Anabela Miranda Rodrigues*
A minha intervenção situa-se no âmbito do direito das crianças e jovens delinquentes.
Numa breve introdução, proponho-me situar o sentido actual da política criminal face ao fenómeno da delinquência juvenil. De seguida, apontarei em traços largos as principais características do regime legal previsto em Portugal para intervir junto destas crianças e jovens. Privilegiarei, neste ponto, a questão de saber que tipos de intervenção se articulam entre si – de protecção, educativa e penal – fazendo emergir o problema da idade da imputabilidade (responsabilidade penal). A finalizar, num balanço crítico, colocarei em evidência o que, do meu ponto de vista, urge rever na legislação portuguesa.
1. A referência aos instrumentos legislativos internacionais mostra-nos que não são muito diferentes os princípios que orientam as soluções adoptadas ao nível dos textos europeus, da União Europeia e do Conselho da Europa, e dos textos de vocação mundial das Nações Unidas.
Uma primeira observação diz respeito ao facto de não existir qualquer norma europeia ou mundial que fixe uma idade mínima para a «responsabilidade» de uma criança pela prática de um facto que seja qualificado como crime. Disto mesmo dá conta a Comissão Europeia, no Livro Verde relativo às «garantias processuais concedidas aos suspeitos e às pessoas postas em causa nos processos penais na União Europeia». Neste documento consagra-se um ponto relativo às crianças, como grupo particularmente vulnerável, devendo ser objecto de protecção adequada e suficiente, e insiste-se no facto de que o nível de protecção mais elevado deveria valer para toda a «criança», tal como é definida na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, isto é, toda a pessoa com menos de 18 anos.
Neste texto, de cerca de uma dezena de linhas, lamenta-se ainda que a idade da responsabilidade «penal» não seja idêntica em toda a União Europeia, já que vai dos 8 anos, na Escócia, a 16 anos, em Portugal, de modo que existem importantes diferenças entre os sistemas jurídicos dos Estados-membros.
Para além disso, o que se pode dizer é que a União Europeia se tem mostrado, até ao presente, muito pouco preocupada com o problema das crianças delinquentes. Os textos mais importantes continuam a ser, para além da Convenção sobre os Direitos das Crianças, outros elaborados pelo Conselho da Europa, merecendo aqui uma referência especial a Recomendação 2003-20, de 24 de Setembro.
Neste âmbito – e esta é já a segunda observação que quero fazer –, a filosofia europeia face à criança delinquente vai menos no sentido de a aproximar do adulto delinquente do que a tendência actualmente verificada nos Estados europeus. O que se pode dizer é que adoptam uma orientação e são testemunho de uma vontade política menos dependentes das «exigências» e «realidades» com que os Estados têm de se confrontar.
Com efeito, neste início do século XXI, a delinquência juvenil tornou-se, no contexto europeu, um factor de inquietação social, que vem legitimando alterações de cunho repressivo e securitário às respostas a esse fenómeno. Ressalta, assim, um relativo, mas real, «décalage» entre as disposições europeias e as soluções que os Estados europeus vêm consagrando em tempos mais recentes. Naquelas, mostra-se uma preocupação com a especificidade da delinquência juvenil e com a adequação da resposta social a dar-lhe, procurando-se um equilíbrio entre o cariz crescentemente punitivo e a abordagem de pendor educativo, que responde à necessidade e obrigação de respeitar o estatuto especial da criança, tributários de princípios humanistas e de solidariedade. Já ao nível da política criminal prosseguida pelos Estados europeus, observa-se uma orientação para a gestão do risco e da desordem sociais, relativamente às pessoas e aos seus comportamentos. E o facto de essas pessoas serem crianças ou jovens é cada vez menos tomado em atenção. O que significa que, em evidente contraste com a quase «angelificação» da criança delinquente, dominante até ao último quartel do século XX, assiste-se hoje à sua «diabolização», concretizada na «repenalização», por diversos modos, dos seus comportamentos violadores da lei. Pode dizer-se que, em países onde a criança «parecia ter saído do direito penal», «regressa» agora inequivocamente a ele. A esta política não é indiferente o crescente e generalizado sentimento social de insegurança, sobretudo urbano, em grande parte amplificado pelos media, ao dar conta de actos pontuais de violência, por vezes de grande violência, praticados por crianças, adolescentes e jovens, isoladamente ou em grupo.
