O art. 8.º da Lei n.º 6/80/M, de 5 de Julho, commumente designada por Lei de Terras, reza o seguinte: Sobre os terrenos do domínio público e do domínio privado do Território não podem ser adquiridos direitos por meio de usucapião ou acessão imobiliária.
Esta redacção tem suscitado uma viva controvérsia em tomo da reivindicação de direitos sobre numerosos prédios, cujos possuidores não têm qualquer título válido. A polémica iniciou se com a recusa de um Conservador do Registo Predial em registar sentenças judiciais que atribuíam o direito de propriedade com fundamento na usucapião. O Ministério Público, convencendo-se da bondade dos argumentos aduzidos, passou a contestar aquele tipo de acções.
Uma das pessoas que tem protagonizado o debate tem sido o advogado e deputado António Correia. Este causídico tem-se manifestado publicamente a favor da usucapião como meio de adquirir direitos reais de gozo sobre prédios do Território, tendo já proposto na Assembleia Legislativa que a Lei de Terras seja alterada de forma a permitir o afastamento de dúvidas ou divergências em sede judicial. Porém, a iniciativa não teve seguimento por circunstâncias várias…
Estando envolvido, como advogado, num processo judicial que versa esta questão e que, após várias vicissitudes, se encontra neste momento no Supremo Tribunal de Justiça, o Dr. António Correia achou conveniente recorrer à colaboração do Prof. Doutor Menezes Cordeiro que, além de ser um estudioso da matéria, defende a tese preconizada pelo advogado de Macau. O resultado das reflexões do professor catedrático de Lisboa tomou corpo no parecer que a seguir se publica, onde se procura, sobretudo, dar resposta a uma questão de direito que emergiu de uma situação concreta e particular.
Consulta
No Território de Macau, verifica-se a existência de situações nas quais particulares ocupam prédios, pública e pacificamente, há várias décadas sem, no entanto, estarem inscritos como proprietários.
Perante o Direito positivo aplicável e em termos de total isenção científica, pretende saber-se se tais prédios podem ser adquiridos por usucapião, e, sendo a resposta positiva, em que condições.
I – Introdução
1. Os termos do problema: a usucapião e as suas limitações.
I. O Código Civil vigente define a usucapião no seu artigo 1287.º:
A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião.
A noção legal — não vinculativa, enquanto fórmula científica —, tem sofrido algumas achegas doutrinárias. Na verdade, entende-se hoje que a posse se reporta a coisas corpóreas e não a «direitos». A usucapião será, então, a constituição, facultada ao possuidor, do direito real correspondente à sua posse, desde que esta, dotada de certas características, se tenha mantido pelo lapso de tempo determinado na lei[1].
Por seu turno, a posse é uma situação jurídica que surge quando alguém exerce, em certas circunstâncias, o controlo material sobre uma coisa corpórea[2].
II. A usucapião, vigente na generalidade dos actuais Direitos continentais, é o produto duma evolução histórico-cultural longa e complexa.
No antigo Direito romano, o domínio obtinha-se por um uso (uma posse) do imóvel por dois anos ou do móvel por um. Posteriormente, este instituto veio a mesclar-se com a prescriptio longi temporis: de origem grega, este instituto permitia à pessoa que, durante vinte anos, tivesse possuído uma coisa, invocar esse facto como modo de deter pretensões reivindicativas.
O Corpus Iuris Civilis operaria a fusão definitiva entre as referidas realidades. Deu, assim, lugar à «prescrição positiva» do Direito comum e do Código de Seabra, antecedente imediato da actual usucapião.
III. Os fundamentos sociológicos e políticos da usucapião têm sido debatidos ao longo da História. Fundamentalmente, o consenso tem sido feito em tomo de duas vertentes:
— a prova;
— a justiça material.
A nível de prova, verifica-se que o direito de propriedade e os demais direitos reais de gozo são, por definição, direitos de longa duração. Podem mesmo perdurar ao longo de séculos. Nessas condições, pode tomar-se inviável, para os titulares, provar o facto constitutivo do seu direito. A usucapião funciona então como meio irrefutável de prova: defende, antes do mais, a excelência da posição do proprietário legítimo.
Em termos materiais, a usucapião, assente na excelência duma posse qualificada e com prazos alongados, surge como fonte legitimadora do domínio. O possuidor mostrou merecer ser proprietário. Paralelamente, qualquer outro pretendente veio a colocar-se, pelo seu desinteresse, na posição inversa de mais não merecer a titularidade que, de facto, enjeitou.
Em suma: a usucapião realiza a velha aspiração histórico-social de reconhecer o domínio a quem, de facto, trabalhe os bens disponíveis e lhes dê utilidade pessoal e social.
IV. A usucapião tem determinados requisitos, que constam da lei, que têm sido analisados pela doutrina e que a jurisprudência, ao longo dos séculos, tem vindo a aplicar. Não é, contudo, problema da presente consulta examinar tais requisitos: eles não colocam dúvidas que, assumam, no âmbito do ordenamento de Macau, particular premência.
O tema a enfrentar resulta de outra ordem de considerações.
Em princípio e pela sua própria razão de ser, a usucapião funciona perante todos os bens apropriáveis, isto é, susceptíveis de posse individual. Há, porém, duas ordens de limitações:
— a dos bens sobre os quais não seja possível a propriedade privada; aí, o próprio efeito em jogo — a constituição do direito de propriedade — é impossível;
— a de situações especiais que, por razões ponderosas de política legislativa, a lei tenha decidido excluir da usucapião; a tal propósito, a própria noção legal de usucapião, contida no artigo 1287.º do Código Civil, teve o cuidado de ressalvar a eventual «… disposição em contrário …».
Na presente consulta, trata-se precisamente de averiguar em que medida as leis especiais de Macau, em nome do condicionalismo local, decidiram excluir certos bens da usucapião.
