O Governo submeteu a consulta pública a criação de órgãos municipais sem poder político. No documento sugere-se que o órgão municipal seja designado por «Instituto Municipal» e que os membros do Conselho de Administração Municipal, bem como os membros do Conselho Consultivo Municipal sejam nomeados pelo Chefe do Executivo.
A questão que se coloca é a de saber se o artigo 95.º da Lei Básica proíbe que os membros do órgão municipal sejam eleitos por sufrágio directo.
Para facilidade de exposição passamos a transcrever o referido artigo: «a Região Administrativa Especial de Macau pode dispor de órgãos municipais sem poder político. Estes são incumbidos pelo Governo de servir a população, designadamente nos domínios da cultura, recreio e salubridade pública, bem como de dar pareceres de carácter consultivo ao Governo da Região Administrativa Especial de Macau, sobre as matérias acima referidas».
A norma não prevê, expressamente, o método para a constituição dos órgãos municipais, pelo que não proíbe que os seus membros sejam eleitos por sufrágio directo.
A este respeito, tem sido invocada a situação em Hong Kong e o artigo 97.º da Lei Básica de Hong Kong, que passamos a transcrever: «District organizations which are not organs of political power may be established in the Hong Kong Special Administrative Region, to be consulted by the government of the Region on district administration and other affairs, or to be responsible for providing services in such fields as culture, recreation and environmental sanitation».
O artigo 95.º da Lei Básica de Macau e o artigo 97.º da Lei Básica de Hong Kong são semelhantes, nomeadamente no que respeita aos órgãos municipais de Macau e aos conselhos de bairro em Hong Kong não disporem de poder político. Contudo, em Hong Kong os conselhos de bairro têm membros eleitos por sufrágio directo.
Em Hong Kong as funções dos District Council, «Conselhos de Bairro», estão relacionadas com a prestação de serviços no âmbito da cultura, recreio e salubridade pública.
Por outro lado, os «District Councils» são compostos por membros eleitos, após a aprovação, pelo Conselho Legislativo de Hong Kong, em 22 de Maio de 2013, da Lei que alterou a sua composição e que aboliu o sistema de nomeação dos membros, com efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2016.
Inicialmente, em Macau, o argumento para defender que os órgãos municipais não podiam ser compostos por membros eleitos baseava-se no facto de o artigo 95.º da Lei Básica de Macau estipular que os órgãos municipais não podem dispor de poder político. Este argumento foi refutado[1].
A expressão, prevista no artigo 95.º da Lei Básica de Macau, que os órgãos municipais «são incumbidos pelo Governo de servir a população», invocada, mais recentemente, para defender que os membros dos órgãos municipais não podem ser eleitos não consta do artigo 97.º da Lei Básica de Hong Kong, mas não impede que os seus membros sejam eleitos por sufrágio directo. As normas referidas atribuem, aos órgãos municipais, o exercício de competências nos domínios da «cultura, recreio e salubridade pública». A definição das atribuições que devem ser prosseguidas pelos órgãos é diferente do método como são designados os titulares desses órgãos. Naturalmente, que as competências, referidas anteriormente, devem ser exercidas tendo em conta o interesse púbico. Fim que deve ser prosseguido pelo Governo, cuja actividade deve ser exercida no sentido de servir a população, bem como pelas entidades que executam as políticas do Governo, como resulta do artigo 4.º do CPA.
Antes da transferência de Macau da administração portuguesa para a administração chinesa, em 20 de Dezembro de 1999, a administração local em Macau era constituída pelo município de Macau, Leal Senado de Macau, e pelo município das Ilhas que abrangia as ilhas da Taipa e Coloane. Os municípios, constituídos por dois órgãos, a Assembleia Municipal e a Câmara Municipal, tinham, por exemplo, atribuições no domínio da salubridade pública e saneamento básico, cultura, tempos livres e desporto e defesa e protecção do meio ambiente e da qualidade de vida do respectivo agregado populacional, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, als. d) a f) da Lei n.º 24/88/M de 3 de Outubro – Regime jurídico dos municípios.
Os municípios visavam «a prossecução (…) dos interesses das populações respectivas», nos termos do artigo 1.º, n.º 2 e as atribuições referidas, anteriormente, deviam, nos termos do artigo 2.º, n.º 2, «ser prosseguidas com respeito pela orientação da política geral do Território».
Portanto, neste aspecto, os municípios prosseguiam objectivos semelhantes aos estipulados no artigo 95.º da Lei Básica de Macau: os órgãos municipais «são incumbidos pelo Governo de servir a população».
Contudo, a Assembleia Municipal era constituída por cinco membros eleitos por sufrágio directo, cinco membros eleitos por sufrágio indirecto, dos quais três entre os representantes dos interesses morais, culturais e assistenciais e dois entre os representantes dos interesses económicos e três membros designados por portaria do Governador.
Por sua vez, a Câmara Municipal era constituída por um presidente e um vereador designados pelo Governador, um vice-presidente eleito pela Assembleia Municipal e dois vereadores eleitos pela Assembleia Municipal.
Após a transferência de administração, os órgãos municipais foram reorganizados para órgãos municipais provisórios sem poder político, nos termos do artigo 15.º, n.º 1 da Lei n.º 1/1999 – Lei de Reunificação.
Em 2001 foi criado o Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais, tendo sido extintos o Município de Macau Provisório e o Município das Ilhas Provisório e dissolvidos os respectivos órgãos municipais provisórios, nos termos do artigo 1.º e 2.º da Lei n.º 17/2001 – Criação do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais. Os membros do conselho de administração do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais «são escolhidos e exonerados livremente pelo Chefe do Executivo», nos termos do artigo 10.º, n.º 1 e os membros do conselho consultivo «são nomeados de entre personalidades de reconhecida idoneidade», como estipula o artigo 14.º, n.º 2.
Notas
1 António Katchi, As Fontes do Direito de Macau, Edição Universidade de Macau, Junho de 2006, pg. 547. «A associação lógica que o Governo estabeleceu entre a composição parcialmente electiva dos órgãos municipais e o seu poder político afigura-se-nos totalmente errónea. A eleição de um órgão é um meio de designar os seus titulares, enquanto que o poder político tem a ver com as sua competências, e tanto a definição daquele como destas tem de ser feita por lei. O facto de um órgão ser eleito não lhe dá ipso facto qualquer competência de natureza política; quando muito, poderá envolvê-lo em contendas políticas e dar à população oportunidade para se exprimir politicamente a seu respeito, mas isso não é proibido pela Lei Básica».
20/11/2017