidental será a que porventura mais se aproxima da Constituição.

Não pode tirar-se outra conclusão senão a de que a relação entre o regime da CRP e o do EOM não é a que se estabelece entre um regime geral e um regime especial, mas sim a de diferentes regimes. O regime do EOM não é um mais em relação ao da CRP, é outra coisa. Não seria possível aplicá-los simultaneamente e, em todo o caso, a verdade é que o Estatuto estabelece um regime próprio em substituição do da Constituição.

Não quer isto dizer que, como dissemos outrora, não seja de recorrer à CRP para interpretar o EOM e mesmo integrar os seus aspectos lacunosos[40]. Por exemplo, parece razoável recorrer ao art.º 278.º da CRP para efeitos dos prazos de recurso para o Tribunal Constitucional e para a emissão da decisão deste. Também o art.º 280.º, mutatis matandis, deve servir para integrar o regime de recurso das decisões dos tribunais de Macau em questões de constitucionalidade e legalidade das normas do Território. Igualmente, os arts.º 281.º e 282.º devem servir para definir o alcance jurídico-constitucional da fiscalização abstracta da constitucionalidade e da legalidade prevista no Estatuto.

Todavia, só pode recorrer-se à CRP para resolver problemas que o EOM levanta e não resolveu; já não se pode recorrer à CRP para enxertar à outrance no EOM soluções próprias da Lei fundamental da República, quando se toma evidente que o EOM contém o seu próprio e diferente regime.

É o que sucede justamente em matéria da fiscalização abstracta sucessiva, tanto quanto à legitimidade processual, como quanto à própria filosofia dessa fiscalização no EOM.

4. A Fiscalização Abstracta e a Legitimidade Processual

4.1. A diferença de filosofia

Recorde-se que no EOM a fiscalização abstracta visa permitir ao Governador impugnar a legitimidade das normas da Assembleia Legislativa, e a esta contestar a validade das normas emitidas por aquele.

O propósito não é apenas a defesa da constitucionalidade ou da legalidade em si mesma. Se assim fosse, então não se entenderia que ambos aqueles órgãos não tivessem legitimidade para questionar todas as normas do Território, independentemente da autoria, como sucede no regime da CRP. O que está em causa no EOM é sobretudo a fiscalização recíproca do Governador e da Assembleia Legislativa, num jogo cruzado de checks and balances, de separação e de mútuo controlo do poder dos dois órgãos do governo próprio do Território.

É indesmentível que toda esta filosofia seria subvertida se se admitisse que as entidades referidas nas alíneas a) a f) do n.º 2 do art.º 281.º da CRP tivessem legitimidade para questionar junto do Tribunal Constitucional a validade constitucional, estatutária ou legal das normas do Território. Qual seria a lógica, por exemplo, de reconhecer a 23 deputados à AR o poder de impugnar qualquer norma de Macau junto do Tribunal Constitucional, quando é verdade que a própria Assembleia Legislativa de Macau só pode impugnar as normas emanadas do Governador, e este só pode questionar as normas emanadas da Assembleia? A que título conferir legitimidade processual às entidades referidas no n.º 2 do art.º 281.º da CRP, quando é indiscutível que o EOM previu expressamente a matéria, e não reconheceu tal legitimidade senão à Assembleia Legislativa e ao Governador de Macau? Não pode deixar de concluir-se que a aplicação do n.º 2 do art.º 281.º da CRP à impugnação da constitucionalidade das normas de Macau não apenas não está prevista no Estatuto, mas também é desconforme com a filosofia estatutária nessa matéria[41].

Não é possível ler o EOM neste ponto como se ele tivesse querido apenas acrescentar os órgãos de governo próprio do Território ao elenco constitucional das entidades que têm poder de requerer a fiscalização abstracta da constitucionalidade ou ilegalidade de normas jurídicas. Desde logo, seria natural que o dissesse, se fosse esse o propósito (e teria sido fácil dizê-lo); depois, e sobretudo, seria necessário que a referida norma constitucional fosse aplicável por si mesma ao caso das normas de Macau, o que, como se mostrou, não se verifica.