A tendência para o endurecimento das políticas criminais da generalidade dos Estados europeus ocidentais tem-se traduzido, ao nível do ordenamento jurídico, de diversas formas: descida da idade mínima a partir da qual a criança pode ser responsabilizada pelo seu comportamento violador da lei, impondo-lhe uma sanção; previsão de penas ou medidas privativas ou crescentemente restritivas de liberdade; aumento da duração deste tipo de medidas; alargamento da rede de controlo, ao admitir-se que, a uma criança delinquente, ainda que pela prática de um só facto, sejam aplicadas medidas diferentes, de execução simultânea ou sucessiva.
Deve ainda acrescentar-se que, a representação social de que a delinquência juvenil está a crescer e a agravar-se não encontra correspondente representação estatística, mas tem tradução no discurso político justificativo das reformas europeias de cunho repressivo, securitário e punitivo.
Em Portugal, entrou em vigor, em Janeiro de 2001, a Lei n.º 166/99, de 14 de Setembro (Lei Tutelar Educativa – LTE). Este diploma e a Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro (Lei de Protecção das Crianças e Jovens em Perigo – LP), constituem os textos fundamentais da reforma do direito das crianças.
A ideia central é distinguir a situação de crianças agentes da prática de factos qualificados pela lei como crimes, a justificar a intervenção «educativa», da (situação) das crianças em perigo, que legitima a intervenção de «protecção». Ou seja, com a diferenciação de respostas busca atalhar-se à especificidade dos problemas manifestados e conferir eficácia à intervenção. De qualquer forma, o que não se perde de vista é que os sistemas de intervenção educativa e de protecção devem ser devidamente articulados, o que foi tido em conta nos dois diplomas legais referidos (art.ºs 43.º LTE e 81.º LP). Uma correcta política de intervenção estadual junto de crianças («política de menoridade») tem uma natureza necessariamente incindível. Não pode criar divisões artificiais – de protecção e assistencial, por um lado, e educativa, por outro –, exigindo que se estabeleçam «pontes de passagem». A resposta educativa pode, assim, ser exercida em termos de única resposta ou articular-se com a de protecção. Possível é ainda que um processo educativo venha a ser arquivado, mostrando-se a desnecessidade de intervenção educativa, e tenha lugar apenas a intervenção de protecção que entretanto se mostra, por seu turno, necessária. Além disso, prevê-se a possibilidade de aplicação provisória de medidas de protecção no processo educativo.
Outro aspecto que importa analisar é o de a LTE se aplicar a crianças delinquentes, com idade compreendida entre os 12 e os 16 anos de idade. A este propósito, oferecem-se duas considerações.
A primeira, diz respeito aos pressupostos desta intervenção educativa: exige-se a prova da prática de facto qualificado como crime e, cumulativamente, a prova de que a criança necessita de ser «educada para o direito», isto é, para os valores essenciais à vida em comunidade, como tais se considerando os valores protegidos através da lei penal. Sem a verificação deste último pressuposto, não há legitimidade para a intervenção educativa, ainda que se prove a prática de facto qualificado como crime. A identidade da intervenção educativa (ou a singularidade da lei portuguesa, se preferirmos) reside na autonomia deste pressuposto – concreta necessidade de educação da criança para o direito –, sem a verificação do qual, pese embora a prática de facto, a intervenção educativa não pode ter lugar (não haverá lugar a qualquer intervenção ou haverá apenas lugar à intervenção de protecção, se esta se mostrar necessária). A acrescer a isto, a concreta necessidade de «educação para o direito» deve verificar-se no momento da tomada de decisão que afecta a criança («actualização» da resposta educativa).
A segunda consideração prende-se com os limites etários da intervenção educativa.
