Jorge Silveira leccionou, entre 1982 e 1988, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Em 1988 e 1989 leccionou no Curso de Direito da então Universidade da Ásia Oriental a cadeira de Direito Constitucional. Foi, em Macau, entre Agosto de 1996 e Dezembro de 1999, Secretário-Adjunto para a Justiça. Actualmente lecciona na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
O texto que publicamos, que será publicado em livro, foi apresentado nas Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, realizadas na Faculdade de Direito de Lisboa entre 3 e 6 de Novembro de 2003.
O conceito de indícios suficientes no processo penal português
1. Quadro legal e importância do conceito
I. O Código de Processo Penal[1] utiliza a expressão indícios suficientes para definir um dos pressupostos essenciais para a dedução da acusação e para a prolação do despacho de pronúncia em processo penal.
Refere, com efeito, o n.º 1 do seu artigo 283.º que, «se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público (…) deduz acusação contra aquele»[2].
O n.º 1 do artigo 308.º, por seu turno, estabelece que «se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos».
Não se logrando alcançar indícios suficientes, devem os mesmos sujeitos proferir, respectivamente, despacho de arquivamento do inquérito ou despacho de não pronúncia.
Efectivamente, esclarece o n.º 2 do artigo 277.º que «o inquérito é igualmente arquivado se não tiver sido possível ao Ministério Público obter indícios suficientes da verificação do crime ou de quem foram os agentes”. E orientação equivalente resulta, para o juiz de instrução, da parte final do já citado n.º 1 do artigo 308.º, na parte em que o legislador acrescenta: «caso contrário, profere despacho de não pronúncia».
II. O presente estudo visa esclarecer o significado do conceito de indícios suficientes no processo penal português. Para alcançar esse objectivo, seguir-se-á o seguinte plano: começar-se-á por salientar a importância do mencionado conceito na estrutura do processo penal; passar-se-á depois à exposição e análise crítica das principais interpretações possíveis para a expressão e à defesa do significado considerado mais correcto; na parte final, relacionar-se-á o conceito com realidades afins e com alguns princípios estruturais do processo penal que se prendem com a problemática em causa.
III. O uso da expressão indícios suficientes não constitui novidade em Portugal. Ela já aparecia, com significado semelhante, no CPP de 1929, quer referida à acusação, quer ao despacho de pronúncia[3].
Como sinónimo de indícios suficientes, a legislação anterior a 1987 usava por vezes a expressão prova bastante[4]ou prova indiciária[5].
De salientar, no entanto, que o novo Código é inovador num aspecto: inclui uma definição legal de indícios suficientes. Ela consta do n.º 2 do art. 283.º, de acordo com o qual «consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança». A legislação anterior não continha tal definição, que era deixada ao intérprete.
A expressão indícios suficientes carece efectivamente de ser esclarecida. Ela não é elucidativa, pois está incompleta. Para a compreender, é indispensável perguntar: suficientes para quê[6]?
A resposta é encontrada através da análise da função que o conceito desempenha na estrutura do processo penal.
IV. Como é sabido, é possível, na marcha do processo penal comum, operar uma distinção entre duas grandes fases: a fase preparatória ou preliminar e a fase de julgamento[7]. Essa diferenciação, que está nomeadamente presente na sistematização do CPP ao autonomizar, na sua Parte II, os Livros VI e VII, só se compreende recorrendo ao mencionado conceito.
Efectivamente, entende o legislador português, acompanhado aliás pelo da generalidade dos países, que só é legítimo ao Estado submeter uma pessoa a julgamento pela prática de um crime havendo comprovados motivos que o justifiquem. O que impõe que a primeira etapa da tramitação do processo penal comporte uma fase, ou um conjunto de fases, que visa investigar cabalmente a existência de um crime de que houve notícia e determinar os seus agentes, descobrindo e recolhendo as provas. Terminada essa primeira parte do processo, apelidada de preparatória, e esgotadas as diligências de investigação possíveis, importa responder à seguinte questão: há, ou não, motivos que justifiquem a submissão de alguém a julgamento? Só uma resposta afirmativa permite a progressão do processo para a fase seguinte – a de julgamento.
