J.J. Gomes Canotilho
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
Reflexões sobre a Declaração Conjunta Luso-Chinesa e a institucionalização do recurso de amparo de direitos e liberdades na ordem jurídica de Macau.
I – Razão de Ordem
O problema que nos propomos aqui abordar é o do significado prático e jurídico da institucionalização do recurso de amparo na ordem jurídica de Macau, nos termos do artigo 17 da Lei n.º 112/91 de 29 de Agosto (Lei de Bases da Organização Judiciária de Macau). Parece-nos, porém, que se limitássemos as nossas palavras lidas à análise jurídica do texto da lei, correríamos o risco de um exercício semântico desgarrado dos condicionamentos prático-culturais de Macau. À guisa de enquadramento registamos aqui algumas considerações do ordenamento jurídico de Macau. O nosso dito pecará, eventualmente, pelo desconhecimento do paralelogramo das forças políticas de Macau. Isto talvez seja compensado pela modéstia de ambições desta comunicação. Ela pretende ser apenas um polilogo, isto é, um diálogo com os homens e as suas palavras.
1. As palavras e os homens
Gostaria de intitular esta minha comunicação com os dizeres em epígrafe: as palavras e os homens. O mote para tal titulo está aqui próximo de nós: «quem não conhece o sentido das palavras não pode conhecer os homens». Esta máxima de Confucio sintetiza, numa fórmula plástica, a sagece milenar do pensamento chinês. Do que se trata aqui é de nos aproximarmos do sentido das palavras – de algumas palavras – contidas na Declaração Conjunta da República Portuguesa e do Governo da República Popular da China sobre a transferência de soberania de Macau e de algumas leis vigentes no ordenamento de Macau.
Das palavras passaremos aos actores e dos actores ao sistema. Talvez, no fim, possamos captar o sentido das palavras e a alma dos homens, mediante a abordagem do instituto do amparo para defesa de direitos e liberdades.
2. O desafio: um país, dois sistemas
Para um jurista europeu, sobretudo para aquele que se formou sob dois dogmas – o da unidade do sistema e o do sistema sem actores –, a Declaração Conjunta vem trazer novos e estimulantes desafios à imaginação política e jurídica. Permita-se-nos uma ou duas notas em torno da unidade e do sistema.
O pensamento da unidade e os respectivos corolários lógicos da hierarquia de normas, da pirâmide normativa, das relações de supra-infra ordenação das fontes de direito tinham em mente um sistema desesperadamente ancorado num ponto único de imputação, fosse ele o Estado – a unidade do Estado –, fosse ela a Constituição – a unidade da Constituição –, fosse ele ainda a unidade da soberania do Estado. Em qualquer destas representações escondia-se sempre uma «vontade suprema», uma norma básica, um «ponto arquimediano» possibilitador da existência de um centro político, de um sujeito estatal, ordenador e integrador do Estado-sociedade. Numa palavra: em todas as nossas construções – políticas, filosóficas, dogmáticas e jurídicas – emergia sobranceiramente um «sujeito-macro», ou, se se preferir um «macrosujeito» a quem competia a função mágica de assegurar a ordem, a hierarquia e a legalidade. Escusado será dizer que o complexo estruturante «Estado-Sociedade» não só pressupunha uma arquitectura centralizante do poder político como impunha uma visão homogeneizadora das próprias estruturas sociais. Uma concepção deste tipo, a que não falta o suporte ambicioso de um idealismo objectivo e de uma «concepção burocrática-maquínica» da organização política, conduziu, como se sabe, a experiências políticas totalizantes. Cremos que qualquer recordação «amiga» deste tipo de Estado verá com perplexidade uma proposta organizatória tão arrojada e realista como a de um «país dois sistemas» avançada na Declaração Conjunta.
3. Sistemas com actores
As próprias palavras – «um país, dois sistemas» – nos impelem para outros horizontes, para outras imagens da sociedade e do poder. Deixemos o centro estatal e preocupemo-nos com o sistema. Para um homem, como nós, que fez a sua formação nos anos sessenta e setenta, nada mais fácil do que recuperar a cadeia do tempo e tentar fornecer instrumentos de análise recorrendo aos seus maitre-penseurs da altura, isto é, os estruturo-marxistas franceses (Althusser, Poulantzas). Mas a reactivação da memória revelar-se-ia agora desconsoladora: um marxismo ancorado na glacial dialéctica da negatividade fornecer-nos-ia as traves mestras da representação de uma «sociedade-máquina», de um sistema político capitalista autoritário e arrogante. Devemos confessar que o nosso pensamento de esquerda nos levava a uma repetitiva afirmação da maldade de um sistema – o capitalismo – e a uma apriorística crença na bondade do outro sistema – o socialista.
Tudo isto se movimentava, como foi já notado, (A. Touraine), dentro de uma lógica impessoal dos sistemas que não permitia ver a leveza dos actores. A ideologia tornava opacos os factores de mudança. Assim, enquanto continuávamos a contestar a «ordem imóvel», as coisas mexiam: o consumo, as tecnologias, os meios de informação, a saúde e o ensino apontavam para a pujança dos actores e para a criação destruidora do sistema. Isto mesmo viu a República Popular da China: a teoria da contradição principal, desenvolvida sobretudo a partir de 1977 pelas autoridades chinesas, mais não é que o reconhecimento de que qualquer projecto de modernidade dificilmente se compagina com esquemas holísticos e com concepções globalizantes onde se rompa o diálogo entre a razão e o sujeito, e, consequentemente, se feche o caminho da renovação do sistema, de qualquer sistema. Neste contexto, torna-se mais compreensível o diagnóstico da contradição principal feito nos Estatutos do Partido Comunista Chinês (aprovado em 6 de Setembro de 1982):
«A contradição principal na sociedade chinesa é a contradição entre as crescentes necessidades materiais e culturais do povo e o atraso da produção social».
A tarefa da política consistirá doravante, para as autoridades chinesas, na modernização da economia, ciência e técnica. O impulso modernizador poderá, assim, ancorar-se nas prestações materiais de outro «sistema». Os actores reaparecem nem que seja para revelar os agentes da «transição suave» a que alude o documento chinês conhecido pelo nome de «Lei Básica».
