Órgãos políticos de Macau sem competência para aprovar o diploma
O Governo de Macau divulgou há já algum tempo uma proposta de Lei-Quadro do Sistema Educativo de Macau. O seu teor, divulgado integralmente pela «Tribuna de Macau» na sua edição do passado dia 5 de Maio, tem suscitado críticas em diversos sectores, nomeadamente junto dos estudantes da Universidade da Ásia Oriental.
Dado que a proposta se encontra ainda em período de debate público, «O Direito» decidiu dar a sua modesta contribuição, questionando um pressuposto jurídico fundamental para a sua entrada em vigor: terão os órgãos políticos de Macau competência para aprovar tal diploma?
A nossa resposta é negativa: nem o Governador tem essa competência, nem a tem a Assembleia Legislativa; não a tinham antes da revisão do Estatuto Orgânico de Macau, nem a têm depois dela!
Passemos à fundamentação.
Há já longa data que a competência para fazer leis aplicáveis em Macau está repartida por órgãos de soberania do poder central português e órgãos de governo próprio de Macau. Os primeiros são, actualmente, a Assembleia da República e o Governo; os segundos, a Assembleia Legislativa e o Governador. Ora acontece que a competência legislativa dos órgãos de governo próprio de Macau sempre esteve, e continua a estar, limitada por uma cláusula restritiva fundamental: ela só abrange «as matérias que não estejam reservadas aos órgãos de soberania da República» (artigos 13.º, n.º 1, e 30.º, n.º 1, alínea c), ambos do Estatuto Orgânico de Macau revisto). Esta limitação só pode ser afastada num caso: ser essa competência especificamente atribuída pelo Estatuto Orgânico de Macau aos órgãos locais.
A Lei-Quadro do Sistema Educativo visa, como esclarece o artigo 19 da proposta divulgada estabelecer o quadro geral do sistema educativo de Macau. Subsume-se assim indiscutivelmente na alínea i) do artigo 167.º da Constituição da República Portuguesa — «bases do sistema de ensino» — matéria que integra a reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República.
E estará essa matéria especificamente atribuída pelo Estatuto Orgânico de Macau aos órgãos de governo próprio de Macau?
Não vemos onde. Passando em revista uma a uma as diversas alíneas do novo artigo 31.º, não se nos afigura possível integrá-la em qualquer delas. Assim, nem a Assembleia Legislativa tem o poder de legislar sobre ela, nem, por força da remissão operada pelo artigo 13.º n.º 1, o Governador.
Esta conclusão, obtida através da interpretação do Estatuto Orgânico de Macau revisto, resultava já, a nosso ver claramente, da sua anterior redacção, pese embora a prática corrente em sentido contrário que, aproveitando-se da ausência de um sistema eficaz de fiscalização da constitucionalidade das normas vigentes em Macau, levava os órgãos locais a aprovar leis sobre todas as matérias, estivessem ou não reservadas à Assembleia da República. Esta prática, invocando argumentos sem qualquer consistência jurídica — do tipo: «interpretação mais de acordo com o espírito da Declaração Conjunta»; ou ainda «Macau só não pode legislar em matérias reservadas aos órgãos de soberania da República no seu conjunto» — legitimava toda a legislação que interessasse exclusivamente a Macau, fosse qual fosse a matéria versada, transformando em alternativos dois requisitos que as anteriores redacções dos artigos 13.º n.º 1 e 31.º, n.º 1, alínea a), clara e expressamente definiam como cumulativos.
Hoje esse tipo de argumentação ainda menos pode ser utilizado: por um lado, o requisito do interesse exclusivo do Território desapareceu do texto do Estatuto Orgânico de Macau; por outro, a profunda revisão agora efectuada retira qualquer consistência a interpretações fantasiosas e pretensamente actualistas, mas sem um mínimo de correspondência na letra da lei. E não nos esqueçamos que ficou agora instituído um verdadeiro sistema de fiscalização da constitucionalidade, não podendo nomeadamente os tribunais «aplicar normas que infrinjam as regras constitucionais ou estatutárias» — novo artigo 41.º, n.º 1.
Parece assim impor-se a conclusão que a Lei-Quadro do Sistema Educativo de Macau só pode ser aprovada pela Assembleia da República. E será esta a solução politicamente mais conveniente? Parece-nos também evidente que não. Porque razão a autonomia legislativa dos órgãos locais não há-de abranger também esta matéria, cujas especificidades em Macau são tantas, tão relevantes e, na sua maioria, desconhecidas dos deputados portugueses? Porque razão vem a nova redacção dada ao artigo 31.º do Estatuto Orgânico de Macau permitir aos órgãos de Macau legislar sobre direitos, liberdades e garantias, sobre todo o direito penal ou sobre direito eleitoral e não lhes permite definir o sistema educativo de Macau? Terá sido esquecimento?
É caso para «O Direito» perguntar uma vez mais: Who Framed Jorge Rabbit?!
Texto publicado na edição de «O Direito» de 8 de Junho de 1990.