Doutrina

Ordem constitucional e fiscalização da constitucionalidade em Macau

Jorge Miranda*

Consulta

Pretende-se saber se é ou não possível às entidades mencionadas na alínea a) do n.º 1 do artigo 281.º da Constituição da República Portuguesa (Presidente da República, Presidente da Assembleia da República, Primeiro-Ministro, Provedor de Justiça, Procurador-Geral da República e um décimo dos deputados à Assembleia da República) requerer ao Tribunal Constitucional a apreciação abstracta e sucessiva da inconstitucionalidade e (ou) da ilegalidade (com fundamento em violação do Estatuto Orgânico de Macau) de normas constantes de diplomas aprovados pelos órgãos de governo próprio do Território.

Parecer

1. Macau é um território sob administração portuguesa que se rege por estatuto adequado à sua situação especial – assim prescreve o artigo 292.º, n.º 1, da Constituição (correspondente ao artigo 5.º, n.º 4, no texto adoptado entre 1976 e 1989[1].

Não se encontra, pois, integrado no território nacional, se bem que a sua relação com a República seja uma relação complexa de direito público interno – conforme explicita o estatuto (artigo 2.º)[2].

2. Sendo territórios diferentes e, mais do que isso, comunidades políticas distintas (artigos 1.º e 5.º da Constituição, por um lado, e 292.º, por outro lado), distintas não podem deixar de ser as ordens jurídicas – não só por estritas considerações lógico-formais mas sobretudo por razões políticas, económicas, sociais e culturais. Há uma ordem jurídica da República Portuguesa, tendo por destinatários permanentes os cidadãos portugueses e ligada ao território nacional; e há uma ordem jurídica de Macau, tendo por destinatários permanentes os residentes em Macau e incindível desse Território.

3. Ordens jurídicas diversas não são, porém, ordens jurídicas sem comunicação. Em primeiro lugar, em tese geral, a pluralidade de ordenamentos – mesmo de diversos Estados e entre os direitos internos e o direito internacional – é um dado básico da experiência, cada vez mais generalizadamente reconhecido pela doutrina[3]; e ela postula entrosamento, interpenetração, integração sistemática, não afastamento, separação, solução de continuidade.Em segundo lugar, a “administração portuguesa” de que fala a Constituição não pressupõe apenas normas jurídicas ex professo reguladoras dos termos em que se exerça; pressupõe também princípios jurídicos comuns a Portugal e a Macau.

4. “O Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade democrática”, declara o artigo 3.º, n.º 2, da Lei Fundamental. Ora, a “administração portuguesa” de Macau é uma manifestação de poder desse Estado e, por isso, por coerência consigo mesma, tem de se fundar nos mesmos princípios constitucionais, tem de agir em conformidade com eles, não os pode contrariar sob pena de invalidade (artigo 3.º, n.º 3)[4]. As soluções constitucionais (e legislativas) têm de se encontrar a partir da conjugação entre tais princípios e a especialidade da situação[5].

5. Por seu turno, o estatuto orgânico – constante da Lei n.º 1/76, de 17 de Fevereiro, modificado ligeiramente pela Lei n.º 53/79, de 14 de Setembro, e profundamente pela Lei n.º 13/90, de 10 de Maio – possui natureza constitucional, ligada directamente à Constituição:

1.º Porque, surgido como lei constitucional ao abrigo dos poderes constituintes então cometidos ao Conselho da Revolução[6], enquanto tal foi ressalvado pela Constituição (artigos 292, n.º 2, e 306.º do texto inicial, 296.º após 1982 e hoje 292.º).

2.º Porque, ressalvado como lei constitucional e objecto de recepção material, tem de ser interpretado e integrado de harmonia com os princípios e preceitos constitucionais[7].

3.º Porque as alterações às normas estatutárias fazem-se em obediência às regras orgânicas e processuais fixadas pela Constituição [artigos 292.º, n.º 3, e 164.º, alínea c), e 169.º, n.º 3].

6. Mais: é o próprio estatuto que – como não podia deixar de ser – afirma a sua correlação com a Constituição, quando prescreve que o Território goza, com ressalva dos princípios e no respeito dos direitos, liberdades e garantias estabelecidos na Constituição, de autonomia administrativa, económica, financeira e legislativa (artigo 2.º, já citado).E isto implica:

a) os princípios constitucionais fundamentais aplicam-se em Macau, imediatamente, sem interposição destas ou daquelas normas estatutárias;

b) As normas sobre direitos, liberdades e garantias aplicam-se também directa e imediatamente em Macau, embora não sejam de excluir as adaptações (em face da regulamentação legislativa vigente em Portugal) que não ponham em causa o seu conteúdo essencial (artigo 41.º, n.º 2, 2.ª parte, do estatuto)[8]/[9];

c) Ao estatuto cabe dispor sobre as demais matérias, tendo como critério e como limite os princípios constitucionais[10].

7. Outros preceitos estatutários prevêem outrossim, de forma peremptória, a aplicação de normas constitucionais em Macau: são os artigos 16.º, n.º 1, e 30.º, n.º 1, alínea a).