A referida norma constitucional só poderia valer para as normas de Macau por via do Estatuto. Sucede que este não a escolhe nem devolve para ela. o Estatuto não rejeita a aplicação da norma constitucional; limita-se a não a fazer aplicar às normas do Território, regulando de modo diferente a matéria.

4.2. A auto-suficiência do Estatuto

Adquirido que a fiscalização da constitucionalidade da conformidade estatutária e da legalidade das normas de Macau só pode ter lugar nos termos do EOM, tem de afastar-se à partida a possibilidade de recorrer a outras leis ordinárias como possível suporte legal da intervenção de órgãos da República no pedido de fiscalização abstracta dessas normas.

É manifestamente irrelevante, por exemplo, o art.º 1.º-2 da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional), segundo o qual esse tribunal «exerce a sua jurisdição no âmbito de toda a ordem jurídica portuguesa». À partida, o máximo que, com algum esforço de interpretação, se retira dessa norma é que o Tribunal estende a sua competência ao Território de Macau, o que justamente não está em discussão, visto que é o próprio Estatuto que tal prevê; o que está em causa é a legitimidade para fazer intervir o Tribunal, e sobre tal assunto o EOM nada pode acrescentar[42].

Também o Estatuto do Provedor de Justiça — que é uma das entidades mencionadas no art.º 281.º-2 da CRP — nada adianta à questão que aqui importa, pois o preceito que diz respeito à competência relativa à fiscalização da constitucionalidade limita-se a remeter para a CRP (Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, art.º 20.º-3 e 4).

Não pode igualmente recorrer-se à Lei Orgânica do Ministério Público (Lei n.º 47/86, de 15 de Outubro), apesar de ela mencionar entre as competências do Procurador-Geral da República a de «requerer ao Tribunal Constitucional a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade de quaisquer normas» [art.º 10.º-2, alínea c)]. Primeiro, não existe nenhum motivo para pensar que na redacção desse preceito se terá pensado noutra coisa que não fosse enunciar as atribuições do Procurador-Geral da República em matéria de fiscalização da constitucionalidade, tal como decorrem da CRP, sem qualquer inovação quanto ao âmbito das normas sujeitas a controlo abstracto; depois, e principalmente, a lei orgânica do Ministério Público, como lei ordinária da República que é, não poderia, em qualquer caso, contrariar o EOM.

A este respeito, há ainda duas considerações dignas de nota. Por um lado, a referida norma menciona apenas a fiscalização da inconstitucionalidade, o que não se coaduna com o sistema estatutário de fiscalização, que abarca igualmente a desconformidade estatutária e a legalidade por violação das leis da República prevalecentes no Território. Por outro lado, não se vê nenhuma razão relevante para privilegiar o Procurador-Geral da República entre as entidades mencionadas no n.º 2 do art.º 281.º da Constituição, de modo a reconhecer-lhe excepcionalmente uma faculdade que as demais não têm[43]. Se o art.º 281.º-2 da CRP houvesse de aplicar-se à fiscalização das normas locais de Macau, então haveria de aplicar-se por inteiro e não apenas quanto ao Procurador-Geral da República.

4.3. A natureza fechada do sistema estatutário de fiscalização

O sistema estatutário de acesso ao Tribunal Constitucional para suscitar, por via directa e abstracta, a ilegitimidade das normas locais de Macau é indubitavelmente mais fechado do que o da CRP em relação às normas da República, o que não pode deixar de dificultar a sua fiscalização e declaração de inconstitucionalidade ou ilegalidade com força obrigatória geral.

Não se diga, porém, que assim se deixa margem para a infracção impune da CRP, do Estatuto e das Leis da República, por parte das autoridades normativas locais, por inércia concertada entre os dois órgãos locais com competência para desencadear o controlo de constitucionalidade, que por sinal são também os órgãos legislativos do Território. A este propósito é de recordar que o Governador é responsável perante o Presidente da República, inclusive pelos actos inconstitucionais que ele pratique ou pela inércia face às leis inconstitucionais que ele assine ou deixe de vetar.