II Lei Básica e Constituição
1. Concepções de Constituição
As considerações anteriores transportam insinuações que não é demais salientar: o sistema só pode compreender-se como sistema com actores. E actores de corpo e alma. Mas os actores, para se moverem, necessitam, como é óbvio, de um caminho que se faz caminhando, mas de um caminho com margens onde se transita com alguma segurança. Ora esta segurança há muito que é garantida nos quadrantes jurídicos ocidentais por uma lei fundamental, uma «Constituição da liberdade» garantidora de direitos e limitadora de poderes. («Conceito ocidental de Constituição» nas palavras do Professor Rogério Soares). Mas como se poderão conciliar duas concepções de leis fundamentais tão aparentemente antagónicas como são a concepção ocidental de Constituição e a ideia socialista de lei fundamental? O problema, agora, é o de «um pais dois sistemas e duas constituições…». De um lado, a ideia ocidental de Constituição orientada para uma vinculação jurídica do poder, para o estabelecimento de um governo com limites políticos e jurídicos, para uma garantia das liberdades fundamentais, para um controlo recíproco dos centros de poder. Do outro lado, uma Constituição socialista virada para a consolidação do domínio, fins e organização do poder socialista. Não andaremos longe da verdade se dissermos que o ponto de encontro entre as duas constituições terá de ser o da conciliação entre a programaticidade conformadora das leis fundamentais socialistas com a normatividade garantística e estabilizadora da constituição ocidental. Noutras palavras, possivelmente com conteúdo mais informativo: se a normatividade constitucional se desenvolve nos limites de uma concepção política global do mundo e da vida – a mundividência socialista chinesa – nem por isso ela deixa de ter, também, aqui, uma função de estabilidade e segurança jurídicas. Estas ideias de estabilidade estão bem patentes na Declaração Conjunta Luso-Chinesa e no Esclarecimento do Governo da República Popular da China sobre as Políticas Fundamentais respeitantes a Macau (daqui em diante: Esclarecimentos). Se interpretamos bem as coisas, os valores que impregnam o conceito de Constituição emergem também agora como valores jurídicos fundamentais na teoria da modernização chinesa. Significativo, a este respeito, é o artigo 62.º, n.º 2, da Constituição Chinesa, onde se estabelece: «A Assembleia Popular Nacional tem os seguintes poderes e funções: (2) – Fiscalização do cumprimento da Constituição».
O sistema jurídico-constitucional chinês não se assume como uma partidocracia constitucional mas como um Estado Constitucional. Diferentemente do que acontecia com as Constituições de 1975 e 1978 – mas de forma algo análoga ao que se estabelecia no texto constitucional de 1954 –, a Constituição desfruta de primazia normativa perante as outras normas jurídicas e fontes de direito e apenas pode ser revista por uma maioria de dois terços da Assembleia Popular Nacional. Julgamos mesmo que o reforço do princípio da constitucionalidade dos actos do Estado traduz o acolhimento de um verdadeiro sentimento constitucional dos cidadãos chineses. Sirvam-nos de exemplo estas palavras do Secretário do Partido de uma siderurgia de Shangai:
«O que eu pensava era que a garantia constitucional da estabilidade nacional constituía um desejo acalentado há muito pelo nosso povo. A Revolução Cultural tornou-nos claro como é importante uma Constituição».
No final do Preâmbulo da Constituição Chinesa acentua-se o significado da Constituição como lei das leis. A Constituição em forma de lei é proclamada como «lei fundamental do Estado» e dotada da «suprema autoridade legal». Fórmulas como «protecção da Constituição» e «garantia do cumprimento da Constituição» (Preâmbulo, in fine) confirmam o que se tem vindo a afirmar. A ideia socialista de Constituição – balanço e programa político – acolhe subtilmente algumas dimensões da ideia ocidental de “magna carta”, emergindo agora a lei básica da China como tendencial fundamento e limite do poder e com estatuto garantidor de direito e relações subjectivas. Compreende-se, assim, que a Constituição chinesa de 1982 tenha ousado mesmo constitucionalizar o «partido dirigente» tradicionalmente colocado fora da Constituição e das leis. Atente-se no artigo 5.º:
“(…) Todos os órgãos do Estado e Forças Armadas, todos os partidos políticos e organizações sociais, todas as empresas e instituições devem observar a Constituição e as leis. Qualquer acto que viole a Constituição e as leis deve ser sancionado.
Nenhuma organização pode desfrutar do privilégio de ultrapassar a Constituição e as leis».
Como se vê, os princípios da constitucionalidade e da legalidade dos actos do Estado vinculam todos os órgãos dos poderes públicos, desde os órgãos do Estado aos órgãos administrativos passando pelos órgãos do Partido.
2. Modernização política e continuidade jurídica
O reforço do princípio da constitucionalidade da acção do Estado não surge desgarrado do contexto sistémico chinês. A teoria da modernização coloca entre parênteses a transcendência normativa da utopia política e tenta combater os desvios da desvinculação jurídica que caracterizaram a dinâmica revolucionário-cultural. Não admira, pois, que categorias jurídicas tão arreigadas nos sistemas jurídicos ocidentais como segurança jurídica, validade jurídica, competências e atribuições, constitucional e legalmente fixadas, sirvam agora de inspiração de um sistema outro estruturado com base em concepções político-económicas manifestamente distantes do sistema político capitalista.
É certo que o esforço de racionalização jurídica empreendido pelo sistema político chinês não significa, a nosso ver, a implantação indiscutida de uma mundividência jurídico-cultural onde o direito surja como fim autónomo. Na verdade, no esquema referencial da China de hoje direito/modernização surge ainda uma tendencial instrumentalização dos princípios jurídicos perante fins políticos superiores. Numa palavra: o direito como meio e não como fim. De qualquer modo, quer o acolhimento da força normativa da Constituição quer o reconhecimento da estabilidade e segurança jurídicas como dimensões inelimináveis da modernização do sistema demonstram que o contexto político global em que decorre o processo pactuado da transição da soberania de Macau é hoje o palco de um sistema em que os actores procuram mover-se segundo as regras de um jogo, difícil e incerto, mas, apesar de tudo, com regras…
3. De novo as palavras: um tratado internacional com o nome de Declaração
Chegámos à Declaração Luso-Chinesa. Trata-se, prima facie, do compromisso possível da transferência da soberania sobre o território de Macau de um Estado, com um determinado sistema político-económico, para outro Estado com um sistema político-económico substancialmente diferente. As «regras do jogo» da transferência constam de um Tratado internacional com o nome de Declaração.
