Doutrina

O período de transição e a «pré-vigência» da Lei Básica da RAEM da RPC

Aprovada e promulgada a Lei Básica, LB, da futura Região Administrativa Especial de Macau da República Popular da China, RAEM da RPC, a cuja versão em Língua Portuguesa temos acesso, parece-nos ter chegado a hora de iniciar o seu estudo e crítica prospectivos. Como lei in faciendo, inacabada como se apresenta, tão aberta e remissiva, nem outro será o seu espírito, face ao enunciado «princípio da abertura» e à viva espiritualidade das «mutações», que a vida é feita de mudança.

Destas modestas palavras, porém, não se pode esperar e pretender mais do que um esvoaçar de neve, um leve acordar de madrugada, nesta vigília até ao alvorecer da manhã de 20 de Dezembro de 1999.

Eis o tema: O período de transição e a «pré-vigência» da LB da RAEM da RPC. E apenas de um ponto de vista jurídico.

I. O período de transição

Comecei a escrever estas palavras no dia 13 de Abril de 1993. Seis anos após o dia 13 de Abril de 1987, data da assinatura da Declaração Conjunta sobre a Questão de Macau do Governo da República Popular da China e do Governo da República Portuguesa (DCLC ou DC) — embora a DC apenas viesse a entrar em vigor em 15 de Janeiro de 1988 —, e 6 anos e 8 meses e 7 dias antes do dia 20 de Dezembro de 1999, data em que a soberania sobre Macau voltará a ser exercida pela RPC. E constatei as irregularidades dos supostos e ditos primeiro e segundo períodos da transição. Ou ainda das primeira e segunda partes ou fases do período de transição. Apenas a irregularidade cronológica dos ciclos, mas não a sua imperfeição. Não deverá haver círculos imperfeitos.

A identificação de um período de transição remonta à DCLC, 3, e ao seu Anexo II, Arranjos relativos ao período de transição: «…o período de transição que terá início na data de entrada em vigor da Declaração Conjunta e terminará em 19 de Dezembro de 1999». A DC e os seus Anexos entraram em vigor a partir da data da troca dos instrumentos de ratificação, que teve lugar em Beijing — em 15 de Janeiro de 19881.

O período de transição e não os períodos de transição. A unidade do período de transição, na sua conformação política e jurídica, só numa aparente e deformadora divisão cronológica poderá perder a sua unidade original. Politicamente, qualquer desvio unilateral à DCLC será injustificado em si mesmo ou só por si, sob pena de desvio ao acordado. Juridicamente, a falta de qualquer apoio textual ou contextual na DCLC remete-nos para o domínio da vontade política unilateral e por isso ilegítima, se daí se querem retirar efeitos jurídicos no âmbito bilateral, a menos que se lhe suceda uma bilateralização de vontades, ainda que tácita ou a silentio.

Após a aprovação da LB da RAEM, em 31 de Março de 1993, como afirmação e manifestação da soberania da RPC, a LB entra em vigor em 20 de Dezembro de 1999 (DCLC, 2. (12) e Anexo I, I), para vigorar para após o estabelecimento da RAEM. O calendário da elaboração e da aprovação da LB é da responsabilidade da RPC. A data da sua entrada em vigor foi anteriormente estabelecida na DCLC e é agora reafirmada na Decisão da Assembleia Nacional Popular sobre a LB da RAEM da RPC e no Decreto nº 3 de 31 de Março de 1993, do Presidente da República da RPC, Decreto de Promulgação da LB, ambos de 31 de Março de 1993.

A aprovação da LB da RAEM não demarca qualquer subperíodo de transição, nem um primeiro e um segundo períodos de transição. Poderá falar-se agora do início de um ou do segundo período da transição? Ou mesmo de uma primeira e segunda partes do período de transição, além de uma dimensão temporal, ainda que sócio-política?

A subdivisão em períodos «irregulares» ou «ocasionais» só pode ser uma decorrência de um calendário político. E será esta uma questão simplesmente política?

Procurando, não se encontrou qualquer assento jurídico para a ruptura da unidade ou para a descontinuidade jurídica do período de transição. Nem de soberania. Nem de administração. Nem de padrões normativos.

II. A «pré-vigência» da Lei Básica da RAEM

As relações entre a RPC e Portugal sobre a Questão de Macau e a administração do Território de Macau a cargo de Portugal devem observar o disposto na DCLC: até 19 de Dezembro de 2049 as relações entre a RPC e Portugal sobre a Questão de Macau e até 19 de Dezembro de 1999 ainda a administração do Território de Macau.

A LB da RAEM entra em vigor em 20 de Dezembro de 1999.