Por outro lado, existe a fiscalização concreta, a cargo dos diversos tribunais do Território (ou dos tribunais da República com competência em relação a ele), estando sempre aberta ao Ministério Público, e aos interessados, nos termos da lei processual constitucional — que é a Lei do Tribunal Constitucional — a possibilidade de suscitar os incidentes de constitucionalidade ou de legalidade que se mostrarem justificados. E, em última instância, parece não ser de afastar a possibilidade de declaração abstracta da inconstitucionalidade por via do mecanismo especial previsto no art.º 281.º-3 da Constituição, ou seja, mediante a generalização de sucessivos juízos concretos de inconstitucionalidade de uma certa norma por parte do Tribunal Constitucional[44].

De todo o modo, por mais limitado e, porventura, incongruente que seja o regime estatutário de fiscalização, isso não pode ser argumento bastante para passar por cima e sobrepor-lhe o da Constituição. O eventual juízo de valor negativo acerca das opções político-legislativas do Estatuto nesta matéria só é relevante de jure condendo, não podendo servir para interpretar correctivamente o texto estatutário.

4.4. O regime do EOM e os princípios da CRP

Sendo mais estreitas as possibilidades de obter a fiscalização abstracta das normas do Território do que das normas da República, a verdade é que não há constitucionalmente ilícito nisso. A fiscalização abstracta nos termos previstos no art.º 281.º da CRP e com a amplitude de legitimidade processual que aí tem não constitui seguramente um daqueles princípios constitucionais que o EOM sempre teria de respeitar (cf. supra, 2.2).

Se se tomar como precipitado último desses princípios o elenco dos limites materiais de revisão (CRP, art.º 288.º), é fácil ver que entre eles não consta sequer a garantia da fiscalização abstracta sucessiva. O que chocaria a ordem pública constitucional no seu mínimo infrangível seria a ausência de toda e qualquer «fiscalização da constitucionalidade por acção ou por omissão de normas jurídicas», como dispõe a alínea l) do referido preceito constitucional. Ora, não é isso o que sucede. Para além da fiscalização judicial difusa concreta (art.º 41.º do EOM), da fiscalização preventiva das leis da Assembleia Legislativa, e da fiscalização sucessiva abstracta incidental dos decretos-leis do Governador, o Estatuto prevê a fiscalização abstracta genérica, a todo o tempo, das normas do Território, tanto do Governador como da Assembleia Legislativa, nos termos descritos, que não são despiciendos.

Seria de todo em todo descabido considerar que tal regime de fiscalização da legitimidade constitucional e legal é globalmente e intoleravelmente exíguo[45]. Nesta perspectiva, o regime de fiscalização do EOM é constitucionalmente inatacável. Em última análise, o Estatuto poderia até ter afastado de todo em todo a fiscalização abstracta. E quanto à intervenção do Tribunal Constitucional, já se mostrou que ela é neste momento puramente transitória, enquanto não se implementar a integral autonomia judicial de Macau, como a Constituição de resto impõe e a citada lei de organização judiciária de Macau devidamente dispõe. Tudo isto torna definitivamente contingentes e despiciendos os argumentos de defesa da intervenção de entidades estranhas ao Território na fiscalização abstracta das normas locais. Afinal, deixando o Tribunal Constitucional de poder intervir na fiscalização da constitucionalidade dessas normas, deixa de ter qualquer relevância a questão ora suscitada, o que pelo menos demonstra a sua relatividade.

5. Conclusões

Terminado o discurso argumentativo, cumpre reunir as conclusões apuradas. Sumariamente apresentadas, são as seguintes:

1. O sistema de fiscalização de constitucionalidade e de legalidade previsto na CRP (arts.º 277.º e ss.) não se aplica directamente a Macau.

2. O EOM estabelece ele mesmo um regime próprio de fiscalização da constitucionalidade e da legalidade das normas locais.

3. O regime de fiscalização da constitucionalidade e da legalidade previsto no EOM é um regime especial, em múltiplos aspectos divergente do da CRP e incompatível com ele.

4. A fiscalização da constitucionalidade e da legalidade, relativamente às normas do Território, só pode verificar-se nos termos do respectivo Estatuto.

5. O regime da CRP só pode valer a título de interpretação e eventualmente de integração dos aspectos omissos no regime do EOM, e nunca em discrepância com a filosofia deste nessa matéria.