Não é inteiramente claro o motivo justificativo da designação de tal Tratado por Declaração Conjunta. A fórmula Declaração tem um sentido emancipador no âmbito do direito constitucional e da história das ideias: através de «declarações» tornam-se independentes os países; através de declarações proclamam-se os direitos dos homens. Não é este o sentido global da Declaração Conjunta, mas talvez não seja arriscado dizer que ela assume aqui também uma narratividade própria: a da localização transistémica de um mundo de valores e de direitos de um «povo plural», ou seja, os residentes de Macau. Ela exprime, ainda, o acordo de vontades entre o Governo de Portugal e o Governo da China quanto à transferência da administração de Macau, e, por isso, ela é, em rigor, um tratado bilateral. A natureza jurídico convencional não é perturbada pelo enunciado linguístico. Com efeito, como se estabelece na Convenção de Viena sobre o direito, dos tratados internacionais, o tratado internacional é «um acordo internacional concluído por escrito entre Estados e regido pelo Direito Internacional, quer esteja consignado num instrumento único quer em dois ou mais instrumentos conexos, e qualquer que seja a sua denominação particular».
Se quisermos ter aqui alguma memória das palavras diríamos que a utilização do termo Declaração consubstancia uma mensagem para os «povos» de Macau, pois nela se condensam os direitos dos «habitantes e outros indivíduos de Macau» sobretudo dos residentes. A Declaração não «declara» apenas direitos pré-existentes: constitui obrigações para os órgãos do poder político dos Estados subscritores podendo mesmo dizer-se que o caderno de encargos nela inserido transporta mais vinculações para a parte chinesa do que para a parte portuguesa.
A Declaração Conjunta, como é sabido, não vem só, antes vem acompanhada de documentos anexos. Um dos documentos anexos recorre à sibilina designação de Esclarecimento do Governo da República Popular da China. Que este esclarecimento é parte integrante do Tratado não restam dúvidas, sobretudo se tivermos em conta o que é expressamente convencionado no ponto (6) da Declaração Conjunta. Mas qual a verdadeira natureza e função deste Esclarecimento? Trata-se de uma declaração interpretativa do Tratado ou de formulação de reservas por parte do Governo da China? Noutros termos: estamos perante simples disposições interpretativas, através da qual o Governo da China esclarece e aprofunda o sentido de algumas cláusulas constantes do Tratado, ou perante a formulação de verdadeiras reservas tendentes a definir o entendimento do Governo Chinês relativamente a certas obrigações decorrentes da Declaração Conjunta?
Embora a distinção entre declarações interpretativas e reservas nem sempre se apresente clara, afigura-se-nos que o Anexo 1, isto é, o Esclarecimento do Governo Chinês, visa fundamentalmente alargar os elementos contextuais da interpretação do Tratado (cfr. Convenção de Viena, artigo 31.º, n.º 2), possibilitando, deste modo, uma hermenêutica interpretativa mais afinada quanto ao sentido a atribuir aos termos do Tratado. Confrontemos, por exemplo, o n.º 4 da Declaração Conjunta e n.º V do Esclarecimento. No primeiro «declara-se»:
«(4) (…) A Região Administrativa Especial de Macau assegurará, em conformidade com a lei, todos os direitos e liberdades dos habitantes e outros indivíduos em Macau, designadamente as liberdades pessoais, a liberdade de expressão, de imprensa, de reunião, de associação, de deslocação e migração, de greve, de escolha de profissão, de investigação académica, de religião e de crença, de comunicações e o direito à propriedade privada».
No inciso V do Esclarecimento «esclarece-se»:
«A região Administrativa Especial de Macau assegurará, em conformidade com a lei, todos os direitos e liberdades dos habitantes e outros indivíduos em Macau, estipulados pelas leis previamente vigentes em Macau, designadamente as liberdades pessoais, a liberdade de expressão, de imprensa, de reunião, de manifestação, de associação (nomeadamente de constituir e de participar em associações cívicas), de organização e de participação em sindicatos, de deslocação e de migração, de escolha de profissão e de emprego, de greve, de praticar a sua religião e de crença, de ensino e de investigação académica, o direito à inviolabilidade de domicílio, das comunicações e de acesso ao direito e a justiça, o direito de propriedade privada, nomeadamente de empresas, a sua transmissão e sucessão por herança, ao pagamento sem demora injustificada de uma indemnização apropriada em caso de expropriação legal; a liberdade de contrair casamento e o direito de instituir família e de livre procriação».
Pelo confronto dos enunciados linguísticos do n.º 4 da Declaração Conjunta e do Esclarecimento verifica-se que neste último anexo se contêm importantes densificações do texto da Declaração. Assim, quanto ao direito de associação especifica-se o direito de constituir ou participar em associações cívicas (deixando, porém, em aberto o problema de constituição de partidos políticos); individualiza-se o direito de organização e participação em sindicatos; dentre as liberdades pessoais especificam-se a liberdade de ensino, o direito à inviolabilidade de domicílio e o direito de acesso ao direito e à justiça. No que respeita ao direito à propriedade privada, o Esclarecimento acrescenta que este direito abrange, no seu âmbito normativo, o direito à empresa, o direito à transmissão e sucessão por herança, o direito à justa e atempada indemnização em caso de expropriação legal. O Esclarecimento não deixa também de incluir no rol de direitos e liberdades pessoais, a liberdade de contrair casamento, o direito de constituir família e de livre procriação.
Deste confronto entre a Declaração Conjunta e o Esclarecimento pode deduzir-se que este segundo diploma não se limita a reproduzir o texto da declaração; interpreta em profundidade a Declaração acrescentando alguns direitos que, embora se pudessem reconduzir ao âmbito normativo de direitos contidos na Declaração podiam no entanto suscitar problemas quanto a sua protecção segundo o texto deste documento.
4. Políticas Fundamentais
O n.º 2 da Declaração Conjunta é uma norma chave para a compreensão das obrigações jurídico-internacionalmente convencionadas e cujo destinatário principal é o Governo Chinês. Recordemos a formulação textual do referido n.º 2.
«O Governo da República Popular da China declara que, em conformidade com o princípio ´um país, dois sistemas´ a República Popular da China aplicará, em relação a Macau, as seguintes políticas fundamentais (…)».
O primeiro problema que estas políticas fundamentais suscitam pode formular-se nestes termos interrogativos: constituirão ou não estas políticas fundamentais limites de natureza material ao poder legislativo encarregado de elaborar a futura Lei Básica de Macau?
Mais do que isso: estas políticas não constituirão limites materiais – no âmbito territorial de Macau – ao próprio poder constitucional sempre que crie ou reveja as normas constitucionais vigentes na China dado que a Região de Macau passará a ser regida por uma miniconstituição?