Não é, em regra, assim no processo civil. Na maioria dos casos, o autor não necessita de produzir antes da audiência final a prova dos factos que alega. Basta-lhe apresentar uma petição inicial sem erros formais graves para que o processo possa avançar até à fase de julgamento.
Esta especial estruturação do processo penal encontra a sua razão de ser na particular gravidade das consequências que podem advir da simples submissão de uma pessoa a julgamento penal. Mesmo que essa pessoa não venha a ser condenada, ela sofrerá inevitavelmente fortes prejuízos para o seu nome e reputação pelo simples facto de «ter de se sentar no banco dos réus». Na verdade, e para além da possibilidade de se lhe continuar a aplicar eventuais medidas de coacção e de garantia patrimonial, que podem restringir de forma substancial os seus direitos fundamentais, é irrecusável o efeito sociológico estigmatizante resultante do conhecimento público de que uma pessoa vai ser julgada em processo penal.
O acto processual que representa a transição da fase preparatória para a de julgamento é a acusação ou a pronúncia. E o conceito que está pressuposto nesse salto qualitativo é o de indícios suficientes.
Nos crimes públicos e semi-públicos a acusação, a existir, é sempre formulada em primeiro lugar pelo Ministério Público. Ela significa o momento crucial do exercício da acção penal, chamando determinada pessoa à responsabilidade, para ser julgada pela jurisdição penal. Face ao princípio da obrigatoriedade a que o Ministério Público está vinculado, a dedução de acusação e a avaliação da suficiência de indícios que lhe está pressuposta traduz para este órgão do Estado um dever[8]. O assistente, querendo, acompanhará a acusação pública através de uma acusação subordinada (artigo 284.º).
Nos crimes particulares, a acusação, a existir, é sempre formulada em primeiro lugar pelo assistente. A sua dedução é um direito, cabendo ao assistente avaliar com plena liberdade da oportunidade do exercício da acção penal. Mas, embora o CPP não o afirme expressamente, deve entender-se que o exercício desse direito pressupõe também uma avaliação afirmativa quanto à existência de indícios suficientes[9].
Assim, a acusação é o meio processual de promover o exercício da acção penal. Independentemente de se aceitar que ela traduza o exercício de um direito de acção judicial em sentido próprio, ela representa sem dúvida o impulso exterior necessário para que a jurisdição penal actue.
No que toca ao despacho de pronúncia, ele é proferido pelo juiz que dirige a instrução. Sendo esta uma fase facultativa, cuja abertura depende de requerimento do arguido ou do assistente, a verificação judicial da suficiência dos indícios só tem lugar, segundo o actual modelo processual penal português, havendo uma iniciativa nesse sentido do arguido ou do assistente. E a avaliação feita pelo juiz de instrução é a comprovação judicial da avaliação anteriormente realizada pelo Ministério Público e pelo assistente (n.º 1 do artigo 286.º).
De salientar que o conceito de suficiência dos indícios é utilizado, na acusação e na pronúncia, exactamente com o mesmo significado. Os indícios qualificam-se de suficientes quando justificam a realização de um julgamento. Para o processo penal, a existência de suficiência de indícios significa que os indícios são suficientes para submeter alguém a julgamento[10]. O conceito está, assim, directamente ligado ao direito ao bom nome e reputação do cidadão, também por vezes conhecido como o direito à boa fama, cuja tutela aponta no sentido de serem evitados julgamentos injustificados.
V. A distinção entre fase preparatória e fase de julgamento envolve uma outra, que nela está pressuposta: a distinção entre juízo de certeza e juízo de probabilidade.
Para o final da fase de julgamento está reservado o juízo de certeza. Ele visa alcançar a prova dos factos alegados em juízo. No final da fase preparatória o juízo a formular é de probabilidade de futura condenação.
Como salienta Cavaleiro de Ferreira, «a prova do julgamento não é a prova para a acusação e tem alicerces numa certeza, e não numa probabilidade»[11].
Assim, os indícios qualificam-se de suficientes quando justificam a realização de um julgamento; e isso acontece quando a condenação for provável.
2. Significado da expressão indícios suficientes
2.1. Generalidades
I. Explicitada a sua função na marcha do processo penal, é chegado o momento de aprofundar o significado da expressão indícios suficientes.