6. Quanto à fiscalização sucessiva abstracta, ela só pode ocorrer nos termos do art.º 11.º, n.º 1, alínea e), e do art.º 30.º, n.º 1, alínea a), do EOM, que conferem apenas aos órgãos de governo próprio do Território a competência para desencadear a apreciação da inconstitucionalidade ou da legalidade das normas locais junto do Tribunal Constitucional.

7. Consequentemente, as entidades referidas no n.º 2 do art.º 281.º da CRP não têm legitimidade para requerer ao Tribunal Constitucional a declaração da inconstitucionalidade ou da ilegalidade de normas constantes de diplomas de Macau.

8. Enfim, não pode deixar de acompanhar-se a decisão contida no Acórdão n.º 292/91 do Tribunal Constitucional, que fez uma correcta interpretação da lei Fundamental da República e do Estatuto Orgânico de Macau.

Notas:

[1] O presente texto reproduz com pequenas alterações formais o «parecer» que elaborámos sobre o assunto, antes da decisão do TC, por encargo do Gabinete de Assuntos Legislativos de Macau.

[2] Designaremos por «normas locais» as normas emitidas pelos órgãos de governo próprio do território de Macau, a saber, as leis da Assembleia Legislativa e os decretos-leis e demais diplomas normativos do Governador, nos termos dos arts. 13.º, 14.º 15.º, 30.º-1, alínea c), e 31.º do EOM.

[3] J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª edição, II vol., Coimbra 1985, pp. 477 e ss. Sublinhados no original.

[4] No contexto da referida norma a expressão «sob administração portuguesa» possui o sentido compreensivo de «sob a alçada da soberania portuguesa».

[5] Não é fácil qualificar o estatuto do território à face do direito internacional, como mostra a falta de acordo da doutrina. Cfr. Afonso R. Queiró, Lições de direito administrativo, Coimbra 1976. p.378; J. Miranda, A Constituição de 1976, Lisboa, 1978, p. 212; Vitalino Canas, Relações entre o ordenamento constitucional português e o ordenamento jurídico do território de Macau, Lisboa 1987, esp. p. 5 ss.

[6] Lições de direito administrativo, cit., pp. 378 s.

[7] Onde se dizia: «o território de Macau, sob administração portuguesa…», passou a dizer-se: «o território de Macau, enquanto se mantiver sob administração portuguesa… ».

[8] É menos pacífica a questão de saber se a CRP procede ou não a uma incorporação constitucional do estatuto de Macau. Jorge Miranda tem sustentado desde o início que existe uma «recepção material» do estatuto pela Constituição (cfr. Estudos sobre a Constituição, I vol., Lisboa, 1977, p. 358). Essa tese foi porém contrariada por Vitalino Canas (ob. cit., pp. 22 ss.), que lhe opôs uma concepção de separação e independência dos dois ordenamentos. Seja como for, não se torna necessário tomar aqui posição sobre o assunto.

[9] A Constituição de 1976, cit., p. 214.

[10] J. A. Dimas de Lacerda, «Território Autónomo de Macau», Revista d o Ministério Público, ano 1, vol. 2, p. 78.

[11] Ob. cit. Sublinhado acrescentado.

[12] O próprio Tribunal Constitucional compartilha expressamente deste ponto de vista, como pode ler-se no Acórdão n.º 245/90: «É um facto que a Constituição não rege directa e automaticamente para o território de Macau e que este tem a sua «constituição», verdadeiramente no respectivo Estatuto (…)» (Diário da República, II série, de 22/1/1991).

[13] Como diz José Magalhães («Sobre a génese e o alcance da autonomia legislativa de Macau», artigo a publicar em número próximo da Revista de Administração Pública de Macau), «as disposições constitucionais aplicáveis a Macau farão parte do ordenamento jurídico do território até 1999, ocupando o lugar cimeiro das respectivas normas» e «vigoram por efeito próprio».

[14] No mesmo sentido, por último, José Augusto Sacadura Garcia Marques, «Contribuição para a reforma do modelo judiciário de Macau», Revista do Ministério Público, n.º 44, pp. 25 s.

[15] A Constituição de 1976, cit., p. 214.