2. Os pontos a considerar
I. Na resposta ao problema em jogo, parece adequado caminhar do geral para o especial.
Não está em causa uma comum questão entre particulares que se disputem a titularidade de determinados bens: a dúvida suscita-se entre o próprio território de Macau e os particulares envolvidos.
Nestes termos, parece adequado começar por estudar o regime de bens do Estado e doutras pessoas públicas de base territorial, em geral. Trata-se, sabidamente, dum sector normativo que lida com as velhas noções de domínio público e de domínio privado do Estado ou entidades equiparadas. Há, ainda, regimes especiais a ter em conta.
II. De seguida, impõe-se rememorar o regime dos bens ultramarinos. O regime vigente em Macau é, ainda, em boa parte, tributário de regras genéricas adoptadas para o antigo Ultramar português.
Adiante-se, aliás, que o centralismo de Lisboa, particularmente aquando das reformas liberais e das reformas do Estado Novo, terá, por vezes, ido demasiado longe na uniformização dos regimes. Por certo que as situações de Cabo Verde, da Guiné, de S. Tomé, de Angola, de Moçambique, do Estado da índia, de Macau e de Timor não eram idênticas. E dentro desses territórios haveria, também, por certo, diferenças ambientais, económicas e sociais que justificariam uma maior diferenciação de regimes.
III. Por fim, caberá estudar o regime específico de Macau. A análise incidirá, por excelência, nos diplomas especialmente aprontados para esse Território.
Outros factores haverá, porém, que ter em conta. E designadamente: todo o regime específico de Macau pressupõe conceitos, normas e princípios de Direito privado português, tendencialmente aplicáveis. Além disso, a Ciência jurídica que irá guiar o intérprete-aplicador é, também, comum.
IV. Pelo exposto, a sequência irá considerar, sucessivamente:
— o regime dos bens do Estado e doutras pessoas públicas territoriais em geral;
— os bens ultramarinos;
— os bens de Macau.
II – Do regime dos bens do estado e doutras pessoas públicas territoriais em geral
3. O domínio público; conteúdo
I. O Estado é — ou pode ser — sujeito de Direito privado. Enquanto pessoa colectiva, ele pode agir despido dos seus poderes de autoridade, como qualquer particular. Nessa medida, como adiante melhor será enfocado, ele pode ser titular dos diversos direitos reais.
Mas o Estado pode, também, aproveitar coisas corpóreas através de esquemas próprios de Direito público, isto é, de esquemas que pressupõem normas que, no seu conjunto, postulam a favor de certas pessoas poderes de autoridade, dentro duma regra de competência, ou seja: uma regra que só permite agir perante normas habilitantes.
Tradicionalmente, domínio público traduz o conjunto de bens que o Estado aproveita para os seus fins usando poderes de autoridade, ou seja, através do Direito público[3].
II. A ideia de domínio público remonta ao Direito romano[4]. Já então se fazia notar que a dominialidade dependia dum duplo critério:
— a sua pertença ao Estado;
— a sua utilização por todos os membros da comunidade.
A pertença ao Estado conduzia ao ager publicus. Este não era, classicamente, susceptível de apropriação privada mas, apenas, objecto de concessões precárias. Mais tarde, o ager publicus iria sofrendo um processo de privatização, até se confundir com o domínio romano aquando das codificações.
A utilização comum deu azo às diversas categorias de res extra patrimonium, com destaque para as res communes omnium.
No período intermédio, diversas tensões generalizadoras levariam à confusão entre bens públicos e bens da coroa deixando-se, ainda, entender que a propriedade pública apenas pelo sujeito se distinguiria da privada.[5] De todo o modo, manteve-se a indicação das res extra commercium, portanto, de coisas que, pela natureza ou pelo Direito, não poderiam, à partida, ser objecto da comum propriedade privada[6].
III. O Direito positivo português vigente, na sequência referida, admite a categoria técnica e conceitual de domínio público. Este designa uma categoria de coisas e, ainda, os poderes do Estado sobre elas[7].
As coisas públicas — portanto, as que integram o domínio público — são enunciadas pela lei[8]. Doutrinariamente e na sequência de MARCELLO CAETANO[9], distinguem-se dois grupos de acordo com o critério a que obedeçam:
— o critério do destino das coisas;
— o critério dos caracteres que apresentam.
O destino dos bens abrange, ele próprio, três subcritérios:
— o uso público: são públicas as coisas destinadas ao uso de todos;
— o serviço público: são públicas as coisas utilizadas pelos serviços públicos ou sobre as quais incida a actuação destes;
— o fim administrativo: são públicas as coisas que, directamente, satisfaçam os fins duma pessoa colectiva pública.
Estes subcritérios apresentam uma progressão no sentido da artificialidade. Têm, porém, o óbice de não corresponderem inteiramente à realidade: é possível, nos três casos, apontar situações concretas que não são redutíveis por nenhuma das apontadas vias.
Os caracteres das coisas dão azo a dois subcritérios:
— a afectação: são públicas as coisas destinadas a produzir utilidade pública;
— a lei: são públicas as coisas assim consideradas por fonte bastante.
O último subcritério deve ser considerado o mais ajustado. Os restantes, nas palavras de MARCELLO CAETANO, mais não são do que indícios tidos (eventualmente) em conta pelo legislador.