A expressão é composta por dois vocábulos: indícios e suficientes.
De salientar, desde já, que a definição constante do n.º 2 do artigo 283.º apenas se reporta ao segundo vocábulo. A lei não nos diz o que são indícios, apenas explica quando os considera suficientes.
Esta ausência de definição terá certamente a ver com o facto de a palavra indícios ser utilizada com um sentido próximo do comum, não necessitando de um especial critério normativo: indício é uma palavra de origem latina que significa sinal, marca, indicação. Aplicado à investigação criminal, o conceito reporta-se à tarefa de descoberta e recolha de provas.
A palavra indícios, que aliás o CPP utiliza amiúde[12], refere-se, assim, ao conjunto das provas já recolhidas no processo[13] [14].
II. Para o qualificativo suficientes existe, como já se referiu, a definição legal constante do n.º 2 do artigo 283.º, a qual relaciona a suficiência dos indícios com uma possibilidade razoável de condenação em julgamento.
A avaliação da suficiência exige, assim, um juízo prognóstico sobre a possibilidade de condenação no final da fase do julgamento. O que pressupõe um raciocínio de conjugação entre todos os indícios, por forma a fundamentar esse juízo de prognose.
Esta definição, porém, continua a não ser esclarecedora. O que significa uma possibilidade razoável de condenação? Qual o grau de probabilidade que este conceito comporta?
Na resposta que doutrina e jurisprudência têm dado a estas questões podem distinguir-se três correntes fundamentais:
– uma primeira solução afirma que basta uma mera possibilidade, ainda que mínima, de futura condenação em julgamento;
– numa segunda resposta possível, é necessário uma maior probabilidade de condenação do que de absolvição;
– e uma terceira via defende ser necessária uma possibilidade particularmente forte de futura condenação.
Vejamos mais de perto cada uma destas soluções e façamos a análise crítica dos argumentos por elas invocados.
2.2. Suficiência como mera possibilidade, ainda que mínima
Numa primeira opinião, que se pode apelidar de menos exigente, os indícios já são suficientes quando deles resulte uma mera possibilidade, ainda que diminuta ou ínfima, de condenação.
Esta solução, que tem tido poucos seguidores, surge em regra associada especificamente à definição dos requisitos para o despacho de pronúncia, não ficando muitas vezes claro se os seus defensores a advogam também para a definição dos requisitos para a acusação.
O significado de suficiência dos indícios deve, nesta interpretação, ser interpretado de harmonia com o conceito inerente à expressão acusação manifestamente infundada, previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 311.º[15].
Os defensores desta tese fazem a seguinte equiparação: tal como o juiz de julgamento, ao proferir o despacho liminar de saneamento do processo, só pode rejeitar a acusação se ela for manifestamente infundada, também o juiz de instrução, ao proferir a decisão instrutória, só deve lavrar um despacho de não pronúncia se chegar à mesma conclusão.
Para haver despacho de pronúncia basta que a submissão do arguido a julgamento não constitua «um acto manifestamente inútil e clamorosamente injusto»[16].
2.3. Suficiência como maior possibilidade de condenação do que de absolvição
A segunda interpretação acima mencionada defende que os indícios são suficientes quando a possibilidade de futura condenação do arguido em julgamento for mais provável do que a possibilidade da sua absolvição. É a chamada teoria da probabilidade predominante.
Assim, no momento de apreciar a suficiência dos indícios, há que, num juízo de prognose, procurar determinar o que é mais provável: a futura absolvição ou a futura condenação do arguido? Se for a absolvição, não há indícios suficientes; se for a condenação, esses indícios existem.
De acordo com esta posição, para acusar ou pronunciar não basta uma reduzida possibilidade de condenação do arguido. Se as probabilidades de absolvição forem superiores ou mesmo iguais às de condenação, o processo não deve prosseguir. Mas para acusar ou pronunciar não é necessário que as probabilidades de condenação sejam manifestamente superiores.
Esta é a solução que mais se aproxima do conceito matemático de probabilidade, segundo o qual, entre duas afirmações contrárias, a mais provável é a que tiver maior grau de possibilidade de ser verdadeira.