[16] Essa devolução para a CRP não deixa de levantar dificuldades de delimitação. Quanto aos direitos, liberdades e garantias, é problemático saber se eles abrangem apenas os que constam do respectivo título constitucional (arts. 25.º a 57.º) ou se também os «direitos de natureza análoga», previstos na CRP (cf art.º 17.º); é seguro que a remissão para a CRP abrange o próprio regime constitucional dos direitos, liberdades e garantias (arts. 18.º e ss.), mas é de questionar se ele compreende todas as disposições constitucionais sobre a matéria ou se apenas o regime material desses direitos, com exclusão da intervenção dos órgãos da República competentes em matéria de direitos fundamentais (v.g. Provedor de Justiça, Alta Autoridade para a Comunicação Social). Quanto aos «princípios constitucionais» que o EOM considera como limite à autonomia normativa de Macau, é evidente que estão compreendidos todos os que como tais devam ser considerados, qualquer que seja o seu objecto, desde os princípios fundamentais introdutórios da Constituição, passando pelos respeitantes aos direitos sociais e à «constituição judiciária». No conteúdo mínimo dos princípios constitucionais fundamentais devem incluir-se pelo menos aqueles que constituem limites materiais de revisão constitucional (art.º 288.º), pois são esses que constituem, no próprio juízo da Constituição, o seu verdadeiro cerne.

[17] Por isso não tem fundamento a afirmação, constante de uma das declarações de voto de vencido do Acórdão n.º 292/91, segundo a qual a Lei n.º 13/90 teria procedido a «uma vinculação mais estreita e mais decisiva do ordenamento jurídico de Macau à Lei Fundamental portuguesa».

[18] Vitalino Canas, ob. cit. p. 16.

[19] Cfr. Afonso R. Queiró, loc. cit.

[20] Na primitiva versão do EOM, todavia a autonomia legislativa só valia nos casos de «interesse exclusivo do território» [arts. 13.º-1 e 31.º- 1, alínea a) do EOM, na redacção da Lei n.º 1/76]. Tal requisito foi abolido na revisão do Estatuto levada a cabo pela Lei n.º 13/90.

[21] Mas é assaz mitigado o grau de autogoverno num esquema que em muito releva da forma de governo das antigas «províncias ultramarinas» (cfr. J. Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo III, Coimbra, 1983, p. 202). O Governador é livremente nomeado e exonerado pelo Presidente da República, perante o qual responde, cabendo-lhe a responsabilidade directa do governo do território. A Assembleia Legislativa só em parte é directamente eleita, sendo uma parte dos deputados designados directamente pelo próprio Governador. A Assembleia pode ser dissolvida pelo Presidente da República sob proposta do Governador; ela pode censurar o governo, mas isso não implica a demissão do Governador.

[22] Já antes da revisão constitucional, quando a Constituição era omissa acerca da matéria a doutrina punha em dúvida a competência dos tribunais da República em relação pelo menos ao direito local de Macau. Respondendo à pergunta «o território de Macau está sujeito à jurisdição do Supremo Tribunal de Justiça e dos demais tribunais portugueses?», Jorge Miranda respondia: «decerto que sim no respeitante à aplicação do direito comum português: mais duvidosamente quanto à aplicação do direito local», (Manual de Direito Constitucional, tomo III, cit., pág. 203).

[23] Já foi aprovada a lei sobre a «organização Judiciária de Macau», (Lei n.º 121/91, de 29 de Agosto) destinada a dar execução àquele normativo constitucional, e que teve por base uma proposta de lei do Governo (Diário da Assembleia da República, II série-A, n.º 66, de 7 de Setembro de 1990), a qual prevê a «localização» da justiça no território, incluindo a criação de um «tribunal de última instância», que virá a absorver as funções dos tribunais superiores da República sem excluir o Tribunal Constitucional, embora mantendo transitoriamente a competência dos tribunais supremos da república para certos recursos.

[24] É o que sugere António Vitorino, na sua conferência sobre «Macau na Jurisprudência do Tribunal Constitucional», proferida em Macau em 12 de Dezembro de 1990, e que se encontra em vias de publicação na Revista de Justiça, de Macau, e na revista Revista de Justiça, de Macau, e na revista Estado e Direito.