IV. Quais são as coisas públicas, objecto do domínio público? A Constituição de 1933, no artigo 49.º, previa o domínio público e enumerava, directa e indirectamente, alguns bens que o integravam. Surpreendentemente, a categoria do domínio público não apareceu na Constituição de 1976, versão inicial. Haveria, então, que entender que ela subsistiu apoiada, apenas, na legislação ordinária[10]. A anomalia seria reparada na Revisão de 1989. Cabe recordar aqui o artigo 84.º da Constituição, tal como resultou da Revisão em causa:
1. Pertencem ao domínio público:
a) As águas territoriais com seus leitos e os fundos marinhos contíguos, bem como os lagos, lagoas e cursos de água navegáveis ou flutuáveis, com os respectivos leitos;
b) As camadas aéreas superiores ao território acima do limite reconhecido ao proprietário ou superficiário;
c) Os jazigos minerais, as nascentes de águas mineromedicinais, as cavidades naturais subterrâneas existentes no subsolo, com excepção das rochas, terras comuns e outros materiais habitualmente usados na construção;
d) As estradas;
e) As linhas férreas nacionais;
f) Outros bens como tal classificados por lei.
2. A lei define quais os bens que integram o domínio público do Estado, o domínio público das regiões autónomas e o domínio público das autarquias locais, bem como o seu regime, condições de utilização e limites.
Como se vê, para além da enumeração feita na Lei Fundamental, a própria Constituição remete para a lei. O regime é, também, matéria que preocupará o legislador ordinário.
4. Continuação; regime e natureza
I. O Direito público não é um Direito codificado. Assim, muitos dos regimes que nele surgem têm uma generalização problemática.
Estas considerações aplicam-se ao domínio público. As diversas hipóteses dominiais têm as suas regras: pense-se no domínio marítimo, no domínio ferroviário no domínio hídrico ou no domínio militar.
Não obstante — e ainda que à custa de certa abstracção — é possível indicar alguns aspectos gerais.
II. Como vectores normativos gerais atinentes ao domínio público, encontramos seguintes[11]:
— a constituição, a transmissão, a modificação e a extinção da situação dominial pública regula-se pelo Direito Público e, designadamente:
— só a lei pode determinar a publicização de um bem ou a sua desafectação;
— a comercialidade dos bens públicos não é possível em termos de Direito privado;
— só podem ser titulares pessoas colectivas de Direito público;
— o aproveitamento decorre em termos de Direito público, de modo a corresponder aos fins do Estado;
— a sua defesa é feita directamente Estado que, sem necessidade de prévio recurso aos tribunais, faz uso do seu ius imperii.
III. Pergunta-se, perante os elementos coligidos, qual a natureza jurídica do domínio público, enquanto situação jurídico-subjectiva.
A doutrina fala, a esse propósito, em propriedade pública. Sendo o direito de propriedade (privada) uma permissão normativa específica, plena e exclusiva, de aproveitamento duma coisa corpórea, a propriedade pública traduzirá uma permissão-obrigação pública normativa específica, plena e exclusiva, de proceder a esse aproveitamento.
Na verdade, no Direito público, os direitos subjectivos têm o sentido de poderes-deveres.
5. O domínio privado
I. Como foi referido, o Estado é sujeito de Direito privado. Nessa medida, ele actuará como qualquer pessoa, sem poderes de autoridade ou ius imperii[12]. Nessa medida, ele poderá adquirir os diversos direitos reais compondo, com eles, um património de tipo privado.
O domínio privado do Estado equivale a esse património ou, noutro prisma: traduz o direito ou direitos do estado sobre ele.
II. A propriedade técnica — portanto: o direito privado sobre imóveis — do Estado segue o regime geral do Código Civil. Pode, porém, haver especificidade.
Desde logo, o estado não actua, em termos internos, como qualquer pessoa colectiva privada. Há regras de competência, regras orgânicas e regras contabilísticas a observar.
Em termos externos porém, não há, em princípio, diferenças. Nas relações com terceiros, o Estado, no domínio privado, não se distinguiria de qualquer particular. Mas há que lidar com normas legais específicas.
III. Na verdade, o Estado não é proprietário comum: ele tem o poder legislativo próprio da soberania. Assim, ao longo dos tempos, e ainda que invocando — com mais ou menos razão — sempre o interesse público, o estado foi promovendo certas regras especiais que vêm perturbar a própria lógica da existência dum domínio privado do Estado.
Em termos interpretativos e aplicativos, cabe sublinhar que tais regras devem passar pelo crivo da Constituição e, designadamente, pelo princípio da igualdade e pelo do respeito pela propriedade dos outros.
Resolvido esse ponto, cumpre recordar que as regras em jogo são, ainda, materialmente excepcionais. Fica vedada a sua aplicação analógica e excluir-se-á, em princípio, qualquer interpretação extensiva.
Na falta de norma específica que satisfaça os apontados requisitos, o regime geral do Código Civil encontra aplicação: nesse sentido dispõe o artigo 1304.º do referido Código.
IV. Na base de certas especificidades é comum, no domínio privado, a distinção entre domínio privado disponível e indisponível. Como explica MARCELLO CAETANO, esta distinção não deve ser tomada à letra.
Em princípio, o domínio privado disponível reporta-se a bens que não servem nenhuma especial função especificamente administrativa do Estado. Intensificam-se, aqui, os vectores que levam à aplicação do Direito civil.
O domínio privado indisponível já tem a ver com bens que, embora não incluídos, pela lei, no domínio público, têm a ver com funções do Estado, sendo indispensáveis. A lei pode, então, prever um regime específico que, designadamente, restrinja as hipóteses de alienação.
III — Dos bens ultramarinos
6. Evolução geral
I. Os chamados domínios ultramarinos portugueses implicaram, por vezes, vastas extensões de território não povoadas ou sub-povoadas. Além disso, as áreas povoadas por nativos eram, por vezes, ocupadas por colonos.
Durante os séculos XVII e XVIII, a atenção do Estado português esteve concentrada no Brasil. Apenas no século XIX, como é sabido, foi prestada maior atenção a África e aos restantes domínios. Por isso, apenas nessa altura começaram a surgir medidas gerais para todo o Ultramar.