8. A integração sistemática da ordem jurídica de Macau e da ordem jurídica da república manifesta-se ainda, especificamente, no estatuto:

– Na consideração de matérias legislativas reservadas aos órgãos de soberania da República [artigos 13.º, n.º 1, 30.º, n.º 1, alínea c), e 51, n.º 2];

– Na consideração de normas de diplomas dos órgãos de soberania da República aplicáveis ao Território (artigos 41.º e 72.º);

– Na consideração de normas dimanadas dos órgãos de soberania da República que os órgãos legislativos do Território não podem contrariar (artigos 15.º, n.º 2, 40.º, n.º 2 e 41.º, n.º 2);

– Na competência do Governador para desenvolver leis de bases dimanadas dos órgãos de soberania da República (artigo 13.º, n.º 3).

Bem como:

– Na competência do Tribunal Constitucional para apreciar a inconstitucionalidade e a ilegalidade de normas jurídicas dimanadas dos órgãos do Território [artigos 11.º, n.º 1, alínea e), 30.º, n.º 1, alínea c), e 40.º, n.º 3];

– Na competência do Supremo Tribunal Administrativo para julgar os recursos interpostos de actos administrativos do Governador e dos secretários-adjuntos (artigo 19.º, n.º 5);

– Na competência do Tribunal de Contas para decidir, por via de recurso, as divergências entre o Governador e o Tribunal Administrativo de Macau em matéria de exame e visto (artigo 66.º);

– Na não plenitude e exclusivo de jurisdição dos tribunais judiciais de Macau até ao momento em que o Presidente da República o decidir (artigo 75.º).

9. Pode, pois, afirmar-se a existência de uma ordem constitucional portuguesa em sentido lato, a qual abrange quer a Constituição da República Portuguesa, como Constituição formal nuclear[11], quer o estatuto orgânico do Território de Macau[12]. E pode, em paralelo, afirmar-se a existência de uma ordem jurídica portuguesa em sentido lato, com dois espaços jurídicos ou duas ordens jurídicas menores nela inseridas–a de Portugal e a de Macau[13].

A esta luz, é indiferente dizer que há princípios comuns às duas ordens constitucionais que fazem parte da ordem constitucional portuguesa ou que a ordem constitucional de Macau compreende, além do estatuto orgânico, os princípios constitucionais fundamentais e as normas sobre direitos, liberdades e garantias consignadas na Constituição da República Portuguesa.

II

10. Um dos princípios estruturantes da ordem jurídica portuguesa é o princípio da constitucionalidade (artigo 3.º, n.ºs 2 e 3, e ainda artigos 10.º, n.º 1, 111.º, 113.º, n.º 2, 114.º, n.º 2, 117.º, n.º 2, 227.º, n.º 3, 266.º, n.º 2, 275.º, n.º 3), inerente ao Estado de Direito democrático [preâmbulo e artigos 2.º e 9.º, alínea b)].

Dele decorre o princípio da fiscalização jurisdicional da constitucionalidade das normas jurídicas [artigo 288.º, alínea 1), e ainda artigos 207.º, 225.º, n.º 1, e 277.º e ss.][14]

11. Por isso, sendo o Tribunal Constitucional aquele tribunal a quem compete especificamente administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional (artigo 223.º), não admira que ele exerça a sua jurisdição no âmbito de toda a ordem jurídica portuguesa (artigo 1.º da respectiva lei orgânica – a Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro) – a qual abarca, como acaba de se salientar, a ordem jurídica da República e a ordem jurídica de Macau[15].

12. Conhece-se bem o sistema de fiscalização adoptado presentemente: um sistema vasto, misto e complexo.

Sistema vasto, porque se desdobra em fiscalização de inconstitucionalidade e fiscalização de ilegalidade – esta, por violação de normas dos estatutos das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira ou de outras leis de valor reforçado ou por violação de leis gerais da República (artigos 280.º, 281.º e 282.º); em fiscalização de inconstitucionalidade por acção (artigos 207.º e 277.º e ss.) e fiscalização da inconstitucionalidade por omissão (artigo 283.º); em fiscalização preventiva (artigos 278.º e 279.º) e fiscalização sucessiva (artigos 207.º, 280.º, 281.º, 282.º e 283.º) em fiscalização abstracta (artigos 278.º, 279.º, 281.º, 282.º e 283.º) e fiscalização concreta (artigos 207.º e 280.º).

Sistema misto, por subsistirem, a par do Tribunal Constitucional (artigos 223. e ss.), os tribunais como órgãos de fiscalização (artigo 207.º).

Sistema complexo, por assentar numa complexa repartição de competências entre o Tribunal Constitucional e os tribunais em geral: o Tribunal Constitucional, e só ele, é o órgão de fiscalização abstracta; os tribunais em geral têm a seu cargo a fiscalização concreta, com poder de conhecer e decidir as questões que se suscitem; e, verificados certos pressupostos, dá-se a possibilidade de interposição de recurso das decisões dos tribunais para o Tribunal Constitucional[16].

13. Em que medida este esquema é transponível para o Território de Macau? A Constituição, ao regular a fiscalização da constitucionalidade e da legalidade, não prevê ex professo a sua extensão a Macau, nem de tal se ocupa no artigo 292.º. Por outro lado, a fiscalização preventiva organizada nos artigos 278.º e 279.º é só de diplomas provindos de órgãos de soberania e das regiões autónomas, assim como alguns dos aspectos do regime de fiscalização sucessiva abstracta (em especial, as referências a estatutos regionais, leis de valor reforçado e leis gerais da República) são pensados apenas para o território da República.