Quanto ao limite mínimo – 12 anos – a partir do qual esta intervenção pode ter lugar, afigura-se justificado. Entende-se – correctamente, do meu ponto de vista – que a intervenção educativa não faz sentido em estádios de desenvolvimento da criança muito recuados, pois assenta numa educação para a responsabilidade «jurídica», pode mesmo dizer-se, com propriedade, «jurídico-penal» que abaixo de um certo limiar etário uma criança dificilmente pode compreender. A opção pelo limite dos 12 anos procura corresponder tendencialmente ao início da puberdade e, assim, a um limiar mínimo do desenvolvimento (da maturidade) da criança requerido para a compreensão do sentido da intervenção educativa. Alerte-se que, nestes casos, em que se verificou a prática de um facto qualificado como crime por uma criança com idade inferior a 12 anos, também se poderá (ou não) justificar uma intervenção de protecção, consoante se verifique (ou não) a sua necessidade.
A este propósito, o que pode ainda assinalar-se é que se está a verificar, em outras legislações europeias, um abaixamento do limiar mínimo etário a partir do qual já é permitida uma intervenção educativa e, por vezes, de cariz marcadamente «sancionatório», ainda que não necessariamente ou inteiramente de cariz penal em todos os casos. Como exemplos, posso referir o Reino Unido, onde, desde 1962, o limiar mínimo da idade até ao qual as crianças beneficiam da presunção de irresponsabilidade absoluta se situa nos 10 anos, tendo sido aprovado, entretanto, em 1998, o Crime and Disorder Act, que manteve aquele limiar mínimo, mas onde se acabou, entre os 10 e os 14 anos, com a presunção ilidível de irresponsabilidade das crianças.
É aqui de referir que o regime a que as crianças ficam sujeitas é um regime penal, ainda que especial nalguns aspectos. Também em França, com a Lei 2002-1138, de 9 de Setembro de 2002 – conhecida por Lei Perben I, do nome do Ministro da Justiça, seu impulsionador – passou a ser possível a responsabilização das crianças pela prática de factos qualificados como crimes a partir dos 10 anos de idade, aplicando-se-lhes medidas e sanções educativas. A Lei Perben I manteve ainda o quadro legal, nos termos do qual a partir dos 13 anos a criança é passível de responsabilidade penal. Vale aqui o princípio da oportunidade, decidindo o juiz em função das circunstâncias do caso e da personalidade do menor. A criança a partir dos 13 anos pode, assim, ser sujeita a prisão preventiva ou a pena de prisão, esta apenas reduzida a metade da duração que caberia ao adulto. De salientar, por último, que a Espanha manteve no limiar mínimo dos 14 anos a intervenção educativa, apesar de a Ley Orgânica 8/2006 ter representado um endurecimento das respostas à delinquência de crianças e jovens.
Quanto ao limiar máximo etário dos 16 anos fixado na LTE, ele corresponde, em Portugal, à idade da imputabilidade penal (art.º 19.º do Código Penal), entendida como capacidade de suportar um juízo de culpa jurídico-penal e cujo sentido político-criminal é eminentemente punitivo e preventivo.
Foi na Lei de Protecção da Infância, de 1911, que se elevou a idade da imputabilidade penal dos 14 para os 16 anos. Deste modo, inscrevendo-se no movimento filantrópico que se desenvolvia na América e na Europa ocidental, também entre nós se procurava retirar as crianças da prisão e, assim, evitar a sua sujeição precoce a um sistema fortemente repressivo, estigmatizante e carregado de simbolismo social.
O que aconteceu foi que, até hoje, o limiar dos 16 anos não mais sofreu alteração, sendo Portugal um dos poucos países ocidentais que não nivelou a «maioridade penal» com a maioridade civil (e política), fixada, desde 1977, aos 18 anos de idade. Considerou-se, na altura em que se levou a efeito a reforma do direito das crianças delinquentes, que poderia ser prematuro proceder a essa alteração antes de testar o funcionamento real do novo modelo educativo (que então se implantou, em substituição do modelo de protecção). Mas, não só a elevação da idade da imputabilidade penal era um objectivo a prosseguir, mostrando-se, como se esperava, a eficácia da intervenção educativa, como também a racionalidade do sistema se completava com um regime penal «especial» para jovens de idade compreendida entre os 16 e 21 anos. Embora não resolvendo totalmente o problema da aplicação de penas de prisão a menores entre os 16 e os 18 anos, procurava levar-se o mais longe possível a substituição destas penas por medidas «especiais» substitutivas da prisão (não previstas para adultos), numa política de luta contra a utilização da pena de prisão que se alargava até aos 21 anos.