A primeira medida desse tipo relatada pelas fontes consta do Alvará de 18 de Setembro de 1811. Este diploma cometeu à Coroa a titularidade dos terrenos vagos no Ultramar. Admitia, porém, que os mesmos fossem «divididos» ou «emprazados», numa solução que, em termos actualistas, permitiria uma aproximação ao domínio privado disponível[13].
II. Um esquema de fôlego foi o resultante da Lei de 21 de Agosto de 1856. Este diploma regulava a «alheação» dos terrenos baldios do Ultramar pertencentes ao Estado, salvo determinadas restrições — artigo 1.º e seu § único. A alienação poderia ser por compra e venda — portanto, em propriedade — ou por emprazamento — artigo 5.º. O beneficiário deveria proceder ao aproveitamento dos terrenos, sob pena de multa e, decorrido certo prazo, de aforamento a terceiros — artigo 7.º.
As regras de «alheação» eram fixadas nos artigos 23.º e seguintes e 29.º e seguintes. A lei compreendia ainda importantes disposições diversas — artigos 40.º e seguintes — e significativas disposições transitórias — artigos 56.º e seguintes. Entre estas, cabe consignar o artigo 56.º, § 3.º:
Os possuidores de sesmarias ou de prasos que não apresentarem títulos nenhuns serão, não obstante, mantidos na sua posse, que lhes será confirmada pelo competente título, que se lhes deverá passar pelo teor das antigas cartas, se os terrenos estiverem tratados e benfeitorizados; ou no caso contrário, tornando-a perfeita e legal por meio de compra ou de aforamento, na conformidade das disposições desta lei; restringindo-se a respectiva área aos limites pelo mesmo fixados, e revertendo ao domínio do Estado os terrenos que excederem esses limites.
Percorrendo atentamente todo o texto desta lei, nada se vê, nela, sobre a aquisição por usucapião. Tão-pouco se lê, nela, qualquer não reconhecimento da posse não titulada; esta, aliás, a ser referida, não se prenderia, necessariamente, com a usucapião. Já no Direito romano se admitia posse inábil para a usucapião. Surpreende, assim, que num parecer da Procuradoria da República de Macau, aliás excelente, se venha defender o contrário[14].
III. A grande reforma civil do século XIX foi a resultante do Código de Seabra, aprovado por Carta de Lei de 1 de Julho de 1867. O Código Civil foi tomado extensivo ao Ultramar, pelo Decreto de 18 de Novembro de 1869.
O artigo 8.º revogou toda a legislação em contrário, com determinadas excepções; por exemplo, ficaram ressalvados os usos e costumes das Novas Conquistas e os de Damão e Diu, na índia, os usos e costumes dos Chins, nas causas de competência do procurador dos negócios sínicos, em Macau e os usos e costumes dos indígenas de Timor, nas questões entre eles — § 1.º.
A usucapião prevista no Código de Seabra passou a ser genericamente aplicável[15].
IV. De seguida, cabe referir a Carta de Lei de 1901 que aprovou instruções para a concessão de terras. Segundo o artigo 5.º da Lei em causa, pertence ao domínio do Estado tudo o que não for propriedade particular. Esse diploma declarava imprescritível o domínio directo — artigo 52.º — justamente num capítulo — o I do título II — em que tratava do aforamento nas concessões relativas às províncias de Angola, Moçambique, Guiné e distrito autónomo de Timor.
Justamente por via desta proibição, é de concluir que à aquisição, por usucapião, de propriedade antes pertencente ao Estado, haveria que aplicar o Código Civil. Dois argumentos devem ser ponderados:
— se a lei quisesse uma imprescritibilidade geral, teria tido toda a facilidade em dizê-lo;
— não há qualquer analogia de situações: o domínio directo do Estado está particularmente desprotegido, já que a posse efectiva do local compete ao enfiteuta, que ninguém incomodará; no caso da posse em termos de propriedade, o Estado tem mais facilidade em reagir.
De novo cabe criticar certas posições tornadas por órgãos estaduais e retomadas, ad autoritatem, pelo já referido Parecer da Procuradoria da República de Macau[16]: na base da Carta de Lei n.º 1901 — diploma extenso, com 89 artigos — não se retira nenhum princípio da imprescritibilidade dos bens privados ultramarinos do Estado.
Acrescente-se ainda que não havia qualquer regra que traduzisse uma invocada necessidade de manutenção dum domínio emanente do Estado: a própria Carta de Lei de 1901, no seu artigo 47.º, 3.º, admitia a remição do foro, adquirindo o enfiteuta o domínio directo.
V. Segue-se o Regulamento aprovado pelo Decreto de 2 de Setembro de 1901, que nada acrescenta: limita-se, no seu artigo 163.º, a repetir o artigo 52.º da Carta de Lei.
Segue-se o Decreto de 9 de Julho de 1909,que fixa um regime provisório aplicável a Moçambique e que foi mandado aplicar a Angola por Decreto de 12 de Novembro de 1911. Este diploma não continha qualquer regra de imprescritibilidade. Porém — e como faz OLIVEIRA ASCENÇÃO — há que chamar a atenção para o artigo 220.º do Decreto em questão[17]. Segundo esse preceito,
Toda a pessoa que na província seja senhora incontestável de quaisquer terrenos obtidos sem ser por meio de concessão (…).
Ora, sem ser por concessão, só é imaginável uma aquisição ou por acessão, ou por usucapião.
VI. Vem, depois, o Decreto n.º 1145, de 28 de Novembro de 1914, que alterou regras das concessões.
Tem interesse considerar de seguida o Decreto n.º 5347-C, de 31 de Maio de 1919. Logo o artigo 1.º vem atribuir à Província de Angola a titularidade dos terrenos vagos (e não ao Estado). O artigo 62.º conserva a imprescritibilidade do domínio directo, vindo o artigo 135.º a alargá-la aos terrenos arrendados — artigo 135.º. Parece pressuposta a prescritibilidade no tocante aos demais direitos e, designadamente, no tocante à propriedade: não faria, de facto, sentido vir o legislador afadigar-se em tomo duma enumeração crescente, quando pretendesse, pura e simplesmente, declarar imprescritíveis os terrenos vagos.