[25] António Vitorino (ibidem) afirma neste sentido, que a «previsão do referido art. 75.º do EOM significa pois que antes de 1999, o Presidente da República Portuguesa deverá proceder à transferência para o Tribunal Superior de Macau, entre outras, da competência de fiscalização de constitucionalidade e da legalidade dos diplomas aplicáveis a Macau».

[26] Para a discussão destes pontos na doutrina ver JJ. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., vol. II, nota ao art.º 296.º; Vitalino Canas, ob. cit. pp. 20 ss.

[27] A solução afirmativa era admitida pela doutrina, com excepção de Vitalino Canas, (ob. cit., p. 21 ss.), que considerava «vivamente desaconselhável» a intervenção do TC na fiscalização abstracta de normas locais (mas que, inconsequentemente, a admitia no caso de fiscalização concreta).

[28] A opinião da doutrina era no sentido afirmativo e o próprio TC veio a considerar-se competente para conhecer de recursos de constitucionalidade envolvendo normas de Macau pela primeira vez no Acórdão n.º 284/89 (Diário da República, II série, de 12/6/1989).

[29] Sobre estas alterações, ver António Vitorino (loc. cit.).

[30] Deixem-se de lado os parâmetros normativos intraterritoriais, como por exemplo o respeito das leis locais pelos regulamentos locais, que se nos afigura que não entram no sistema específico de controlo da constitucionalidade e da legalidade previsto no Estatuto, pese embora o teor literal do art.º 30.º-1 al. a), do EOM (cfr. infra nota 36).

[31] No sentido afirmativo parece ir o entendimento de Jorge Miranda Manual de Direito Constitucional, tomo II, 1981, pp. 361 ss.

[32] É reduzida a autonomia prática desta figura da ilegalidade de normas locais de Macau por infracção de leis da República aplicáveis àquele território. Na verdade, acontecerá normalmente que, se uma norma local infringe o conteúdo essencial de uma lei da República, ela estará com isso a violar materialmente a Constituição, incorrendo por isso em inconstitucionalidade, que consome e prevalece sobre a ilegalidade. Por exemplo, não é fácil imaginar que uma lei de imprensa local possa infringir o conteúdo essencial da lei de imprensa da República — suposto que esta era aplicável a Macau — sem com isso estar a infringir a garantia constitucional da liberdade de imprensa. A este propósito, António Vitorino (loc. cit.) observa pertinentemente: «Qual seja esse núcleo essencial depende da interpretação de cada complexo normativo em comparação, restando saber se havendo violação do núcleo essencial de uma norma da República, nas matérias em causa, por uma norma dimanada do Território, tal violação não prefigurará desde logo, na maioria dos casos ou, pelo menos, nos mais relevantes, uma verdadeira e própria situação de inconstitucionalidade, em que a operatividade da norma de conflitos acabará por só produzir efeitos clarificadores do ordenamento até à correspondente declaração de inconstitucionalidade».

[33] Cabem aqui tanto os tribunais próprios do território como os tribunais da organização judiciária da República que transitoriamente mantêm competência jurisdicional em relação a assuntos de Macau que envolvam a aplicação de normas locais.

[34] Subsiste, entretanto, o problema da compatibilidade da competência do TC em relação a Macau com a actual norma do n.º 5 do art.º 292.º da CRP, que prevê a organização judiciária própria para Macau (cfr. supra, 2.4).

[35] Cfr. supra nota 27.

[36] Esta forma peculiar de fiscalização abstracta sucessiva ainda é uma fiscalização «quase-preventiva», visto que o diploma, apesar de já publicado e porventura já em vigor, ainda se encontra pendente do incidente de ratificação, pelo que ainda não é um diploma definitivo. Há, de resto, um óbvio paralelo entre esta figura e a fiscalização preventiva das leis da Assembleia, nos termos em que esta se encontra no EOM.

[37] Talvez seja de limitar a fiscalização dos regulamentos também à inconstitucionalidade, à desconformidade estatutária e à desconformidade com leis da República por uma interpretação restritiva do preceito, nessa matéria.

[38] A este propósito, José Magalhães (loc. cit.) observa que «as garantias da Constituição sofrem adequação à situação especial do Território, sendo designadamente mais escassos os meios de fiscalização da constitucionalidade dos actos normativos».