Usando linguagem matemática, dir-se-á: para os indícios serem suficientes é necessário que as possibilidades de condenação em julgamento sejam superiores a 50%.
Nesta linha de raciocínio, afirma Germano Marques da Silva que uma possibilidade razoável é uma probabilidade mais positiva que negativa[17].
Esta resposta é defendida por uma boa parte da doutrina e da jurisprudência, nomeadamente ao nível dos tribunais da Relação.
2.4. Suficiência como forte possibilidade de condenação
Finalmente, a terceira interpretação que tem vindo a ser defendida advoga que os indícios só são suficientes quando deles resulte uma forte, alta ou séria possibilidade de futura condenação em julgamento.
Convém desde já salientar que certos autores advogam esta resposta sem verdadeiramente a autonomizar da anterior. A suficiência dos indícios pressuporia uma forte possibilidade ou uma probabilidade predominante[18].
Para outros autores, porém, a suficiência dos indícios exige uma possibilidade particularmente qualificada, que não se basta com a simples probabilidade predominante.
Nesta tese, a suficiência dos indícios acaba por pressupor a formação de uma verdadeira convicção de probabilidade: indícios suficientes são, citando um dos acórdãos que se insere nesta linha de raciocínio, «os elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo nascer a convicção de que (o arguido) virá a ser condenado[19]». Eles constituem «um todo persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que lhe é imputado»[20].
Esta opinião, que prevaleceu na jurisprudência portuguesa durante a vigência do CPP de 1929, ainda hoje conta com forte adesão[21].
2.5. Análise crítica
I. Antes de mais, importa analisar o teor literal da definição legal, a qual usa, como já se referiu, a expressão possibilidade razoável.
Numa primeira aproximação, dir-se-á que o legislador consagra a tese intermédia da probabilidade predominante. Efectivamente, a qualificação de razoável parece implicar uma ideia de moderação, de mediania. A expressão possibilidade razoável aparenta significar mais do que uma possibilidade mínima, mas porventura não exigirá uma possibilidade especialmente forte ou qualificada.
Nesta linha de pensamento, há quem defenda que o legislador português, ao incluir no CPP esta definição, teve a intenção de consagrar a posição intermédia da suficiência dos indícios como sinónimo de probabilidade predominante, prevendo um grau de exigência menor do que aquele que era advogado pela doutrina e jurisprudência dominantes na vigência do CPP de 1929[22].
Apesar de reconhecer que a letra da lei se adapta melhor à teoria da probabilidade predominante, julgo que o argumento literal não é decisivo. Parece ser possível admitir que o termo razoável tenha sido usado para salientar um outro significado deste qualificativo, que se prende com a ideia de algo que é conforme à razão, adequado, apropriado, justo[23]. A definição não visará tanto quantificar o grau da possibilidade, mas fundamentalmente salientar a necessidade da sua adequação às especiais exigências que os interesses em jogo reclamam.
Lendo a expressão com este sentido, ela será à partida compatível com qualquer das posições anteriores, tudo dependendo da ponderação que se venha a fazer dos interesses em causa.
Seguindo este raciocínio, há quem defenda que a definição do CPP não veio inovar no ordenamento jurídico português, sendo nomeadamente compatível com a terceira tese já exposta[24].
II. Não sendo decisivo o argumento literal, há que aprofundar outros argumentos.
Antes de mais, é de repudiar o raciocínio que equipara o controlo exercido pelo juiz de instrução ao proferir a decisão instrutória ao controlo efectuado pelo juiz de julgamento no momento do saneamento do processo.
Ao proferir a decisão instrutória, o juiz está a decidir o resultado de uma fase processual que ele próprio dirigiu, tendo em vista a comprovação da anterior decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito.
Tem-se por seguro que a apreciação liminar do processo pelo juiz de julgamento não pode de forma alguma ser equiparada a esta função[25].
Com a reforma de 1998, o novo n.º 3 acrescentado ao artigo 311.º veio clarificar que a apreciação levada a cabo pelo juiz de julgamento tem uma natureza meramente formal, não envolvendo um juízo relativamente ao mérito dos indícios recolhidos no processo.