Acontece que, por vicissitudes políticas, este regime penal especial nunca chegou a entrar em vigor. E, por seu turno, o «humor do tempo» é hoje, (também) entre nós, adverso à elevação da idade da imputabilidade, como se pretendia, para os 18 anos.
Neste contexto, verifica-se em Portugal uma situação não só gravosa como incongruente para os delinquentes menores de idade entre os 16 e os 18 anos.
Com efeito, e desde logo, se a prática do crime ocorrer com esta idade, o menor fica sujeito a sofrer a aplicação, não só das mesmas penas que os adultos, mas também das mesmas medidas de coação – o que equivale a dizer que está sujeito à aplicação da medida de coacção de prisão preventiva e da pena de prisão. Embora esta pena possa ser especialmente atenuada, a verdade é que não pode ser substituída por qualquer outro tipo de internamento, ao contrário do que sucede com um jovem maior de idade, compreendida entre os 18 e os 21 anos, que cometa um crime, e que pode ver a pena de prisão substituída por um internamento de outro tipo, constituindo uma verdadeira medida de correcção.
Para além disso, nos casos em que o menor de idade – entre os 16 e os 18 anos – se apresente carecido de protecção, observa-se, por vezes, uma deficiente articulação entre a intervenção de protecção e a intervenção puramente penal (art.º 82.º LP), funcionando a situação de desprotecção contra o jovem no processo penal.
Entretanto, se a prática do facto qualificado como crime ocorrer enquanto a criança for menor de idade (menos de 18 anos), mas antes de completar os 16 anos, é a própria LTE que permite – e bem – que as medidas tutelares educativas, designadamente o internamento em centro educativo, seja cumprido até o jovem completar 21 anos (se o implicar a duração da medida imposta). Entende-se que a «educação para o direito» assim o justifica, também de um ponto de vista substancial e não apenas por a criança ser, ao tempo da prática do facto, menor de idade, resultando incongruente que as mesmas razões não se possam invocar para justificar a mesma solução se o menor de idade praticar o crime depois de completar os 16 anos e até aos 18 anos. Como já se referiu, neste caso fica inclusivamente afastada qualquer possibilidade de intervenção tutelar educativa.
3. É neste quadro que o Comité dos Direitos da Criança manifestou a sua preocupação ao Estado português pelo facto de os menores de idade entre os 16 e os 18 anos estarem sujeitos às mesmas pena previstas para os adultos, podendo «não receber todo o benefício e protecção relevantes, no contexto dos processos de justiça de menores em razão da prática de factos tipificados com crimes» e recomendou ainda a Portugal que «assegure, em particular, que as crianças de 16 ou mais anos beneficiem de toda a protecção dos seus direitos, no contexto dos procedimentos da justiça de menores».
É, pois, urgente, quando a LTE passou já o «teste da realidade», que se cumpra o propósito anunciado aquando da sua elaboração, de elevar a idade da imputabilidade (responsabilidade penal) para os 18 anos. Esta alteração deveria ser acompanhada da entrada em vigor de um (novo) regime penal especial para jovens adultos delinquentes, que se poderia pensar alargar, então, até aos 25 anos.
De outro modo, Portugal continuará a ser um dos países europeus que conta com jovens de idade inferior a 18 anos nas suas prisões, em cumprimento (sobretudo) de medida de coacção de prisão preventiva e de pena de prisão: em 2006, 110 jovens cumpriam prisão preventiva e 3 cumpriam penas de prisão (todas de duração inferior a um ano). Se a isto acrescermos o facto de estes jovens cumprirem estas medidas e penas em estabelecimentos prisionais comuns, em virtude de o sistema prisional português actual não incluir, neste momento, estabelecimentos especiais, ou secções ou unidades dos estabelecimentos comuns, em função da idade, compreende-se que, de novo, se fale da «urgência da reforma» do direito das crianças e jovens delinquentes.
*Anabela Miranda Rodrigues. Professora Catedrática da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
Directora do Centro de Estudos Judiciários.
Comunicação apresentada, dia 16 de Dezembro de 2008, na «Conferência Internacional sobre as Reformas Jurídicas de Macau no Contexto Global», organizada pela Faculdade de Direito de Macau no 20.º aniversário da Faculdade de Direito.
07/01/2009