[39] É certo que essa figura só permite que o TC se ocupe da fiscalização de normas de natureza legislativa, o que exclui que ele possa vir a ser chamado a apreciar em via de recurso, ou por via de acção directa a desconformidade estatutária de normas não legislativas da República, salvo se essa desconformidade for concebida como inconstitucionalidade ou se o Estatuto ampliar a respectiva competência do Tribunal.

[40] Cfr. a nossa Constituição da República Portuguesa anotada, loc. cit., supra, nota 3.

[41] António Vitorino, depois de descrever o sistema estatutário de fiscalização abstracta, limita-se a observar que «deste modelo decorre que o EOM não consagra expressamente nenhum mecanismo de iniciativa do controlo da constitucionalidade e de legalidade a cargo dos órgãos de soberania da República Portuguesa» (ob. cit.). Mas, face ao fica dito, há-de concluir-se justamente que tal possibilidade só poderia existir se o Estatuto a previsse expressamente ou, ao menos, nada dissesse quanto à questão da legitimidade para requerer a fiscalização da constitucionalidade e da legalidade das normas locais ao TC, caso em que poderia falar-se de um ponto omisso, a ser integrado com recurso ao regime geral da Constituição.

[42] O propósito da referida norma da Lei do Tribunal Constitucional foi efectivamente o de esclarecer a competência do Tribunal na fiscalização «dos diplomas da República Portuguesa aplicáveis em Macau», bem como admitir a possibilidade de atribuir ao TC a competência, que nessa altura o Estatuto conferia a um não identificado «tribunal competente», para apreciar a «inconstitucionalidade dos diplomas emitidos pelos órgãos do mesmo território», como se pode ler em A. Barbosa de Melo e J. M. Cardoso da Costa «Projecto de lei sobre a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional», Boletim da Faculdade de Direito, vol. LX, Coimbra 1984, pp. 223 ss. Nada disso hoje suscita dúvidas.

[43] Se houvesse que privilegiar alguém, haveria de ser manifestamente o PR, que é o órgão de soberania constitucionalmente responsável pela administração do território.

[44] A este respeito José Magalhães (ob. cit.) é afirmativo: «Não se vislumbram razões para não considerar plenamente aplicável a actos normativos de Macau a regra constitucional que prevê a declaração com força obrigatória geral da inconstitucionalidade ou ilegalidade de qualquer norma que tenha sido como tal considerada pelo Tribunal Constitucional em três casos». Tudo depende de saber se tal hipótese é congruente com o sistema estatutário de fiscalização. Na verdade, o facto de não ser aplicável o n.º 2 do art. 281.º da CRP não implica necessariamente a inaplicabilidade do seu n.º 3, pois o mecanismo aí previsto é essencialmente diverso da impugnação directa nos termos do n.º 2, apresentando-se como decorrência natural da fiscalização concreta e nem sequer precisando da iniciativa de um órgão exterior ao TC (cfr. Lei do Tribunal Constitucional, art.º 82.º, preceito que sintomaticamente vem incluído no capítulo da lei dedicado à fiscalização concreta). A intervenção do Ministério Público nesse Processo — que não tem de ser do próprio PGR, diferentemente do que ocorre no pedido de fiscalização abstracta propriamente dita — é essencialmente distinta do pedido de declaração de inconstitucionalidade ao abrigo do n.º 2 do art. 281.º da CRP. E seria pouco razoável que o TC se visse forçado a repetir vezes sem conta o mesmo juízo de inconstitucionalidade a respeito de uma certa norma local de Macau em sede de fiscalização concreta e não pudesse expurgar a norma, mediante uma declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral.

[45] É certo que falta a figura da inconstitucionalidade por omissão, como se viu. Mas na verdade, na medida em que haja normas constitucionais aplicáveis a Macau que não sejam exequíveis por si mesmas (v.g., a norma respeitante à «organização judiciária própria»), a sua exequibilidade depende de leis da República e não de leis de Macau.

* J. J. Gomes Canotilho: Professor da Faculdade de Direito de Coimbra.

Vital Moreira: Investigador da Faculdade de Direito de Coimbra.

Texto inicialmente publicado na Revista do Ministério Público.

Parecer publicado na edição de “O Direito” de Março de 1992.

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