VII. Um cuidado especial foi posto na Lei n.º 2001, de 16 de Maio de 1944, que promulgou as bases gerais das concessões de terrenos do Estado no Ultramar. O Decreto n.º 33725, de 22 de Junho de 1944, regulamentou a matéria, aplicável a Angola, a Moçambique e à Guiné. Angola e Moçambique levantaram, porém, diversas objecções, vindo o Regulamento a ser suspenso pelo Decreto n.º 34597, de 12 de Maio de 1945.
O Regulamento da Ocupação e Concessão de Terrenos nas Províncias Ultramarinas foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 43894, de 16 de Setembro de 1961. Este diploma começava por definir o domínio público do Estado, no Ultramar — artigo 1.º — distinto dos terrenos vagos, pertença de cada província ultramarina — artigo 2.º.
O artigo 41.º, § único, determinava que sobre os terrenos do domínio público do Estado não pudessem ser adquiridos direitos por meio de usucapião.
O artigo 41.º classificava os terrenos vagos em três classes:
1.ª classe: terrenos abrangidos pelas povoações;
2.ª classe: terrenos demarcados para as populações, de acordo com seus usos e costumes;
3.ª classe: os restantes.
O artigo 48.º fixava a regra: sobre terrenos vagos não podem ser adquiridos direitos por meio de prescrição ou de acessão imobiliária. Resulta do diploma, no seu conjunto, que tal esquema era inovatório. O artigo 197.º dispunha, efectivamente:
Aos titulares de propriedade perfeita, não adquirida por concessão do Estado, sobre prédios identificados (…) poderá ser passado título.
Ora as únicas formas de, no Ultramar adquirir a propriedade sem ser por concessão do Estado seriam a usucapião e a acessão, seguidas, eventualmente, de aquisições derivadas; veja-se, aliás, o § 1.º, do mesmo artigo 197.º[18].
VIII. Pretendendo alargar o dispositivo do artigo 48.º do Regulamento aprovado pelo Decreto n.º 43894, de 6 de Setembro de 1961, o legislador ultramarino aprontou o Decreto n.º 47486, de 6 de Janeiro de 1967, cujo artigo 1.º veio determinar:
1. O disposto no artigo 48.º do Regulamento de Ocupação e Concessão de Terrenos, aprovado pelo Decreto n.º 43894, de 6 de Setembro de 1961, é aplicável a todos os terrenos do património das províncias ultramarinas ou das autarquias locais na posse de particulares que não possuam títulos de propriedade ou de concessão e que os não tenham adquirido por acto de concessão do Estado, província ou autarquia local, ainda que à data de entrada em vigor do referido regulamento já tivessem decorrido os prazos fixados na lei civil para a aquisição de direitos imobiliários por prescrição.
2. Exceptuam-se os terrenos cuja aquisição por prescrição já tenha sido declarada, à data da entrada em vigor deste decreto, por decisão judicial com trânsito em julgado.
Artigos subsequentes abriam, no entanto, a hipótese de legalização, nos casos em que houvesse aproveitamento.
O preâmbulo do Decreto n.º 47486 vinha apresentar o seu teor como interpretativo. Trata-se — e seja qual for a interpretação que, deste diploma, se queria perfilhar – dum esquema destinado a justificar a aparente retroactividade do transcrito artigo 1.º. Veremos, à frente, quais as consequências deste estado de coisas.
IX. Um aparente recuo nesta linha poderia ter sido significado pela Lei n.º 6/73, de 13 de Agosto, que aprovou nova Lei de Terras do Ultramar[19]. Segundo a base 11 deste diploma,
1. Consideram-se sujeitos ao regime da propriedade privada os terrenos sobre os quais tenha sido constituído definitivamente um direito de propriedade ou outro direito real.
A base VIII/3 conservava, no entanto, a proibição de usucapião e de acessão:
Sobre os terrenos do domínio público e os terrenos vagos não podem ser adquiridos direitos por prescrição ou por acessão imobiliária.
A base XXXIII previa a entrada em vigor da Lei com o Decreto que a viesse regulamentar. Tal Decreto nunca surgiu. O Império Ultramarino português estava, aliás, na sua fase terminal.
7. Terrenos vagos e usucapião
I. A análise global acima efectuada sobre os bens ultramarinos e, designadamente, os denominados terrenos vagos, permite avançar algumas precisões.
Antes de mais, parece claro que toda a copiosa legislação existente teve como motor os Estados Portugueses de Angola e de Moçambique. A própria figura de «terrenos vagos» — portanto: grandes extensões de territórios não ocupadas permanentemente por seres humanos — só aí era concebível. Trata-se duma asserção corroborada pelas cifras em jogo: admitia-se, por exemplo, que o Estado pudesse conceder, a particulares, domínios com extensões até 250000 ha.
Este estado de coisas é importante para se entender a proibição, no fundo a mais justa das formas de aquisição de propriedade: dada a dimensão do território, a posse era incontrolada, podendo haver abusos; no limite, poderia apresentar-se um interessado que através duma posse mal detectada pelas autoridades, reivindicasse domínios com milhões de hectares.
Não parece nada realista vir transferir esta occasio legis e esta ratio decidendi para pequenos territórios, como Macau. Aí, a proibição de usucapião equivale a despojar pequenos moradores das suas habitações e não poderosos colonos de (duvidosos) domínios.
II. No Ultramar, a usucapião dos terrenos vagos era, de todo o modo, possível, pelo menos a partir do Código de Seabra, como se viu.