Mas já antes dessa reforma, e mesmo que admitíssemos a constitucionalidade da interpretação consagrada no Assento do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/93, de 17 de Fevereiro[26], que conferia ao juiz de julgamento o dever de rejeitar acusações em que fosse manifesta a insuficiência da prova indiciária, tal equiparação não tinha fundamento, pois não atendia à finalidade da estrutura essencial da tramitação do processo penal comum.
A equiparação que, pelo contrário, deve ser feita, por ter claro apoio na lei[27] e resultar da lógica estrutural do processo, é a equiparação entre a suficiência dos indícios para acusar e a suficiência dos indícios para pronunciar. Não só porque a lei utiliza os mesmos conceitos para definir os pressupostos de ambos os actos, mas também porque a decisão instrutória mais não é do que a comprovação da decisão tomada no final do inquérito.
Deve, por isso, ser afastado o principal argumento que sustenta a primeira tese há pouco exposta, segundo a qual os indícios só não seriam suficientes se a acusação fosse manifestamente infundada.
III. Para uma esclarecida tomada de posição nesta matéria importa compreender o alcance efectivo da distinção entre juízo de probabilidade e juízo de certeza que, como já se mencionou, está subjacente à divisão entre a fase preparatória e a fase do julgamento na marcha do processo penal comum.
O juízo de certeza, enquanto afirmação da verdade no processo, é seguramente um juízo subjectivo. Ele assenta em indícios e traduz-se numa convicção, num estado de espírito, num íntimo convencimento[28].
O mesmo se passa com o juízo de probabilidade. Ele implica a mesma margem inescapável de subjectivismo[29]. É também uma opinião que se forma com base em indícios, apreciando a prova disponível nos autos.
Como ensina Castro Mendes, «toda a convicção humana é uma convicção de probabilidade»[30][31].
Estas considerações mostram, desde logo, que a primeira posição exposta tornaria muito raros os despachos de arquivamento do inquérito ou de não pronúncia, esvaziando de utilidade toda a fase preparatória do processo, o que é mais um argumento em seu desfavor. Na esmagadora maioria dos casos o processo teria de seguir para julgamento, já que, sendo a avaliação dos indícios um juízo necessariamente subjectivo, raramente seria de rejeitar uma possibilidade, ainda que mínima, dos factos investigados se terem efectivamente passado. Citando uma vez mais Castro Mendes, «não há afirmação cuja contrária não tenha um grau, mínimo que seja, de possibilidade»[32]. Ou seja, só em casos extremos seria legítimo afirmar a insuficiência dos indícios.
IV. Entre os defensores da teoria da probabilidade predominante está fortemente enraizada a ideia de que o juízo indiciário a formular no final do inquérito ou da instrução é mais fraco, menos exigente, que o formulado na decisão final tomada após o julgamento. O juízo indiciário, de mera probabilidade, não exigiria a força nem a solidez da valoração da prova em julgamento. Bastar-lhe-ia uma possibilidade razoável. Para alcançar um juízo de certeza, o grau de convencimento subjectivo do julgador seria mais exigente, até porque os elementos à sua disposição para o atingir seriam mais completos.
Está assim pressuposta no raciocínio anterior a convicção de que o grau de exigência do juízo indiciário que está presente ao longo do processo penal vai, em regra, crescendo à medida que este vai progredindo. Pode começar com uma mera possibilidade, ainda que diminuta, na qual se enquadra o conceito de suspeito; vai evoluindo ao longo do inquérito, à medida que vão sendo recolhidas as provas; passa pela constituição de arguido; no momento da acusação e da pronúncia já deve traduzir uma maior probabilidade de condenação do que de absolvição; e vai consolidando-se, num crescendo de exigência, até culminar com o juízo de certeza formulado na sentença final[33].
Neste sentido, a fase preparatória do processo penal funcionaria como uma triagem de situações que justificariam julgamento[34]. Assemelhar-se-ia, fazendo uma comparação com o processo civil, a um juízo de verosimilhança, ou de prova sumária ou simples justificação, o qual seria suficiente para decretar uma providência cautelar, por exemplo, mas já não para a decisão de mérito na acção principal respectiva[35].