E como assegurar a observância de tais limites materiais? A própria formulação das perguntas indicia claramente que estamos num terreno cheio de dificuldades onde a força normativa das leis e dos tratados choca muitas vezes com a força normativa dos factos. Aqui o direito gravita em tomo de si próprio, e, por isso, várias aproximações são possíveis quando tentamos apurar o grau de eficácia jurídica das políticas fundamentais.
a) Para alguns, a Declaração Conjunta Luso-Chinesa equivale a um acordo dilatório. O Estado português tentaria num gesto de desespero último e de último ímpeto planetário, parar o vento com as mãos. O Estado chinês, por seu lado, mais não desejaria que um compromisso formal protelador de decisões políticas de fundo até ao ano 2000. A isto acrescentar-se-ia a radical existencialidade do sistema político chinês onde o direito mais não seria do que a continuação da política por outros meios. Colocar assim a questão, significaria aderir, desde logo, a uma concepção de relações internacionais que representaria um retrocesso evidente no domínio do, direito internacional. Em toda a sua radicalidade, esta posição conduzir-nos-ia a uma triste e desconsoladora conclusão: o jogo está perdido antes de começar… A Declaração Conjunta seria tão somente uma folha de papel a acrescentar à série de compromissos apócrifos em que é fértil o direito internacional e a política entre as nações.
b) Uma segunda orientação coloca assim o problema: as políticas fundamentais constituem obrigações jurídico-internacionais, cujo principal destinatário é o Estado Chinês que está vinculado à sua observância nos termos do direito internacional. No entanto, estas políticas fundamentais não constituiriam limites materiais ao poder constituinte porque isso significaria, no fundo colocar as normas de direito internacional num plano superior às normas constitucionais. Em último termo, afirmar-se-ia a pretensão de supraconstitucionalidade da Declaração Conjunta – um tratado internacional – perante a Constituição Chinesa. Como se vê, o argumento é sério, mas ele suscita os mesmos problemas em todos os quadrantes jurídico-internacionais: o da relação entre as normas do direito internacional e as normas do direito interno, o da primazia normativa das normas constitucionais sobre as normas internacionais, o da subsistência das vinculações internacionais dos Estados quando há rupturas políticas ou constitucionais dentro de um Estado signatário de convenções internacionais.
De qualquer modo, e mesmo que, consideremos que no plano dos factos, os instrumentos garantidores do cumprimento sejam tendencialmente nominais, não nos repugnaria defender esta tese: durante o lapso temporal de cinquenta anos os princípios de políticas fundamentais plasmados na Declaração Conjunta constituirão limites substantivos ao exercício do poder do Estado Chinês no direito territorial de Macau. As garantias de observância das políticas fundamentais na futura Lei Básica pouca “garantia” seriam se, a nível central, através de normas constitucionais e legais o Estado Chinês, optasse por uma via de “neutralização” e eliminação de limites juridíco-internacionais constantes da Declaração Conjunta.
c) Uma posição intermédia tentará minimizar as eventuais contradições actuais e futuras das «políticas fundamentais» na dinâmica da transição suave, preferindo colocar-se num plano com horizontes temporais mais próximos. Interessa-lhes, sobretudo, a transformação de normas juridíco-internacionais constantes da Declaração Conjunta em regras internas plasmadas na futura Lei Básica da região Administrativa de Macau. Nesta perspectiva, o que interessa aqui e agora é afinar a função jurídica das políticas fundamentais. Acompanhemos alguns desenvolvimentos.
5. Políticas fundamentais – programas ou normas?
Uma primeira suspensão reflexiva será motivada pela controversa natureza jurídica das normas fixadoras de princípios orientadores de políticas económicas, sociais e culturais. Uma persistente orientação, veiculada sobretudo pelos autores fieis a concepções imperativísticas do direito, assinala às normas-fim ou normas tarefa uma função programático-declarativa. Se não são simples «aforismos» ou declarações de intenção, constituem, quando muito, programas tendencialmente políticos abertos às mais diferentes concretizações ditadas pelo poder político.
Mais uma vez é preciso ter em conta o sentido das palavras. As «políticas fundamentais» no contexto da Declaração Luso-Chinesa longe de se reconduzirem, na sua globalidade, a normas-tarefa, condensam verdadeiras garantias, declaram autênticos direitos fundamentais. Sendo assim, elas têm uma importante função garantística. Esta dimensão de garantia é facilmente intuível: muitos dos princípios de políticas fundamentais assumem-se como cláusulas de salvaguarda de direitos adquiridos (direitos às liberdades pessoais, direito à função Pública, direito a vencimentos e subsídios). Seria um erro trágico aceitar a conversão de normas declarativas e garantidoras de direitos em normas-fins largamente dependentes, na sua concretização, das opções do poder político.
Além da importantíssima função garantística, as normas jurídico-internacionais consagradoras de políticas fundamentais têm ainda uma função dirigente. Esta função dirigente pode revelar-se sob a forma de comandos proibitivos: veda-se às autoridades competentes criadas pela futura Lei Básica o desenvolvimento de «políticas» colidentes, na sua filosofia e resultados, com os princípios das políticas fundamentais previstos na Declaração Conjunta. Assim, por exemplo, qualquer política cultural ou escolar, embora se possa desenvolver tendo em conta os parâmetros oficiais do sistema político chinês, não pode, contudo, impor soluções que, em termos práticos, se traduzam na eliminação do direito de criar estabelecimentos de ensino privado da liberdade de recrutamento de docentes e da autonomia organizatória desses mesmos estabelecimentos.
Às políticas fundamentais deve assinalar-se também uma função dinâmica de concretização, pois elas vinculam os poderes políticos a uma política activa de densificação. Assim, por exemplo, o futuro Chefe do Executivo da Região Administrativa de Macau deverá escolher os juízes segundo critérios de qualificação profissional (Esclarecimento IV) e não segundo critérios de conveniência política (cfr. também Lei Básica, artigo 87). A concretização de uma «política judicial» encontra, logo, um princípio vector nas políticas fundamentais fixadas na Declaração Conjunta.
Em terceiro lugar, os princípios de políticas fundamentais desempenham como é natural uma função interpretativa. Assim, por exemplo, os futuros operadores jurídico-políticos ao concretizarem as chamadas liberdades pessoais não podem deixar de interpretar essas normas segundo uma compreensão amiga das liberdades previamente acolhida na Constituição da República Portuguesa de 1976, vigente em Macau na altura da assinatura da Declaração Conjunta e também universalmente afirmada nos Pactos Internacionais de direitos do Homem (cfr. Lei Básica, artigo 40 e 143).
6. Meio século de inalterabilidade?
Para finalizar estas considerações nada mais estimulante – no plano teórico-jurídico e, possivelmente, no plano dos programas políticos – do que a descodificação do sentido da Cláusula n.º (12) da Declaração Conjunta:
«(12) As políticas fundamentais acima mencionadas e os respectivos esclarecimentos no Anexo I à presente Declaração Conjunta serão estipulados numa Lei Básica de Região Administrativa Especial de Macau da República Popular da China pela Assembleia Popular Nacional da República Popular da China e permanecerão inalteradas durante cinquenta anos».