14. Não significa isto, no entanto, que a Constituição vede ou afaste a fiscalização relativamente a Macau. Bem pelo contrário: não só em nome do princípio fundamental da constitucionalidade, mas também porque, pelo menos, a fiscalização judicial difusa é dele um corolário bem sedimentado.

Assim, mesmo que o estatuto do Território nada dissesse, deveria entender-se que os tribunais de Macau (e os tribunais com sede em Portugal que decidissem recursos de decisões por eles tomadas ou recursos de decisões proferidas por órgãos administrativos) sempre teriam o poder de apreciar a constitucionalidade – à face da Constituição e do estatuto – das normas aplicáveis e o poder de as não aplicar quando inconstitucionais.

A dificuldade reside, sim, no modo como articular esta fiscalização judicial difusa e a competência do Tribunal Constitucional.

15. Na versão do Estatuto que vigorou entre 1976 e 1990 contemplava-se a fiscalização da constitucionalidade, mas em moldes deficientes – porque pouco claros e incompletos.

No artigo 31.º, n.º 1, alínea c), atribuía-se à Assembleia Legislativa competência para vigiar pelo cumprimento das normas constitucionais e das leis, promovendo a apreciação pelo tribunal competente da inconstitucionalidade de quaisquer normas provenientes dos órgãos do Território.

No artigo 40.º, n.º 3, estipulava-se que, se a discordância entre o Governador e a Assembleia Legislativa sobre diploma por esta aprovado se fundasse em ofensa de regras constitucionais ou de normas dimanadas dos órgãos de soberania que o Território não pudesse contrariar e se o diploma fosse confirmado por dois terços dos deputados em efectividade de funções, seria ele enviado ao tribunal competente para conhecer da inconstitucionalidade de diplomas dimanados dos órgãos legislativos do Território, devendo a Assembleia e o Governador conformar-se com a decisão. O artigo 14.º, n.º 3, sobre ratificação de decretos-leis, remetia para este regime.

No artigo 41.º dava-se aos tribunais – naturalmente, nos feitos submetidos a julgamento – o poder de não aplicar as normas dimanadas dos órgãos do Território que não versassem matéria de exclusiva competência destes contrárias a normas dimanadas dos órgãos de soberania da República e o poder de declarar a sua inconstitucionalidade material.

Era um esquema pouco claro, porquanto as modalidades de fiscalização não se encontravam bem recortadas, as fórmulas estavam mal redigidas e não se estabelecia qual era o tribunal competente quer para a apreciação preventiva (do artigo 40.º, n.º 3), quer para a apreciação sucessiva (que parecia ser a esboçada no artigo 31.º, n.º 1). E, se em 17 de Fevereiro de 1976 (antes ainda da aprovação da Constituição), quando o estatuto foi publicado, se compreendia a prudência do legislador, já depois deveria ter-se por menos razoável não se ter precisado este ponto (nomeadamente a seguir à criação do Tribunal Constitucional)[17].

Era um esquema incompleto, por isso mesmo e, sobretudo, porque aos tribunais em fiscalização concreta só era dada a conhecer a inconstitucionalidade material, e não também a inconstitucionalidade orgânica e formal (por certo, por influência serôdia do regime do artigo 123.º da Constituição de 1933)[18].

16. A revisão do estatuto operada pela Lei n.º 13/90, de 10 de Maio, trouxe as seguintes modificações ou inovações:

a) Atribuiu expressamente ao Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva e a fiscalização sucessiva abstracta [novos artigos 40.º, n.º 3, e 11.º, n.º 1, alínea e), e 30.º, n.º 1, alínea a), 2.ª parte];

b) Conferiu ao Governador também o poder de desencadear a fiscalização sucessiva abstracta, estabelecendo, porém, uma relação de reciprocidade com o poder da Assembleia Legislativa – o Governador só pode pedir a apreciação de normas dimanadas da Assembleia artigo [11.º, n.º 1, alínea e)], e a Assembleia só pode pedir a apreciação de normas dinamadas do Governador [art. 30.º, n.º 1, alínea a), 2.ª parte];

c) Deixou de restringir à constitucionalidade material o poder de fiscalização concreta dos tribunais;

d) Alargou a fiscalização sucessiva abstracta também à conformidade com normas dimanadas dos órgãos de soberania que os órgãos do Território não possam contrariar [mesmos artigos 11.º, n.º 1, alínea e), e 30.º, n.º 1, alínea a), 2.ª parte].

Clarificando e reforçando as formas de fiscalização, a Lei n.º 13/90 traduziu-se, pois, num sensível avanço na construção de um Estado de Direito em Macau, embora não tão grande (como já se vai mostrar) quanto poderia desejar-se.

17. Apesar disso, ressaltavam à vista desarmada notas importantes de diferença entre o regime de fiscalização consignado agora no estatuto orgânico do Território e o regime definido na Constituição.