De facto, os terrenos vagos pertencem ao património privado do Estado ou das Províncias. Tal património sujeita-se ao Direito privado, em toda a sua plenitude, salvo no que norma expressa venha a excluir. A assim não ser, a distinção entre o domínio público e o domínio privado perderia conteúdo.
Ao contrário do que por vezes se lê em documentação estadual, a usucapibilidade dos terrenos vagos sempre foi reconhecida pela lei e pelos seus comentadores.
No tocante à lei, bastará recordar o já citado artigo 173.º do Regulamento aprovado pelo Decreto n.º 43894, de 6 de Setembro de 1961: como poderia haver titulares de propriedade perfeita não adquirida por concessão do Estado sem se admitir a via da usucapião ou da acessão? Além disso, sucederam-se, ao longo de décadas, proibições (muito) sectoriais de prescrição, incompreensíveis se houve uma proibição geral.
Quanto à doutrina, tem interesse recordar, pela sua actualidade, um texto publicado na Gazeta dos Advogados da Relação de Luanda, em 1932:
Com efeito, afastadas as raras decisões divergentes e sem ter em conta a opinião que os representantes do Estado, à falta de melhores argumentos, algumas vezes foram obrigados a defender, deve dar-se por fixada e assente a doutrina que, desde o começo da vigência da lei de 9 de Maio de 1901, atribui ao mesmo Estado a propriedade privada das terras do Ultramar, que àquela data ainda não tivessem dono, só classificando de «cousas públicas» os imóveis a que a própria lei ou os diplomas posteriores que a substituíram, declaram não poderem ser objecto de futuras concessões.[20]
De resto, o único escrito doutrinário publicado em data mais recente à luz da actual metodologia jurídica — o artigo Terrenos vagos e usucapião, de OLIVEIRA ASCENÇÃO, já várias vezes citado — admite claramente, antes das reformas dos anos sessenta, a usucapibilidade de tais terrenos.
III. A partir de determinada altura, certos diplomas, virados para Angola e para Moçambique, vieram proibir a usucapião de terrenos vagos. Eles não podiam ter atingido as situações em que o respectivo prazo já tivesse expirado ao abrigo da lei velha: o direito de invocar a propriedade é, só por si, um direito patrimonial privado, tutelado pelo «direito de propriedade» garantido pela Constituição de 1933. Seria impensável vir defender recuos, neste domínio, através da Constituição de 1976.
IV. Quando se trata o tema «terrenos vagos e usucapião» há uma tendência imediata e natural para ver, nele, uma questão de usucapião contra o Estado.
A usucapião, porém, pode ser invocada pelo próprio proprietário que, por qualquer razão, não disponha de título registado. Na verdade, o registo predial não é constitutivo nem é obrigatório, no Ultramar. Por isso, a pessoa que, por qualquer razão, tinha dificuldades em estabelecer o seu direito poderá sempre recorrer à usucapião: obtido o competente reconhecimento, procede ao registo.
A questão, neste campo, será a de provar que certo terreno é «terreno vago». Não é, de modo algum, terreno vago todo aquele que não se ache registado! Se o terreno estava no comércio privado, há que entender, nos termos dos diversos diplomas que têm vindo regular a matéria que o mesmo é totalmente privado.
Ora os particulares podem, entre si, invocar a usucapião, seja como modo de dirimir litígios inter-individuais, seja para regularizar a situação registal.
IV. Dos bens de Macau
8. Situação legislativa
I. Os elementos recolhidos permitirão, na opinião do signatário, ponderar o caso de Macau. Impõe-se, em primeiro lugar, levantar a situação legislativa específica do território.
Na base surge a Portaria n.º 180, de 15 de Outubro de 1904, que aprovou instruções provisórias para a concessão de terrenos na província de Macau. O seu teor tem a ver, apenas, com a concessão e o seu processo.
Segue-se a Portaria n.º 40, de 3 de Abril de 1908, que aprova o Regulamento geral provisório para a concessão de terrenos em Macau. Cumpre registar que este diploma admitia, no aforamento para cultura, a remição do foro, ao contrário do que sucedia no aforamento para construção — artigo 18.º. Esta solução viria a ser alterada pelo Regulamento geral aprovado pela Portaria n.º 170, de 22 de Outubro de 1908, que vedou qualquer hipótese de remição — artigo 11.º.
A Portaria n.º 303, de 16 de Dezembro de 1914 ocupou-se dos terrenos das Ilhas de Taipa e Coloane, declarando do Estado os que não constituíssem propriedade particular adquirida nos termos da legislação portuguesa — artigo 1.º. A legislação portuguesa previa a usucapião.
II. O Diploma Legislativo Provincial n.º 18, de 19 de Maio de 1928, veio aprovar o Regulamento para a concessão de terrenos na província de Macau. Como logo se infere do seu artigo 1.º, esse diploma vinha regular a cedência de terrenos da província pertencentes ao Estado, através de aforamento — artigos 17.º e seguintes — e ocupação temporária — artigo 65.º e seguintes. Nada mais.
Um novo Regulamento foi aprovado pelo Diploma Legislativo n.º 651, de 3 de Fevereiro de 1940. Para além de mais desenvolvido, este Regulamento veio permitir a remição dos foros — artigo 44.º — e a transmissão das concessões — 45.º.
III. O Decreto n.º 43894, de 6 de Setembro de 1961, não teve aplicação em Macau: destinou-se, apenas, a Angola, Moçambique e Guiné.
De todo o modo, surgiu o Diploma Legislativo n.º 1679, de 21 de Agosto de 1965, que, no seu preâmbulo, declarou ter em conta os «ensinamentos técnicos e doutrinários» colhidos do Decreto n.º 43894. A ímprescritibilidade não era, contudo, estabelecida. Mantinha-se a hipótese de remição do domínio útil.