V. Em minha opinião, equiparar o juízo de probabilidade a um juízo de mera verosimilhança, menos exigente do que o de condenação, não é justificável face à realidade estrutural do processo penal.
Efectivamente, o critério normativo afirmado no juízo de suficiência dos indícios deve corresponder à realidade estrutural do processo penal.
Ora, como é sabido, a acusação só é deduzida depois de encerrado o inquérito; e este só é encerrado depois de esgotadas as diligências e recolhidas todas as provas que possam fundamentar a acusação. Assim, no momento do encerramento do inquérito já se encontram recolhidas todas as provas da acusação. O actual CPP não prevê, ao contrário do anterior, a dedução de uma acusação provisória, que possa ser completada através da instrução. Aliás, o Ministério Público nem pode requerer a abertura da instrução, o que reforça a natureza definitiva da sua acusação.
Isto significa que os meios de prova que fundamentam a acusação, e que nela são obrigatoriamente discriminados, não serão, salvo casos excepcionais, reforçados até à audiência de julgamento. A tendência natural será, pelo contrário, no sentido do enfraquecimento dessas provas, já que irão ser submetidas ao crivo do contraditório e atacadas com o efectivo exercício do direito de defesa, até aí substancialmente afectado.
Assim, o momento do encerramento do inquérito é o momento do processo em que os indícios da prática do crime se revelarão, em princípio, mais fortes. A partir desse momento, e salvo casos excepcionais, eles não se fortalecerão; a sua intensidade, pelo contrário, tenderá a enfraquecer.
Este raciocínio mostra, a meu ver, que não faz sentido exigir para a condenação após a audiência de julgamento uma prova indiciária mais forte do que a exigida no momento da acusação ou da pronúncia. Se a prova indiciária não atinge, no momento da acusação ou da pronúncia, a força necessária para formar uma convicção de condenação, não vale a pena o processo prosseguir, pois essa convicção não vai certamente ser alcançada. Mesmo olhando apenas para os interesses da eficácia da repressão da criminalidade, é preferível nesses casos o inquérito ser arquivado, aguardando produção de melhor prova, e consequentemente reaberto se ela aparecer, do que avançar para o julgamento, correndo sérios riscos de ser proferida sentença absolutória definitiva.
Esta linha de argumentação aponta, pois, para a terceira tese exposta. Faz sentido, atendendo à particular estrutura do processo penal, exigir para a suficiência dos indícios uma forte possibilidade de condenação futura, exigir uma verdadeira convicção de probabilidade dessa condenação.
VI. Finalmente, equiparar o juízo de probabilidade a um juízo de mera verosimilhança, menos exigente do que o de condenação, significa admitir que o juízo de suficiência dos indícios é compatível com uma certa margem de dúvida quanto à responsabilidade do arguido, o que conduz inevitavelmente a reconhecer que o princípio da presunção de inocência não se aplica nessa avaliação.
É efectivamente comum entender-se que a formulação do juízo indiciário é compatível com uma natural margem de dúvida razoável. Mesmo havendo essa dúvida, pode ser possível concluir pela maior probabilidade de condenação do que de absolvição, situação em que os indícios deveriam ser considerados suficientes. Só na condenação final qualquer dúvida razoável teria de ser afastada, por força do in dubio pro reo.
A nossa jurisprudência, principalmente ao nível dos tribunais da Relação, tem vindo a advogar esta solução, afirmando seca e recorrentemente que o princípio in dubio pro reo não tem aplicação na fase da pronúncia[36].
A origem desta posição reside, salvo melhor opinião, no preconceito, já acima denunciado, de que o juízo de probabilidade se contenta com uma prova indiciária mais fraca, menos exigente que a pressuposta no juízo de certeza[37].
Já foi salientado que este preconceito não tem justificação face ao sistema estrutural do processo penal. Estará mais de acordo com esse sistema que as certezas no momento da acusação sejam postas em dúvida no julgamento do que as anteriores dúvidas se convertam em certezas. Uma dúvida razoável no final do inquérito dificilmente se dissipará durante a audiência de julgamento; pelo contrário, uma convicção que aponte para a condenação no final do inquérito pode facilmente, depois de sujeita a uma apreciação oral e contraditória na audiência, converter-se em dúvida razoável.