Assim, quanto à fiscalização preventiva:

– Na República, a fiscalização preventiva é só de constitucionalidade (artigo 278.º), em Macau, é também de legalidade;

– Na República, a fiscalização preventiva tem por objecto, além de convenções internacionais, actos destinados a ser promulgados como leis ou como decretos-leis e actos destinados a ser assinados como decretos legislativos regionais ou como decretos regulamentares regionais de regulamentação de leis gerais da República (artigo 278.º, n.os 1 e 2); em Macau, apenas tem por objecto decretos da Assembleia Legislativa, e não também decretos-leis do Governador[19];

– Na República, a pronúncia do Tribunal Constitucional no sentido da inconstitucionalidade determina efeitos variáveis consoante os diplomas e, no caso de leis da Assembleia da República e de decretos das assembleias legislativas regionais, pode ser ultrapassada pela confirmação por dois terços dos respectivos deputados e por promulgação ou assinatura (artigo 279.º, n.º 2); em Macau, ela impõe-se à Assembleia Legislativa e ao Governador.

Quanto à fiscalização sucessiva abstracta:

– Na República, a fiscalização incide sobre quaisquer normas aplicáveis; em Macau, incide apenas sobre normas dimanadas dos órgãos do Território, e não também sobre normas provenientes dos órgãos de soberania e vigentes no Território;

– Na República, a iniciativa pertence a diversos órgãos e fracções de titulares de órgãos (artigos 281.º, n.º 2); em Macau, pertence somente ao Governador e à Assembleia Legislativa e, em relação a cada um destes órgãos, somente quanto a normas decretadas pelo outro;

– Na República, instituem-se mecanismos de aproveitamento de decisões em fiscalização concreta para passagem à declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral (artigo 281.º, n.º 3); não em Macau.

Relativamente ao “tribunal competente” a que se reportavam os artigos 31.º, n.º 1, alínea c), e 40.º, n.º 3, havia alguma divergência entre o nosso entendimento e o de GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA. Para nós, só o estatuto de Macau (feito com participação da Assembleia Legislativa) poderia designá-lo; não poderia ser a lei orgânica do Tribunal Constitucional (p. 365). Já aqueles dois autores, embora afirmando que a fiscalização da constitucionalidade das normas de Macau teria de se realizar nos termos do próprio estatuto (p. 478), perguntavam se o silêncio deste não poderia ser integrado com recurso à Constituição, considerando competente o Tribunal Constitucional (p. 579).

Quanto à fiscalização concreta:

– Na República, há a possibilidade (ou, em certas hipóteses, a obrigatoriedade) de recurso das decisões dos tribunais para o Tribunal Constitucional, verificados determinados pressupostos (artigo 280.º); não em Macau.

Por último, quanto à fiscalização da inconstitucionalidade por omissão:

– Na República, existe fiscalização de inconstitucionalidade por omissão de normas legislativas necessárias para tomarem exequíveis normas constitucionais (artigo 283.º); não em Macau.

III

18. O que acaba de ser explanado inculca já uma resposta à pergunta constante da consulta.

É uma resposta negativa: visto que o estatuto não confere iniciativa senão ao Governador e à Assembleia Legislativa de Macau (e relativamente a normas dimanadas ora de um órgão, ora do outro órgão), não podem as entidades enumeradas no artigo 281.º, n.º 1, da Constituição requerer ao Tribunal Constitucional a apreciação e a declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade de normas aprovadas pelos órgãos de governo próprio do Território.

19. Vários argumentos poderiam, porém, ser aduzidos contra este entendimento, tido por demasiado restritivo:

a) Que reduzir a iniciativa da fiscalização da constitucionalidade e da legalidade ao Governador e à Assembleia Legislativa no quadro traçado pelos preceitos estatutários seria apontar para um resultado altamente inconveniente ou absurdo, pois:

– Se o Governador e a Assembleia estiverem em sintonia, não será de esperar que qualquer destes órgãos vá pedir ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade de normas dimanadas do outro;

– ao invés, se estiverem em conflito o desencadear-se um processo de fiscalização poderá revelar-se um instrumento de guerrilha, em detrimento da solidariedade institucional e da constitucionalidade objectiva;

– donde, ali, o risco de paralisia do sistema, e aqui o do seu desvirtuamento;

b) Que mal se compreenderia que o Presidente da República – único órgão de soberania com competência plena ou genérica para Macau (artigo 137.º, alínea i), da Constituição) e, ao mesmo tempo, o órgão que garante o regular funcionamento das instituições democráticas (artigo 123.º) – ficasse arredado de qualquer intervenção quanto ao controlo da validade dos diplomas de Macau;

c) Que tão-pouco mal se compreenderia que dele se excluisse o Procurador-Geral da República (ou o órgão supremo do Ministério Público em Macau), porque ao Ministério Público compete defender a legalidade democrática (artigo 221.º, n.º 1) e ele goza de autonomia (artigo 221.º, n.º 2, e artigo 53.º, n.º 5, do estatuto);

d) Que, enfim, valendo em Macau, conforme foi sublinhado o direito constitucional substantivo português, também o direito constitucional adjectivo se lhe deveria, logicamente, estender, sem fronteiras descabidas.

20. Estes argumentos, por certo, impressionam. Não procedem, entretanto, contra o princípio da competência – princípio básico de direito público, reiterado no artigo 113.º, n.º 2, da Constituição: a nenhum órgão é legítimo arrogar-se competência que a norma não preveja, os poderes dos órgãos constitucionais são poderes constituídos[20], e tem de ser assim tanto por exigência da racionalização como por exigência de liberdade das pessoas e das instituições públicas e privadas[21].