Prima facie, parece que estamos perante uma norma jurídico-internacional de natureza convencional – de resto, pouco comum – reguladora de cessação da vigência do Tratado Luso-Chinês (cfr. Convenção de Viena, artigo 54). Mas, além dos problemas relacionados com a cessação de vigência de tratados através de cláusulas ad quem de longo termo, a cláusula em análise suscita problemas semelhantes às normas constitucionais consagradoras de limites materiais de revisão. Esta cláusula de inalterabilidade não é, em rigor, uma «cláusula pétrea» irrealisticamente quietista e conservadora mas em termos jurídicos ela estabelece limites materiais à liberdade de conformação do poder legislativo. Uma clara intuição deste problema encontra-se já no documento «Lei Básica». Com efeito, no artigo 144 deste documento estabelece-se que nenhuma revisão desta Lei pode contrariar as políticas fundamentais relativas a Macau, definidas pela República Popular da China. Trata-se, no fim de contas, de um vínculo a um sistema – o sistema socialista – para um outro sistema – o sistema capitalista de Macau – poder autoreferencialmente subsistir durante cinquenta anos. Enquanto o sol nascer de um e outro lado da muralha, parece que não temos outro remédio senão continuarmos a acreditar na força normativa de um direito, nem que seja de um direito pobre limitado à gestão de modos transitivos.
Chegados aqui é lógico que se pergunte: qual a importância de um instituto como o de acção/recurso de amparo na conjugação destes modos transitivos? Disso nos ocuparemos na última parte do nosso diálogo.
III – O instituto de amparo de direito e liberdades
1. Omissão intencional
Um dos problemas deixados em aberto pela Declaração Conjunta Luso-Chinesa diz respeito ao importantíssimo problema do controlo da constitucionalidade e ilegalidade das leis e outros actos normativos. É certo que se alude a um poder «judicial» independente, incluindo o de julgamento em última instância [Declaração, (2)]. Também o Esclarecimento do Governo Popular da China fala de «Tribunais independentes no exercício do poder judicial, livres de qualquer interferência e apenas sujeitos à lei».
Nas leis de organização judiciária prevê-se a apreciação da constitucionalidade e de ilegalidade nos feitos submetidos a julgamento (Decreto-Lei n.º 17/92/M, de 2 de Março, artigo 3). O actual Estatuto Orgânico também não deixa de acolher o tradicional instituto da judicial review (cfr. artigo 41.º, n.º 1). O instituto da fiscalização judicial concreta da constitucionalidade tem permitido em Portugal, na ausência de uma acção constitucional de defesa, a defesa de direitos fundamentais através do incidente da inconstitucionalidade, (e depois da revisão constitucional de 1989, também do incidente da ilegalidade reforçada).
O que se pergunta é: será previsível a manutenção deste instituto de fiscalização judicial na futura Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau? Poderão os particulares, nos feitos submetidos a julgamento, impugnar a constitucionalidade de actos normativos aplicáveis ao caso sub judice? O problema, segundo nos parece, foi deixado em aberto.
2. O sistema constitucional chinês
O controlo judicial da constitucionalidade dos actos normativos não se enquadra nos esquemas jurídico-constitucionais chineses. É certo que a hierarquia das fontes de direito ganhou dignidade constitucional na Constituição de 1982. O artigo 5 prevê, de forma expressa, esta hierarquização:
«O Estado garante a unidade e dignidade do sistema jurídico socialista. Nenhuma lei, regulamento administrativo ou regulamento local ou qualquer prescrição pode estar em contradição com a Constituição. Todos os órgãos do Estado e das Forças Armadas, todos os partidos políticos e organizações sociais, todas as empresas e instituições devem observar a Constituição e as leis. Qualquer acto que viole a Constituição ou as leis deve ser penalizado.
Nenhuma organização ou indivíduo pode desfrutar do privilégio de ultrapassar a Constituição e as leis».
Mas como se assegura, no sistema jurídico-constitucional chinês, a conformidade constitucional das leis? Uma leitura atenta da Constituição chinesa permite uma primeira conclusão: o sistema de controlo da constitucionalidade dos actos normativos é um sistema político e não um sistema judicial. Com efeito, a competência para eliminar normas jurídicas do executivo pertence à Comissão Permanente do Assembleia Nacional Popular (artigo 67, n.º 7 e 8). A esta mesma Comissão pertence interpretar e fiscalizar o cumprimento da Constituição (artigo 67, n.º 1).
O princípio da constitucionalidade surge também claramente afirmado a propósito da restrição de direitos fundamentais (artigo 40), pois as restrições devem mover-se nos termos da Constituição e dentro dos quadros da lei.
Não obstante a clara afirmação do princípio da hierarquia das fontes de direito com a consequente supremacia da Constituição, o sistema chinês continua a situar a fiscalização da constitucionalidade dos actos normativos dentro da competência política de um órgão político – a Assembleia Nacional Popular. Os tribunais estão sujeitos à lei e não poderão deixar de a aplicar (cfr. «Lei Básica», artigo 19).
3. A via do amparo
Se a fiscalização judicial da constitucionalidade é estranha ao sistema constitucional chinês, compreender-se-á que nos preocupe a questão de saber como estão ou podem vir a estar consagrados os remédios para a defesa de direitos fundamentais. O caminho parece ser este: em vez da invocação da inconstitucionalidade de normas devem invocar-se os próprios direitos violados através de recurso ou recursos de amparo. Este instituto de amparo – desconhecido em Portugal, mas já consagrado em Macau (Lei n.º 112/91, artigo 17) – também não é disfuncional no sistema jurídico-constitucional chinês. Na realidade:
a) O artigo 37 da Constituição chinesa consagra a ideia de Habeas Corpus – uma das mais importantes e tradicionais acções judiciais de amparo –, embora não explicite o competente due process (vide, também, artigo 28 da «Lei Básica»);
b) O artigo 41 da mesma Constituição prevê o direito de indemnização dos cidadãos em consequência da violação dos seus direitos por órgãos ou funcionários do Estado (vide artigo 36 da «Lei Básica»):
c) O tradicional direito de queixa, petição e acção contra órgãos e funcionários do Estado (shensu, konggao, jianju) pode passar de um direito de petição ou queixa para um direito de queixa judicialmente accionável com a finalidade de se salvaguardarem os direitos garantidos pela Constituição (artigo 33.º/II).