O Decreto n.º 47486, de 6 de Janeiro de 1967, por seu turno, a ser interpretativo do Decreto n.º 43894, de 6 de Setembro de 1961, não teria, também, aplicação em Macau: faltaria a lei a interpretar.
IV. Por fim, há que lidar com a Lei de Terras de Macau, aprovada pela Lei n.º 6/80/M, de 5 de Julho.
Este diploma distingue claramente terrenos do domínio público, terrenos do domínio privado e terrenos de propriedade privada – artigo 1.º. São terrenos do domínio público os assim considerados por lei — artigo 2.º. São terrenos de propriedade privada aqueles sobre os quais se tenha constituído definitivamente um direito de propriedade a favor de quem não seja pessoa colectiva de direito público — artigo 5.º. Ao domínio privado pertencem os terrenos restantes — artigo 6.º/1.
Os terrenos vagos pertencem ao domínio privado — artigo 7.º/2. O artigo 8.º introduziu, finalmente, a regra da imprescritibilidade:
Sobre os terrenos do domínio público e do domínio privado do Território não podem ser adquiridos direitos por meio de usucapião ou de acessão imobiliária.
V. De assinalar, por fim, que a Constituição da República de 1976, designadamente no tocante aos direitos fundamentais, é aplicável a Macau[21]. Os tribunais — para mais, os portugueses — não aplicam normas de Macau contrárias à Constituição.
9. O regime aplicável
I. O regime aplicável aos bens imóveis situados em Macau depende, como se viu da sua qualificação como pertencendo ao domínio público, ao domínio privado ou à propriedade privada.
O domínio público é definido por lei; logo, não há dúvidas quanto à sua composição.
A propriedade privada abrange, segundo o artigo 5.º da Lei de Terras, os terrenos sobre os quais tenha sido constituído definitivamente um direito de propriedade por outrem que não pessoas colectivas de direito público. Só depois surge o artigo 6.º que, residualmente, define o domínio privado do Território.
Pois bem: só é possível aplicar o artigo 6.º depois de concluir que o bem em jogo não preenche o artigo 5.º. Nunca o inverso.
II. O problema do regime aplicável não deve limitar-se à usucapião. Nos termos do artigo 1268.º/1, do Código Civil, o possuidor goza da presunção de propriedade.
Assim, se um bem se encontra na posse de particulares, presume-se a propriedade, a menos que o Território tenha melhor presunção ou que consiga ilidir a presunção do particular. Se se presume a propriedade, esta irá ser dada como provada: o bem integra-se no sector do artigo 5.º — propriedade privada.
III. Resulta do teor sistemático da Lei de Terras que não há qualquer intenção normativa de retirar terras aos particulares. O legislador teve o cuidado expresso de reservar para o Território apenas os terrenos residuais.
A evolução histórica acima examinada não deve permitir generalizações: é evidente que a situação social de Macau não se pode comparar com a de Angola ou a de Moçambique, na primeira metade deste século.
O legislador, quando se dirigia à realidade africana, tinha de combater as grandes companhias coloniais e os colonos abusivos, que desapossavam o Estado e os indígenas — «os vizinhos das regedorias». Em Macau, a realidade é, seguramente, diversa.
Aparentemente, a aplicação a Macau das leis africanas conduz precisamente a resultados contrários aos pretendidos pelo legislador: vai promover o desapossamento das nativos!
Aliás, a própria Lei de Terras de Macau, ao aceitar a locução «terrenos» não tem em vista, de acordo com toda a evidência interpretativa, edifícios e construções puramente urbanos.
IV. Todas estas anomalias interpretativas serão evitadas se se proceder a uma interpretação adequada da lei, sobre um pano de fundo de aplicação do Direito civil: não é, apenas, o conjunto de normas sobre usucapião que está em causa: joga-se, antes, todo o Direito civil.
10. A usucapião; conclusão
I. Quando, em Macau, alguém invoque a usucapião, é falsa pista supor:
— que, porque se invoca a usucapião, ninguém tem a propriedade privada sobre o bem;
— que, logo, o bem em jogo é do domínio privado do território;
— e, daí, imprescritível.
O caminho a percorrer é diferente, justamente porque se aplica o direito privado ao seu todo.
Quem invoca a usucapião, invoca a posse. Esta leva a presumir a propriedade — artigo 1268.º/1, do Código Civil. Trata-se duma presunção que o Território poderá ilidir com base em melhor posse ou em registo contrário ou, ainda, nos termos gerais. Se não o fizer, o terreno será dado como pertencente a um particular, integrando-se no sector da propriedade privada.
Pertencendo ao sector da propriedade privada, pode, sobre ele, invocar-se a usucapião.
II. Temos, ainda, a considerar uma segunda ordem de argumentos, que apenas funcionarão quando o Estado ilida qualquer presunção de titularidade dos privados: a inconstitucionalidade da aplicação retroactiva do artigo 8.º da Lei de Terras de Macau.
Como ponto de partida, há que recordar o teor inovatório desse preceito. Não é exacto que a imprescritibilidade dos terrenos vagos do Ultramar tenha sido firmada em 1856: ela surgiu em 1961, através do Decreto n.º 43894, que não se aplica a Macau. Consequentemente, não se vê como aplicar a Macau o Decreto n.º 47486, de 6 de Janeiro de 1967 que, em termos substancialmente inovatórios, vem ampliar o artigo 48.º do Regulamento aprovado pelo citado Decreto n.º 43894. O seu artigo 1.º/1 não podia ser mais claro.
A imprescritibilidade dos terrenos vagos de Macau foi, assim, fixada apenas em 1980.