Estes argumentos podem ser tomados, talvez a justo título, como críticas ao sistema de fiscalização instituído e, assim, abrir caminho de jure condendo à sua correcção ou modificação. Não podem prevalecer contra uma rigorosa interpretação das normas vigentes.

21. Que seja inadequado e precário o modo como o legislador estatutário regula o poder de iniciativa da fiscalização sucessiva abstracta parece óbvio.

Em vez de o conceber em termos inteiramente objectivos e procurando afastar quaisquer interferências ou conotações políticas, ele regula-o na base de uma dialéctica Governador-Assembleia Legislativa com as eventuais consequências negativas apontadas, ou de não exercício efectivo ou de exercício conflitual.

Em vez de separar a fiscalização da produção legislativa ou os órgãos de fiscalização dos órgãos legislativos, terá suposto que na apreciação da constitucionalidade de diplomas da Assembleia só estaria interessado o Governador e na dos actos do Governador a Assembleia (sem ter em conta até que poderia haver mudança de titulares ou de orientações políticas naquele ou nesta).

Em vez de buscar o distanciamento objectivo entre iniciativa de fiscalização e feitura das leis, confundiu os problemas.

Simplesmente, repetimos, não cabe ao intérprete substituir as suas ponderações ao conteúdo normativo da lei, mormente quanto esta, como sucede neste ponto, se apresenta de tão nítido alcance.

22. Aliás, não é só aqui que se registam, como frisámos, diferenças em face do sistema de controlo da constitucionalidade consagrado em Portugal, patenteadoras de uma postura embrionária ou demasiado prudente.

Tenham-se em conta a ausência de fiscalização preventiva dos decretos-leis do Governador, a ausência de iniciativa de fiscalização sucessiva abstracta por parte dos órgãos de governo próprio de Macau no respeitante a normas dimanadas dos órgãos de soberania da República aplicáveis no Território, a não previsão de recurso para o Tribunal Constitucional de decisões dos tribunais de Macau no domínio da inconstitucionalidade e da ilegalidade[22] e a consequente impossibilidade de, a partir de três casos concretos, aquele Tribunal vir a declarar a inconstitucionalidade ou a ilegalidade com força obrigatória geral.

23. Que o Presidente da República não tenha poder de iniciativa da fiscalização sucessiva abstracta de normas originadas nos órgãos de Macau, sendo ele o supremo responsável constitucional pelo Território afigura-se, outrossim, menos congruente.

Talvez, no entanto, o estatuto queira poupá-lo a intervenções não indispensáveis em disputas muito localizadas ou receie que qualquer intervenção sua poderia enfraquecer a autoridade dos órgãos de governo de Macau (mesmo se se pode, de novo, lamentar que assim se oblitera a natureza eminentemente jurídica do controlo da constitucionalidade e, por conseguinte, da sua iniciativa).

Seja como for, como se sabe, a Constituição é peremptória: o Presidente da República pode praticar os actos relativos ao Território de Macau previstos no Estatuto (artigo 137.º, alínea i), citado) e entre esses actos não se contam o de iniciativa de fiscalização sucessiva abstracta. E isso torna-se tanto mais evidente quanto é muito copiosa a lista de poderes e actos atribuídos pelo estatuto ao Presidente da República[23].

24. No n.º 2 do artigo 281.º da Constituição estabelece-se que podem requerer a declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade de normas jurídicas, com força obrigatória geral, o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República, o Primeiro-Ministro, o Provedor de Justiça, o Procurador-Geral da República, um décimo dos deputados à Assembleia da República e quanto às regiões autónomas, os Ministros da República, as assembleias legislativas regionais, os presidentes dos governos regionais e um décimo dos deputados às assembleias legislativas regionais[24].

Não se justificaria fazer uma transposição automática deste preceito em geral para Macau – até porque ele se vincula ao n.º 1 do mesmo artigo 281.º, e este cobre não só a inconstitucionalidade – violação directa de normas formalmente constitucionais (como as do estatuto orgânico), mas ainda a ilegalidade – violação de leis de valor reforçado e violação de leis gerais da República (as quais, como é claro e já se acertou atrás, nada têm que ver com a ordem jurídica de Macau).

Nem, muito menos, faria sentido a transposição automática do poder de iniciativa de órgãos do Estado sem competência quanto a Macau – o Presidente da Assembleia da República, o Primeiro-Ministro e o Provedor de Justiça[25] – nem de órgãos das regiões autónomas, nem de fracções de deputados à Assembleia da República e às assembleias legislativas regionais.

25. Afora o Presidente da República, restaria o Procurador-Geral da República. Mas, ainda quanto a este, além de se dever, mais uma vez, invocar a falta de preceitos estatutários, poderia observar-se que a extensão e o conteúdo da sua competência concernente a Macau se encontra, neste momento, em fase de mutação, em conexão com a criação de uma organização judiciária própria do Território (artigo 292.º, n.º 5, da Constituição, e artigo 51.º, n.º 2, do estatuto).