Estas aflorações de um sistema judicial de protecção dos direitos fundamentais são certamente fragmentários e insuficientes para uma defesa integral e sem lacunas dos direitos particulares. No entanto, parece-nos ser esta a via para uma estruturação do sistema de acções ou recursos de protecção dos direitos fundamentais. O caminho a adoptar será, pois, o do amparo de direitos e não o da judicial review de actos normativos. É tempo de começar a sistematizar juridicamente os eventuais amparos judiciais para a defesa de direitos e liberdades. Vejamos alguns dos aspectos fundamentais do recurso de amparo tal como ele se encontra plasmado no artigo 17 da Lei 112/91.
4 – A consagração jurídica do recurso de amparo
Como se disse uma das mais importantes inovações da Lei n.º 112/91, aprovada pela Assembleia da República nos termos dos artigos 164, n.º 2, 169, n.º 3 e 290, n.º 5 da Constituição, consiste na introdução, na ordem jurídica de Macau, do chamado recurso de amparo. O facto é tanto mais de relevar quando é certo que, não obstante as diversas tentativas para a introdução de uma acção constitucional de defesa no ordenamento jurídico português, ainda hoje não existe, em Portugal, qualquer instituto semelhante ao recurso de amparo. Não é inteiramente líquida a razão pela qual a Assembleia da República reconheceu bondade ao instituto do recurso de amparo para o consagrar positivamente na ordem jurídica de Macau e o julgue suspeito de «maldade» quando se trata de o incorporar na ordem jurídico-positiva portuguesa. De qualquer modo, e em jeito de primeira apreciação, saúde-se a consagração de um instituto ao serviço da defesa dos direitos fundamentais. Vejamos o seu regime.
5 – O recurso de amparo como direito fundamental ao amparo
Coloquemo-nos perante o enunciado linguístico do artigo 17 da Lei n.º 112/91, de 29 de Agosto, definidora, como se sabe, das bases da Organização Judiciária de Macau:
«1. De decisão proferida por tribunal sediado no território pode sempre recorrer-se para o plenário do Tribunal Superior de Justiça, com fundamento em violação de direitos fundamentais garantidos pelo Estatuto Orgânico de Macau, sendo o recurso directo e restrito à questão de violação;
2. Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, há recurso para os tribunais de jurisdição administrativa de actos administrativos ou de simples via de facto dos poderes políticos, com fundamento na violação de direitos fundamentais garantidos pelo Estatuto Orgânico de Macau».
À primeira vista, tendo em conta a inserção sistemática deste recurso numa lei de organização judiciária e num capítulo referente à organização e competência do Tribunal Superior de Justiça, poderia deduzir-se que a lei se limitou a criar um instrumento processual de defesa dos direitos. Por outras palavras: a lei de bases de organização judiciária de Macau limitou-se a instituir uma garantia adjectiva dos direitos fundamentais consagrados no Estatuto Orgânico de Macau.
É duvidoso que assim seja. A linha interpretativa que propomos é outra: a lei de bases da organização judiciária de Macau criou um direito fundamental ao amparo para defesa de direitos fundamentais. Tal como o direito de acesso à via judiciária é um direito fundamental, também o direito de amparo é um direito fundamental especificamente vocacionado para a defesa dos próprios direitos fundamentais. De certo modo, trata-se de um direito fundamental material constante de lei ordinária, sendo, por isso, um daqueles direitos contemplados pela cláusula aberta do artigo 16, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
6 – Recurso/Recursos
Procedamos à operação metódico-interpretativa tendente a atribuir um sentido razoável à formulação da norma do artigo 17 da Lei de Bases da organização Judiciária. Desde logo, se verifica que ela contempla dois recursos e não apenas um. Com efeito, distingue-se aí entre:
a) recurso de amparo contra decisões jurisdicionais, e
b) recurso de amparo contra actos ou factos administrativos.
No primeiro caso, o recurso de amparo procura dar amparo aos particulares contra as decisões dos próprios tribunais, violadoras de direitos fundamentais garantidos pelo Estatuto Orgânico de Macau. No segundo tipo de recurso de amparo estamos perante um amparo contra decisões (actos) os factos administrativos violadores de direitos fundamentais. Por outras palavras: no recurso de amparo previsto no n.º 1 do artigo 17 protege-se o indivíduo e cidadão através dos tribunais contra decisões dos próprios tribunais; no recurso de amparo previsto no n.º 2 do mesmo artigo dá-se «amparo jurisdicional» contra actos ou factos administrativos dos poderes públicos. Ainda por outras palavras: no recurso de amparo do n.º 1 do artigo 17 estamos próximos de uma acção constitucional de defesa porque do que se trata é defender os particulares contra decisões jurisdicionais violadoras de direitos fundamentais. No artigo 17.º, n.º 2 contempla-se uma espécie de recurso contencioso-administrativo do género do mandado de segurança brasileiro porque o que está em causa é lesão de direitos fundamentais por actos os factos administrativos dos poderes públicos (cfr. Lei sobre direito de reunião e de manifestação).
Em virtude da articulação dos n.os 1 e 2 do artigo 17 – tenha-se em conta a expressão «sem prejuízo do disposto no artigo anterior», constante do n.º 2 –, é possível que haja um duplo recurso de amparo. Em primeiro lugar, pretende-se amparo jurisdicional junto dos tribunais administrativos contra actos ou factos administrativos dos poderes públicos lesivos de direitos fundamentais; em segundo lugar, perante a hipótese de violação de direitos fundamentais pela própria decisão jurisdicional dos tribunais administrativos, haverá hipótese de novo recurso de amparo para o Tribunal Superior de Justiça.
7 – Acção ou recurso de amparo
Não é fácil deduzir do simples enunciado linguístico-semântico do artigo 17 se o(s) recurso(s) de amparo aqui previstos pressupõem o esgotamento das vias judiciais existentes antes de se poder intentar (como acontece, por exemplo, na Alemanha ou na Espanha) ou se se trata de uma acção autónoma que não exige a exaustão dos recursos previstos nas leis de organização judiciária. A resposta deve ter em conta os tipos de recursos previstos no artigo 17.
a) O recurso contencioso administrativo como acção de amparo
Se bem compreendemos a teleologia intrínseca do amparo previsto no artigo 17, n.º 2, o que aí se consagra é a elevação do recurso contencioso-administrativo a meio de amparo por estar em causa a violação de direitos fundamentais. Quer dizer: o recurso jurisdicional administrativo contra actos ou factos dos poderes públicos passa a funcionar como «acção de amparo» ou «mandado de segurança» em virtude da centralidade que no caso assume a violação de direitos fundamentais. A utilidade prática da conversão do recurso jurisdicional administrativo em acção de amparo jurisdicional radicará possivelmente na ideia do carácter urgente, expedito e eficaz inerente a este tipo de «amparo», pouco consentâneo com as delongas e subtilezas dos tradicionais recursos contencioso-administrativos. Além disso, a ideia de amparo contra a «via de facto dos poderes públicos» permite a abertura da jurisdição administrativa contra qualquer actividade dos poderes públicos, mesmo que esta não se reconduza à prática de actos jurídico administrativos como é, por exemplo, o caso de actos materiais da administração. Acresce que com a conversão do recurso contencioso em recurso de amparo será talvez possível obter-se, de forma expedita, a suspensão judicial do acto lesivo dos direitos fundamentais, o restabelecimento pronto e eficaz da posição subjectiva violada, o estreitamento de prazos para a decisão do juiz, etc.