A posse boa para usucapião, acrescida do decurso do prazo legal, dá lugar a um direito potestativo: o direito de invocar a usucapião. Tal direito tem natureza patrimonial privada, estando genericamente protegido pelo artigo 62.º/1 da Constituição: a «propriedade» aí referida é, sabidamente, não (apenas) o direito real de propriedade mas, em geral, o conjunto dos direitos patrimoniais privados.
A lei não pode, sem justa, indemnização, retirar ad nutum o direito, já formado, de invocar a usucapião. Há que evitar interpretações inconstitucionais.
Assim, apesar do artigo 8.º da Lei de Terras de Macau, é possível invocar a usucapião desde que o decurso do prazo necessário se tenha concluído antes da sua entrada em vigor. Os prazos da usucapião são os normais: a invocação é feita genericamente, contra quaisquer particulares interessados, já que o objecto da posse está no sector de propriedade privada. Não se pretende tirar nada ao Estado.
III. As duas situações acima referenciadas jogam independentemente uma da outra. Ou melhor: em alternativa, desde que se verifiquem os respectivos requisitos.
Tudo isto é dobrado pela realidade de Macau e pela inconveniência de, a esse Território, aplicar princípios decantados para as grandes possessões africanas.
Há, porém, que ponderar ainda outra ordem de ideias.
O Estado — ou o Território — no domínio do Direito privado (e do Direito público) subordina-se ao princípio da boa fé.
Ora, a essa luz, é de todo inadmissível que o Estado, durante anos a fio, cobre contribuições prediais, aceitando certos contribuintes como proprietários e que, no termo de muitos anos, venha contraditar o que sempre afirmou, bloqueando o direito dos privados. Haveria um claro venire contra factum proprium, pacificamente vedado pela jurisprudência do Supremo.
Admite-se, porém, melhor parecer.
Notas
[1] MENEZES CORDEIRO, Direitos Reais, 2.º vol. (1979), 670. [2] Não cabe agora invocar a querela clássica entre os pensamentos de SAVIGNY e de JHERING, quanto a saber se a lei portuguesa consagra uma orientação subjectivista ou objectivista de posse. A matéria pode ser confrontada, com indicações, nos nossos Direitos Reais, 1.º vol. (1979), 538 ss. [3] MENEZES CORDEIRO, Direitos Reais, 1.º vol. (1979), 178. Cf., por último, VINCENZO CERULLI IRELLI, Beni pubblici, em Digesto, 4.ª ed., Discipline Pubblicistiche, 2.º vol. (1987), 273-303 e VICENZO CAPUTI CAMBRENGIII, Beni pubblici (uso dei), idem, 304-318. [4] Cf. ENNIO CORTESE, Demanio (diritto romano), ED vol. 12 (1964),70-74 e MARIA ADA BENEDE1TO, Demanio (storia deldiritto), NssDI vol. 5 (1960), 423-427. [5] Cf. ENNIO CORTESE, Demanio (diritto intermedio), ED vol. 12 (1964), 75-83. [6] Cf. GUSTAVO INGROSSO, Demanio (diritto moderno), NssDI, vol. 5 (1960), 427438 (427). [7] DIOGO FREITAS DO AMARAL, A utilização do domínio público pelos particulares (1965), 12. [8] CARLOS MOREIRA, Do domínio público (1931), 124 ss. [9] MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, tomo 11, 9.ª ed. (1972), 957 [10] MENEZES CORDEIRO, Direitos Reais, 1.º vol. cit., 182-184; uma enumeração de diplomas pode ser confrontada em J. F. NUNES BARATA, Domínio público, Pólis, 2.º vol. (1984), 706-711 (707 ss.). [11] MENEZES CORDEIRO, Direitos Reais, 1.º vol. cit., 180-181. [12] Cf. J. F. NUNES BARATA, Domínio privado, Pólis 2 (1984), 695-706 (695). Para maiores desenvolvimentos, MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, 2.º vol., 9.ª ed. cit., 936 ss. [13] Cf. Regime jurídico dos terrenos do Estado no Ultramar, sem indicação de autoria, na Gazeta dos Advogados da Relação de Luanda, ano II (1932), n.ºs 1 a 3, I-X (V). [14] Parecer de 18-Set.- 1990, fl. 11. [15] Cf. OLIVEIRA ASCENÇÃO, Terrenos vagos e usucapião, RDES XXIII (1976), 23-62(33). [16] Parecer de 18-Set.- 1990, fls. 11 v. [17] OLIVEIRA ASCENÇÃO, Terrenos vagos e usucapião, cit., 35. [18] OLIVEIRA ASCENÇÃO, Terrenos vagos e usucapião cit., 37. [19] Cf. o interessante Parecer n.º 49/X da Câmara Corporativa, relativo ao Projecto de proposta de lei n.º 12/X, da Lei de Terras do Ultramar, em Actas da Câmara Corporativa, n.º 145, X Legislatura 1973, 3 de Março, 1899-1961, relatado por JOSÉ FERNANDO NUNES BARATA. É interessante registar, aqui, as afirmações de função social da propriedade (p. 1905) e a preocupação de ressalvar os direitos dos “vizinhos das regedorias”, isto é, da população nativa (p. ex., p. 1919). [20] Regime jurídico dos Terrenos do Estado no Ultramar, cit., I. O próprio JOSÉ GUILHERME MARTINS ALVES, do M. P., no seu aliás excelente parecer A propriedade dos terrenos vagos no Ultramar, SI XIII, n.ºs 68/69 (1964), 397-403, marcado por várias posições restritivas não justificadas, arranca da ideia da prescritibilidade do domínio privado do Estado. [21] Cf. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., 2.º vol. (1985),478. A evolução constitucional no território pode ser confrontada em JORGE NORONHA E SILVEIRA, Subsídios para a História do Direito Constitucional de Macau (1820-1974) (1991).*Professor da Faculdade de Direito e da Universidade Católica Doutor em Direito.
Parecer publicado na edição de Dezembro de 1993.