Nesta perspectiva, sem dúvida será mais razoável pensar que, no futuro, um poder de iniciativa de fiscalização que venha a ser concedido ao Ministério Público deva ser exercido, não pelo Procurador-Geral da República, mas sim por órgão equivalente de Macau.

26. Finalmente, o argumento extraído da forçosa correspondência entre direito constitucional substantivo e direito constitucional adjectivo não resiste a uma reflexão mais atenta.

Por um lado, uma coisa é reconhecer que o direito constitucional de Macau se integra no direito constitucional português ou que a Constituição em parte se aplica a Macau; outra coisa é sustentar uma total identidade (o que ninguém sustenta). Por outro lado, o direito constitucional adjectivo não tem, por nenhum imperativo formal ou histórico de seguir, nos mesmos termos, o direito constitucional substantivo; pode haver adaptações e adequações; e, de qualquer sorte, são irrecusáveis, como se viu, diferenças de regime entre a República e Macau.

Conclusões

Resumindo e concluindo:

1.º A iniciativa de fiscalização sucessiva abstracta da constitucionalidade e da legalidade relativamente a actos normativos provenientes dos órgãos de governo próprio do Território de Macau está reservada ao Governador quando se trate de actos da Assembleia Legislativa e à Assembleia Legislativa quando se trate de actos do Governador (artigos 11.º, n.º 1, alínea e), e 30.º, n.º 1, alínea a), 2.ª parte, do estatuto, na versão dada pela Lei n.º 13/90, de 10 de Maio);

2.º Não gozam desse poder os órgãos e as fracções de titulares de órgãos referidos no artigo 281.º, n.º 2, da Constituição;

3.º De jure condendo seria de encarar a atribuição de poder de iniciativa também ao Presidente da República e ao Procurador-Geral da República ou ao Procurador-Geral de Macau, mas tal implicaria a necessidade de uma nova alteração de estatuto orgânico.

Tal é, salvo melhor, o nosso parecer.

Notas:

[1] Além da diferença de localização, avulta, no actual preceito, a nota de transitoriedade do estatuto: “enquanto se mantiver sob administração portuguesa”.

Sobre o artigo 5.º, n.º 4, inicial, e o artigo 292.º actual (306.º em 1976 e 296.º após a revisão de 1982), v. Diário da Assembleia Constituinte, n.os 29,116 e 130, pp. 741 e ss., 3842 e 4354, respectivamente; Diário da Assembleia da República, 2.ª legislatura, 2.ª sessão legislativa, 2.ª série, 2.º suplemento ao n.º 77, pp. 1456-(44) e ss., e suplemento ao n.º 93, pp. 1762-(20) – 1762-(21), e 1.ª série, n.º 129, pp. 5430 e ss.; ibid., 5.ª legislatura, 1.ª sessão legislativa, 2.ª série, n.º 55-RC, acta n.º 53, pp. 1769 e ss.; 2.ª sessão legislativa, n.º 99-RC, acta n.º 97, pp. 2838-2839; 2.ª sessão legislativa, 1.ª série, n.os 86 e 90, pp. 4206 e 4207 e 4497-4498, respectivamente.

[2] Sobre a caracterização jurídico-constitucional do Território de Macau e a sua relação com Portugal, cf. AFONSO QUEIRÓ, Lições de Direito Administrativo.I, policopiadas, Coimbra, 1976, pp. 378 e ss.; JORGE MIRANDA, A Constituição de 1976 – Formação, Estrutura. Princípios Fundamentais, Lisboa, 1978, pp. 212-213; Manual De Direito Constitucional. II, 2.ª ed., Coimbra 1983, pp. 34 e ss., e 111, 2.ª ed., Coimbra, 1987, pp. 216 e 217; NUNO BESSA LOPES, A Constituição e o Direito Internacional, Vila do Conde, 1979, p. 27, nota; GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, I, 2.ª ed., Coimbra, 1984, p. 85, e II, 2.ª ed., Coimbra, 1985, p. 578; VITALINO CANAS, Relações entre o ordenamento Constitucional Português e o ordenamento Jurídico do Território de Macau, Lisboa 1987, pp. 5 e ss.

[3] Recorde-se a obra fundamental de SANTI ROMANO, L’ordinamento Giurídico, 2.ª ed., Florença, 1951. Cf, na doutrina portuguesa por todos, OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito – Introdução e Teoria Geral, 6.ª ed., Coimbra, 1991, pp. 497 e 498.

[4] Assim, JORGE MIRANDA, Manual …,II, cit, pág. 269; algo mais mitigadamente, AFONSO QUEIRÓ, op. cit., pp. 380 e 382; VlTALINO CANAS, op. cit., pp. 76, 78 e 81; e, em visão oposta DIMAS DE LACERDA, parecer in Revista do Ministério Público, ano I, n.º 2, p. 78 (para quem as normas e os princípios constitucionais só poderão vigorar em Macau, quando não contrariarem as normas e os princípios decorrentes do próprio estatuto do território).

[5] A Constituição de 1976, cit., p. 214.

[6] Por força do artigo 6.º, n.os 1 e 2, da Lei n.º 5/75, de 14 de Março.

[7] Como sempre temos sustentado: Manual …. II, pp. 34 e ss., e, por último, Direito Constitucional – II – Aditamentos, policopiados, Lisboa, 1991, pp. 65 e ss. Cf. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional, 4.ª ed., Coimbra, 1986, p. 66.