b) O recurso de amparo contra decisões dos tribunais como acção autónoma
Um perfil diferente parece ter o recurso de amparo previsto no artigo 17, n.º 1. Aqui consagra-se a possibilidade de o particular reagir contra um acto ou decisão judicial violadora de direitos fundamentais consagrados no Estatuto. Trata-se daquilo que em alguns sistemas se designa queixa constitucional contra decisões jurisdicionais (na Alemanha, por exemplo, existe uma Urteilsverfassuagsbeschwerde, contra agressões a direitos fundamentais provocados por actos judiciais).
Este recurso a interpor perante o Plenário do Tribunal Superior de Justiça (Lei n.º 1 12/91, artigo 17, n.º 1) dirige-se contra qualquer decisão proferida por Tribunal sediado no território de Macau, violadora de direitos fundamentais. Daqui se deduz que o âmbito se circunscreve às decisões dos Tribunais de Macau, não abrangendo decisões de Tribunais sediados em Portugal mas com jurisdição no território de Macau (exemplo: decisões do Supremo Tribunal Administrativo nos termos da Lei n.º 112/91, artigos 15.º, n.º 4 e 16, n.º 1, decisões do Tribunal Constitucional). Não se exige, porém, como acontece noutros ordenamentos, a exaustão prévia dos recursos que no caso caibam.
8 – O Objecto do recurso de amparo
O recurso de amparo tem por objecto a defesa de direitos fundamentais garantidos pelo Estatuto Orgânico de Macau (artigo 17, n.os 1 e 2). Quais são estes direitos fundamentais garantidos pelo Estatuto? Como é sabido, antes da revisão do Estatuto de 1990, era uma tarefa interpretativa de inegável dificuldade delimitar o catálogo de direitos fundamentais juridicamente garantidos no território de Macau. Os problemas hermenêuticos não estão totalmente resolvidos, mas poderemos avançar algumas propostas densificadoras.
Em primeiro lugar e por reenvio do Estatuto Orgânico de Macau (artigo 2) estão garantidos, e são, por conseguinte, objecto do recurso de amparo, os direitos, liberdades e garantias estabelecidos na Constituição da República. Dúvidas existem já quanto ao sentido desta remissão ou reenvio. Direitos, liberdades e garantias são apenas os constantes do Catálogo de direitos, liberdades e garantias da Parte I e Título II? E dentre estes, estão abrangidos todos os direitos, liberdades e garantias – direitos, liberdades e garantias pessoais, direitos, liberdades e garantias de participação política, direitos, liberdades e garantias dos trabalha – ou somente alguns deles? Relativamente ao primeiro problema, não se vislumbram razões bastantes para afastar os direitos, liberdades e garantias análogos dispersos ao longo da Constituição (exemplo: direito à informação dos administrados, direito ao arquivo aberto, direito à fundamentação dos actos administrativos, direito à jurisdição administrativa, direito à participação no procedimento). No que diz respeito ao segundo problema, cremos que a resposta é ainda mais resolutamente afirmativa, pois não se vê qualquer razão jurídico-material para restringir o sentido do reenvio do Estatuto para «os direitos, liberdades e garantias estabelecidos na Constituição».
Mas os direitos beneficiadores do recurso de amparo não são apenas os direitos, liberdades e garantias estabelecidos na Constituição da República. Recurso de amparo existe para defesa dos direitos fundamentais estabelecidos no Estatuto Orgânico de Macau. Entre os direitos, liberdades e garantias estabelecidos no Estatuto contam-se o direito de recurso para o Presidente da República em caso de expulsão ou recusa de entrada no território (artigo 16, n.º 1, al. g), direito ao recurso contencioso contra actos do Governador e secretários-adjuntos (artigo 19, n.º 4).
Um relevante instrumento jurídico-hermenêutico para a densificação dos direitos, liberdades e garantias estabelecidos pela Constituição e o Estatuto é, hoje, a Declaração Conjunta do Governo da República Portuguesa e do Governo da República Popular da China sobre a Questão de Macau (e o respectivo Esclarecimento do Governo da República Popular da China sobre as Políticas Fundamentais respeitantes a Macau). Assim, por exemplo, o direito de propriedade privada e o direito a justa indemnização em caso de expropriação que na Constituição Portuguesa se caracteriza como, um direito económico social e cultural (embora, na nossa opinião, de natureza análoga a direitos, liberdades e garantias) é referido no n.º 4 da Declaração Conjunta como um dos direitos a ser assegurado na futura «Região Administrativa Especial de Macau». No mesmo sentido aponta o Esclarecimento do Governo da República Popular da China, Anexo I/V. Também o direito ao acesso (a manutenção na) a função pública considerado expressamente pela Constituição da República como um direito, liberdade e garantia, adquire configuração especial no Estatuto podendo dizer-se que este direito inclui no seu âmbito normativo o direito de opção pela função pública de Macau (Estatuto, artigo 69, n.º 2) ou pela função pública dos Órgãos de Soberania ou das autarquias da República (artigo 10, n.º 2, Declaração Conjunta (3), Esclarecimento do Governo da República Popular da China, VI).
Não é líquido que o objecto de um recurso de amparo possa ser constituído por direitos fundamentais constantes de leis ou tratados internacionais (CRP, artigo 16, n.º 1), isto é, direitos fundamentais materialmente constitucionais. A questão tem sobretudo relevância futura, pois a Declaração Conjunta Luso-Chinesa salvaguarda a subsistência, para além de 1999, durante 50 anos, dos direitos e liberdades fundamentais que estejam estipulados pelas leis previamente vigentes em Macau. Dentre estes direitos e liberdades caberá individualizar, desde já, o direito de amparo (Lei n.º 112/91, artigo 17), o direito de Habeas Corpus (Decreto-Lei n.º 17/92/M, artigo 52 e os direitos constantes dos Pactos Internacionais de Direitos do Homem tornados extensivos a Macau pela Resolução da Assembleia da República n.º 41/92, de 31 de Dezembro (cfr. também, «Lei Básica», artigo 40).