Por outro lado, o princípio da presunção de inocência constitucionalmente consagrado vigora para todo o processo penal, pelo que deve estar também presente no momento da acusação e da pronúncia e ser compatível com o conteúdo normativo a atribuir ao juízo indiciário que esses actos processuais pressupõem.
Nos últimos anos tem-se assistido a uma afirmação crescente e reforçada da importância do princípio da presunção de inocência. Significativa desta evolução foi a comunicação de Vives Antón na sessão inaugural destas Jornadas, ao considerar este princípio o fulcro do processo penal moderno.
O fundamental nesta matéria, como adverte o Tribunal Constitucional no já citado Acórdão n.º 439/2002, é não converter este princípio numa presunção meramente teórica, numa espécie de banho lustral[38] que a lei proporciona aos arguidos, mas que na prática não redunda em qualquer posição processual vantajosa para eles. O princípio, pelo contrário, deve ser entendido como conferindo ao arguido a titularidade de um estatuto e o direito a um tratamento que deve inspirar todas as soluções e acompanhá-lo em todas as fases do processo[39].
O princípio da presunção de inocência deve, por isso, ter também incidência directa na formulação do juízo de probabilidade[40]. Do princípio da presunção de inocência deve decorrer a proibição de submeter uma pessoa a julgamento penal imputando-lhe factos relativamente aos quais persistam dúvidas razoáveis. Só quando essas dúvidas sejam ultrapassadas, de forma demonstrada, é que será legítimo afirmar a suficiência dos indícios. A honra de uma pessoa não deve ser posta em jogo enquanto subsistirem dúvidas razoáveis quanto ao fundamento da acusação[41].
A solução alcançada conduz ao claro repúdio da primeira tese exposta, que afirma a suficiência dos indícios em casos em que a possibilidade de condenação seja diminuta. Mas coloca também em crise a segunda teoria, que advoga a probabilidade predominante, pelo menos quando se entenda que ela é compatível com uma certa margem de dúvida razoável.
Não logrando atingir uma verdadeira convicção de probabilidade, que afaste toda e qualquer dúvida razoável, o acusador deve abster-se de acusar e o juiz de instrução deve lavrar despacho de não pronúncia.
Excluir o princípio da presunção de inocência da valoração da prova indiciária reduz desproporcionada e injustamente as garantias de defesa do arguido em processo penal, o que contraria a Constituição.
2.6. Posição adoptada
I. Das reflexões levadas a cabo no ponto anterior pode concluir-se que da distinção entre juízo de probabilidade e juízo de certeza não resulta uma diferença essencial quanto ao grau de exigência de verdade que deve estar presente em ambas as avaliações.
Seguindo a lição de Castanheira Neves, deve defender-se para a acusação «a mesma exigência de prova e de convicção probatória, a mesma exigência de “verdade” requerida pelo julgamento final»[42]. «Deverá sim exigir-se aquele tão alto grau de probabilidade prática quanto possa oferecer a aplicação esgotante e exacta dos meios utilizáveis para o esclarecimento da situação – um tão alto grau de probabilidade que faça desaparecer a dúvida (ou logre impor uma convicção)»[43].
Assim, para a suficiência dos indícios não deve bastar uma maior possibilidade de condenação do que de absolvição. Só uma forte ou alta possibilidade pode justificar a dedução da acusação ou a prolação do despacho de pronúncia. Não apenas por ser esta a solução que melhor se adapta à particular estrutura do processo penal, como também por ser a única que consegue a imprescindível harmonização entre o critério normativo presente no juízo de afirmação da suficiência dos indícios e as exigências do princípio da presunção de inocência do arguido[44].
Por todas estas razões, afirmar a suficiência dos indícios deve pressupor a formação de uma verdadeira convicção de probabilidade de futura condenação. Não logrando atingir essa convicção, o Ministério Público deve arquivar o inquérito e o juiz de instrução deve lavrar despacho de não pronúncia. E julgo que uma eventual reforma do processo penal deveria aproveitar para clarificar a definição legal constante do n.º 2 do artigo 283.º, substituindo a expressão possibilidade razoável por uma outra que transmita sem equívocos a ideia de uma possibilidade particularmente qualificada, que só se afirme depois de afastadas quaisquer dúvidas razoáveis.