A LB há-de vigorar na RAEM da RPC, região esta ainda uma realidade juridicamente futura ou pelo menos de existência jurídica dependente da verificação de um termo suspensivo, tendo sido decidido que se estabelecerá em 20 de Dezembro de 1999 (DC, 2. (I), 3., Anexo 1, 1º parágrafo e, posteriormente, a Decisão da Assembleia Popular Nacional sobre o Estabelecimento da RAEM da RPC).

A aprovação antecipada da LB da RAEM da RPC, com tão dilatada vacatio legis é certamente um factor de previsibilidade, de antevisão e de projecção de um futuro e para o futuro, esse nem de todo previsível. Mas, declaradamente, esta parte do período de transição é isso mesmo, um período de vacatio para a LB da RAEM da RPC.

A questão que se nos coloca, que não nos parece desprovida de interesse, ao lermos que «a partir de agora, toda a vida social do território, no campo político, económico e cultural se regerá pela Lei Básica»,2 ou que «Toda a vida social de Macau – no campo político, económico e cultural – deve estar em conformidade com a Lei Básica»3, é a de saber se a «vida jurídica» do Território se regerá ou se conformará desde 31 de Março de 1993 pela LB da RAEM da RPC? Ou se aqui, afinal, podemos distinguir e estabelecer onde a DC não distingue e diferentemente do que a DC estabelece?

Se se adivinhar uma qualquer pré-vigência ou ante-vigência política ou cultural ou social da futura LB da RAEM na ainda futura RAEM — pelo menos «sociológica» — como argumentar sobre uma qualquer vigência ou pré-vigência jurídica? Afastada que está a vigência da LB, admitir a sua pré-vigência jurídica seria começar por admitir pré-efeitos de uma lei que ainda não entrou em vigor! E nessa medida se viria bulir com a certeza e segurança jurídicas frustrando a confiança nas leis em vigor e no direito enquanto sistema jurídico como status a manter basicamente inalterado na futura RAEM da RPC nos termos declarados na DC e na LB4.

Se por um lado, vimos, estabelecido o período de transição, a aprovação da LB da RAEM não divide o período de transição nem abre um novo período de transição, também, por outro, ainda que aprovada, não entra imediatamente em vigor, nem essa vigência poderia ser pretendida ou afirmada pela verificação de uma condição, a sua aprovação, bem diversa do termo que a mantém suspensa.

Inequivocamente, a aprovação da LB no período de transição é um grande «facto político», um «importante marco»5 no processo de transição, ou mesmo «um grande acontecimento na vida política do povo chinês, incluindo os compatriotas de Macau»6.

Mas afinal, qual será o valor de referência7 a atribuir à aprovada mas não vigente LB neste período de transição?

A discrição das referências à DC8 poderia mesmo levar a questionar se já teria caído o pano do acto DC? Ou da duração do trato? Não é a DC um referente normativo também para a LB, antes e após a sua entrada em vigor? Não parece haver dúvidas de que a resposta a esta última questão deva ser afirmativa.

Mais do que respostas trouxe interrogações. Estou confiante de que merecerão a atenção de Vossas Excelências.

Muito obrigado pelo convite que me dirigiram e pela atenção que pacientemente me dispensaram. Obrigado,

Manuel M. Escovar Trigo Docente da Faculdade de Direito

Tema e comunicação apresentados em 13 de Maio de 1993 no «Seminário da Lei Básica de Macau», organizado pelo Conselho Consultivo da Lei Básica.

O texto que agora se apresenta tem por base aquela comunicação, com algumas breves anotações

NOTAS.

1 Cfr. DC 3,7. e Anexo II, Arranjos relativos ao período de transição.

2 Macau Hoje, 1 de Abril de 1993, «Macau mais popular que Li Peng», pp. 8 e 9.

3 Macau Hoje, 18 de Janeiro de 1993, «Bandeira será verde; Macau: o futuro já começou», pp. 8 e 9; Jornal de Macau, 30 de Março de 1993, «Lei Básica aprovada amanhã», p. 9; Ponto final, 2 de Abril de 1993, «Pecado Mor(t)al», «Lei Básica», p. 10.

4 Cfr. J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5.ª ed., 2,ª reimp., Coimbra, 1992, p. 378 (pp. 375 e ss)

5 Jornal de Macau, 1 de Abril de 1993, «Lei Básica…», cit., p. 9.

6 Ponto Final, 8 de Abril de 1993, «Democracia à chinesa», pp. 9 e 10.

7 Cfr. Jornal de Macau, 1 de Abril de 1993, «Lei Básica tem de ser um ponto de referência», p. 9. Esta será uma questão com interesse a que conviria não deixar de se dar resposta.

8 Jornal de Macau, 1 de Abril de 1993, «Lei Básica tem de ser um ponto de referência», p. 9; Ponto Final, 8 de Abril de 1993, «Democracia à chinesa», pp. 9 e 10.

Artigo publicada na edição de «O Direito» de Dezembro de 1993.

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