9 – Os poderes do juiz de amparo
O artigo 17 da Lei n.º 112/91 consagra o direito de amparo contra decisões judiciais (artigo 17, n.º 1) e contra actos ou factos administrativos (artigo 17, n.º 2), mas não diz quais são os remédios que o juiz pode decretar para assegurar o gozo e exercício dos direitos fundamentais violados. Se se trata de um juiz de amparo de direitos fundamentais parece que ele tem poderes para restabelecer imediatamente o pleno gozo e exercício do direito fundamental violado. Em termos práticos, o juiz de amparo pode adoptar; medidas preventivas (procedimentos cautelares) expeditas e sumárias destinadas a restabelecer os direitos violados ou pronunciar-se sobre o «fundo de violação» dos direitos fundamentais, proferindo decisões sobre a legalidade da «decisão judicial» ou da actuação administrativa violadoras de direitos fundamentais. Em todo caso, não pertence ao juiz de amparo decidir sobre o fundo da causa ou do mérito do acto administrativo, pois o seu juízo incidirá sobre um recurso restrito à questão da violação da direitos fundamentais. Quanto aos outros aspectos controvertidos deve recorrer-se aos processos legalmente tipificados. Consequentemente, a decisão judicial de amparo não constitui uma instância de «revisão judicial» quer de decisões de outros tribunais quer de actos de administração. Por outro lado, o recurso de amparo destina-se à protecção de situações subjectivas – direitos fundamentais lesados – e não a servir de sucedâneo a excepções de inconstitucionalidade (Estatuto Orgânico, artigo 41, n.º 1, Decreto-Lei n.º 17/92/M, artigo 3) ou de ilegalidade (Estatuto Orgânico, artigo 41, n.º 1, Decreto-Lei n.º 17/92/M, artigo 15, n.º 3, al. d). Quer dizer: o Tribunal Superior de Justiça quando intervém como juiz de amparo não pode ajuizar da forma como os outros tribunais, interpretaram e aplicaram a lei quando não esteja em causa a violação por estes de direitos, liberdade e garantias. Parece também razoável condicionar-se o recurso de amparo contra violações de direitos, liberdades e garantias produzidas por decisões judiciais quando existe uma relação directa, imediata e adequada de causalidade entre estas decisões e aquelas violações.
Mas quais são, em síntese, os possíveis conteúdos das sentenças positivas de amparo? É evidente que o simples recurso de amparo não conduz necessariamente a uma sentença favorável. No caso, porém, de o juiz de amparo proferir uma sentença acolhedora do pedido. ele pode adoptar os seguintes remédios:
a) restabelecimento do recorrente na integridade dos direitos, liberdades e garantias violados e, se necessário, imposição de medidas adequadas para a sua conservação:
b) reconhecimento, em termos declarativos ou injuntivos, do direito, liberdade e garantia com o conteúdo que lhe é reconhecido na Constituição da República ou no Estatuto Orgânico de Macau;
c) anulação da decisão administrativa ou imposição da cessação do facto administrativo, impeditivos ou proibitivos do gozo e exercício do direito, liberdade e garantia violado.
Os conteúdos anteriormente assinalados apontam assim, para vários tipos de sentenças (constitutivas, declarativas, condenatórias).
Embora o artigo 17 não o preveja expressamente, não está excluído, pelo menos indirectamente, o amparo contra acto legislativo. É que bem poderá acontecer que a violação de direitos, liberdades e garantias resulte directamente da lei, caso em que seria possível uma arguição da inconstitucionalidade da lei pelos indivíduos lesados. Tratar-se-ia de um a inconstitucionalidade circunscrita a leis violadoras de direitos, liberdades e garantias e aos casos que se verificasse uma violação concreta e actual desses mesmos direitos. liberdades e garantias.
10 – Amparo, habeas corpus e recurso contencioso administrativo
O recurso de amparo deve distinguir-se de outros processos que tenham também por objecto a defesa de direitos e liberdades, designadamente do habeas corpus e do recurso contencioso administrativo. O recurso de amparo, tal como o Habeas Corpus, pode ter como objecto a liberdade individual, mas o objecto de recurso de amparo é mais amplo. Aquele – o Habeas Corpus – é um processo de amparo especial que tem lugar quando haja abuso de poder por virtude de prisão ou detenção ilegal (Constituição da República, artigo 31, n.º 1, artigo 52 da lei n.º 17/92/M); este – o recurso de amparo – pode ter como objecto a defesa da liberdade individual religiosa, a defesa da liberdade de imprensa, a defesa da liberdade de deslocação, de reunião, etc. Relativamente ao recurso contencioso administrativo deve confessar-se que nem sempre e fácil distingui-lo do recurso de amparo perante os tribunais administrativos (artigo 17, n.º 2). Poderia avançar-se este critério: o recurso de amparo interpõe-se contra actos da administração mas o processo de amparo é um processo fundado sobre normas protectoras de direitos, liberdades e garantias e não sobre quaisquer normas legais e regulamentares. Todavia, também estas normas (legais ou regulamentares) podem conduzir a actos lesivos dos direitos, liberdades e garantias. A linha tendencial de fronteira é esta: deve optar-se por um recurso contencioso de amparo quando o acto administrativo impugnado produz uma violação directa de direitos, liberdades e garantias. Nesta medida, afasta-se uma «acção autónoma» de amparo contra actos administrativos. Quanto ao recurso em caso de via de facto de poderes públicos (Lei n.º 112/91, artigo 17, n.º 2), a lei, além de fixar a competência de jurisdição administrativa, prevê um juízo de amparo contra actuações dos poderes públicos não reconduzíveis a actos administrativos desde que se encontrem também como causa directa por lesão de direitos, liberdades e garantias.
Com isto termino as considerações que pretendi submeter a este auditório crítico. Se o discurso não pôde impedir a fragmentaridade, aqui fica, pelo menos, a memória conclusiva da mensagem: se não pudermos controlar os actos seja-nos reconhecido o amparo para defesa de direitos e liberdades.
*A Associação de Estudantes da Faculdade de Direito de Macau com o apoio da Faculdade de Direito, organizou em 8 de Abril de 1994 uma conferência com o Professor J. J. Gomes Canotilho que teve por tema «A Institucionalização do recurso de amparo na ordem jurídica de Macau». O referido Professor, colaborador da Faculdade de Direito da Universidade de Macau deslocou-se ao Território para leccionar no Curso de Licenciatura em Direito e no Curso de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Macau. O recurso de amparo previsto na Lei de Bases da Organização Judiciária de Macau, não se encontra ainda regulamentado.
Artigo publicado na edição de «O Direito» de Outubro de 1994.