[8] A referência a direitos, liberdades e garantias foi introduzida em 1990. Embora positiva, afigura-se insuficiente, sobretudo na perspectiva de 1999. Teria sido preferível, em vez dessa cláusula genérica, uma enumeração ou (como defendemos em Manual…, IV, Coimbra, 1988, pp. 189-190) uma Carta autónoma de direitos e liberdades fundamentais.

[9] O artigo 41.º, n.º 2, alude ao conteúdo essencial das normas legislativas dimanadas dos órgãos de soberania; mas, como estas, por sua vez, não podem afectar o conteúdo essencial dos preceitos constitucionais sobre direitos, liberdades e garantias (artigo 18.º, n.º 3, da Constituição), é ele que, assim, se salvaguarda ou reforça.

Por conteúdo essencial de qualquer direito entende-se a finalidade ou o valor que o justifica ou (de outra óptica) a utilidade prática que reveste para o cidadão como esfera de autonomia ou de realização pessoal; e tem de se radicar na Constituição, e não na lei – porque é a lei que deve ser interpretada de acordo com a Constituição, e não a Constituição de acordo com a lei. Cf Manual…, IV, cit., pp. 309 e 310.

[10] Em dois relativamente recentes arestos, o Tribunal Constitucional debruçou-se sobre a questão da aplicação da Constituição em Macau: no Acórdão n.º 284/89, de 9 de Março de 1989 (in Diário da República, 2.ª série, n.º 133, de 12 de Junho de 1990) e no Acórdão n.º 245/90, de 4 de Julho de 1990 (ibid., 2.ª série, n.º 18, de 22 de Janeiro de 1991). No primeiro, o Tribunal disse que a Constituição não era de aplicação integral no Território, mas, em largos trechos, era imediatamente aplicável. No segundo, considerou que não regia aí directa e automaticamente, mas que as normas de direito ordinário de Macau estavam sujeitas aos princípios e preceitos da Constituição, em especial quanto aos direitos, liberdades e garantias.

[11] Sobretudo este conceito, v. Direito Constitucional – II – Aditamentos, pp. 43 e ss.

[12] Assim como as Leis n.os 8, 16 e 18/75, respectivamente de 25 de Julho, 23 de Dezembro e 26 de Dezembro, com recepção material realizada pelo artigo 294.º da Constituição (primitivo artigo 309.º).

[13] Em rigor, não são duas, mas sim três as ordens jurídicas a referir – porque há ainda a de Timor, território de jure também sob administração portuguesa (Lei n.º 7/75, de 17 de Julho) até o seu povo exercer o direito à autodeterminação e à independência garantido pela Constituição (artigo 293.º) e por resoluções das Nações Unidas.

[14] Cf. Manual…,IV, cit., pp. 176 e ss. e 259 e ss.

[15] Cf. a intervenção do Ministro MARCELO REBELO DE SOUSA na comissão parlamentar eventual para o Tribunal Constitucional, in Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, ed. da Assembleia da República Lisboa, 1984, p. 256; e BARBOSA DE MELO e CARDOSO DA COSTA, Projecto de Lei sobre a Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, Coimbra, 1985, p. 17.

[16] Sobre o regime actual de fiscalização de constitucionalidade no direito português v. CARDOSO DA COSTA, “A jurisdição constitucional em Portugal”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Afonso Rodrigues Queiró, obra colectiva, I. Coimbra, 1984, pp. 209 e ss.; VITALINO CANAS Introdução às Decisões do Provimento do Tribunal Constitucional – Os Efeitos em Particular, Lisboa, 1984; “O Ministério Público e a defesa da Constituição”, separata da Revista do Ministério Público, vol. 20, e os Processos de Fiscalização da Constitucionalidade e da Legalidade pelo Tribunal Constitucional – Natureza e Princípios Estruturais, Coimbra, 1986; JOSÉ FERREIRA DE ALMEIDA, A Justiça Constitucional em Portugal, Lisboa, 1985; GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, op. cit., 11, pp. 461 e ss.; n.ºs 3/4, de Dezembro de 1985, da revista Progresso do Direito jornadas sobre a justiça constitucional em Portugal); GOMES CANOTILHO, op. cit., pp. 7O9 e 35.; e “Direito, direitos – Tribunal, tribunais”, in Portugal – O Sistema Político e Constitucional – 1974-1987, obra colectiva, Lisboa, 1989, pp. 901 e ss.; MARCELO REBELO DE SOUSA, O Valor Jurídico do Acto Inconstitucional, Lisboa 1987 pp. 86 e ss.; NUNES DE ALMEIDA, “A justiça constitucional no quadro das funções do Estado”, in Justiça Constitucional e Espécies, Conteúdos e Efeitos das Decisões, obra colectiva, Lisboa, 1987, 3.ª parte, pp. 11 e ss.; JORGE MIRANDA, “Die Verfessungsgerichtliche Kontrolle in Portugal”, in Richterüche Verfassungskontrolle in Lateinamerika, Spanien und Portugal, obra colectiva Baden-Baden, 1989, pp. 81 e ss., Direito Constitucional – Aditamentos, cit., pp. 167 e ss.; La Justice Constituonelle au Portugal, obra colectiva, Paris, 1989.

[17] O único elemento positivo do sistema era – entre 1976 e 1982 – ficar excluída a intervenção do Conselho da Revolução, na altura existente na República (artigos 146.º e 277º e ss. do texto constitucional até à primeira revisão). Tratava-se, pois, de um sistema exclusivamente jurisdicional de controlo da constitucionalidade.

[18] Sobre a fiscalização da constitucionalidade em Macau antes de 1990 v. AFONSO QUEIRÓ, op. cit., pp. 385-386; JORGE MIRANDA, Manual. .,II, cit., pp. 364-365 e 383. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, op. cit., 11, pp. 478 e 579; VITALINO CANAS, op. cit., p. 84.

[19] Provavelmente porque a iniciativa da fiscalização preventiva cabe ao próprio Governador.

[20] Na expressão vinda de HAMILTON, MADISON e JAY, The Federalist Papers, 1787 (v. a trad. portuguesa o Federalista, Brasília, 1984, pp. 575 ss.).

[21] Sobre o princípio da competência, v., por último, na doutrina portuguesa, MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, I, 10ª. ed., Lisboa, 1973, pp. 221 e ss.; AFONSO QUEIRÓ, “Competência”, in Dicionário Jurídico da Administração Pública 11 pp. 524 e ss.. GOMES CANOTILHO, op. cit., pp. 520 e ss.; JORGE MIRANDA, Funções, Órgãos e Actos do Estado, policopiado, Lisboa, 1990, pp. 66 e ss.

[22] No atrás citado Acórdão n.º 284/89, o Tribunal Constitucional conheceu de um recurso interposto de uma decisão judicial de Macau, declarando-se competente com os seguintes fundamentos: 1.º o artigo 1.º, n.º 2, da Lei n.º 28/82 comete ao Tribunal Constitucional jurisdição em toda a ordem jurídica portuguesa; 2.º o estatuto orgânico reconhece a competência de tribunais de fora de Macau como tribunais de recurso de decisões dos tribunais do Território; 3.º a não previsão expressa de competência do Tribunal Constitucional como tribunal de recurso no tocante à inconstitucionalidade deve-se à circunstância de o estatuto de Macau ser anterior à Lei n.º 28/82; 4.º seria incompreensível que, no interior da mesma ordem jurídica, o órgão máximo de fiscalização não pudesse exercer jurisdição sobre parte dessa ordem jurídica.

Não julgamos convincentes também estes fundamentos: porque é sempre necessário especificar o modo como o Tribunal Constitucional exerce jurisdição em Macau, e o mesmo se diga a respeito dos restantes tribunais superiores com sede em Lisboa – tudo depende de normas jurídicas expressas e, precisamente, o artigo 41.º, n.º 1, do estatuto – homólogo do artigo 207.º da Constituição – não aparece acompanhado de um preceito homólogo do artigo 280.º. Aliás, se a questão já se punha frente à Lei n.º 1/76, anterior à Lei n.º 28/82, seguro é que a revisão do estatuto de Macau, posterior a 1982, não a resolveu em sentido afirmativo.

[23] Vale a pena enunciá-los. São: representar o Território nas relações com países estrangeiros e na celebração de acordos ou convenções internacionais, podendo delegar essa representação no Governador quanto a matérias de interesse exclusivo do Território (artigo 32, n.º 2); nomear e exonerar o Governador e conferir-lhe posse (artigo 7.º, n.º 1); designar quem deve assumir as funções de Governador, em caso de ausência ou impedimento deste, e quem deve assumir as funções de encarregado de Governo, na falta do Governador (artigo 9.º, n.ºs 1 e 2); anuir à ausência do Governador do Território (artigo 10.º); decidir os assuntos respeitantes à segurança externa (artigo 12.º); decidir das decisões do Governador relativas à entrada ou à expulsão de nacionais ou estrangeiros no Território, por motivos de interesse público [artigo 16.º, n.º 1, alínea g), in fine, e 48.º, n.º 2, alínea e), in fine]; nomear e exonerar, sob proposta do Governador, os Secretários-Adjuntos (artigo 17.º, n.º 1); dissolver a Assembleia Legislativa, sob proposta do Governador, fundamentada em razões de interesse público (artigo 25.º, n.º 1); tomar conhecimento de moções de censura à acção governativa votadas pela Assembleia Legislativa [artigo 30.º, n.º 2, alínea c), 2.ª parte]; determinar, ouvido o Conselho de Estado e o Governo da República, o momento a partir do qual os tribanais de Macau serão investidos na plenitude e no exclusivo de jurisdição (artigo 75.º).

[24] Cf. Manual…, 11, cit., pp. 365 e ss.

[25] Como o Provedor de Justiça é essencialmente um órgão de defesa de direitos fundamenteis (artigo 23.º da Constituição), poderia admitir-se a extensão da sua actividade a Macau. Mas para tal seria preciso que o estatuto orgânico o prescrevesse, e não o faz (nem o faz o recentíssimo novo estatuto do Provedor, aprovado pela Lei n.º 9/91, de 9 de Abril).

*Professor da Faculdade de Direito de Lisboa.

Parecer publicado na edição de “O Direito” de Janeiro de 1993.

back to top