II. Em que se traduz então a diferença essencial entre o juízo de probabilidade e o juízo de certeza?
Esta dicotomia existe, e deve manter-se, porque o juízo formulado no momento da acusação e da pronúncia, independentemente do grau de exigência que encerra, não é apto a decidir com justiça a questão da responsabilidade penal.
Quando esse juízo é formulado após o encerramento do inquérito, a convicção que então se forma pode ser afectada pelas características inquisitórias que até esse momento prevalecem no processo: o secretismo, o carácter escrito, a ausência de contraditório, de oralidade e de imediação, tudo isto pode inquinar a avaliação quanto à suficiência dos indícios e contribuem para que ela não possa servir para fundamentar um juízo de certeza.
E mesmo quando é formulada no final da instrução, após a realização do debate instrutório, alguns desses vícios se podem manter. Embora já se tenha dado ao arguido a oportunidade de exercer um verdadeiro direito de defesa, embora já tenha havido alguma oralidade e imediação, a convicção continua fortemente influenciada pelas provas obtidas durante o inquérito. Como salienta o n.º 2 do artigo 291.º, os actos e diligências de prova praticados no inquérito não são, em regra, repetidos; a decisão instrutória visa apenas comprovar a avaliação feita no final do inquérito pelo Ministério Público, e não formar uma nova convicção totalmente autónoma da anterior.
Assim, o que distingue fundamentalmente o juízo de probabilidade do juízo de certeza é a confiança que nele podemos depositar e não o grau de exigência que nele está pressuposta. O juízo de probabilidade não dispensa o juízo de certeza porque, para condenar uma pessoa, o conceito de justiça num Estado de direito exige que a convicção se forme com base na produção concentrada das provas numa audiência, com respeito pelos princípios da publicidade, do contraditório, da oralidade e da imediação. Garantias essas que não é possível satisfazer no final da fase preparatória.
3. Indícios suficientes e fortes indícios
I. A avaliação sobre a suficiência dos indícios não é o único juízo indiciário possível no processo penal antes da decisão final. Em diversas outras ocasiões há a necessidade de avaliar do mérito das provas já recolhidas.
O problema pode colocar-se logo no momento da abertura do processo. De facto, situações há em que se pode questionar se não se deve exigir uma avaliação indiciária prévia à decisão de abertura de um processo penal[45].
De grande interesse seria também averiguar se a constituição de uma pessoa como arguido deverá, ou não, pressupor sempre a formulação de um determinado juízo indiciário mínimo[46]. Qual a intensidade dos indícios exigível para se afirmar que o inquérito está a correr contra pessoa determinada e aplicar consequentemente o regime dos artigos 58.º, n.º 1, alínea a), e 272.º, n.º 1?
Uma análise do significado de cada uma das possíveis avaliações indiciárias ao longo do processo penal, porém, extravasa o âmbito do presente estudo[47].
II. Uma dessas situações, contudo, merece uma referência especial, ainda que breve, dado que está muito próxima da que nos tem vindo a ocupar.
Trata-se da exigência da verificação de fortes indícios da prática de um crime para permitir a detenção ou a aplicação ao arguido de determinadas medidas de coacção mais graves, nomeadamente da prisão preventiva –alínea b) do n.º 3 do artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa e artigos 200.º a 202.º do CPP.
A avaliação subjacente à afirmação da existência de fortes indícios terá um conteúdo mais ou menos exigente do que a contida na expressão indícios suficientes?
A resposta que a nossa jurisprudência tem dado a esta questão está longe de ser uniforme[48].
Atendendo à forma como o legislador se expressou e sobretudo à gravidade das medidas em causa, inclino-me a pensar que essa avaliação não poderá ter um conteúdo menos exigente. Fortes indícios da prática de um crime não pode significar menos que indícios de que resultem uma possibilidade razoável de condenação.
O conteúdo que atrás defendi para o conceito de indícios suficientes leva-me a concluir que as duas expressões devem ter um significado semelhante. Ambas pressupõem uma convicção, face aos elementos de prova disponíveis, da probabilidade da futura condenação do arguido.
Para os autores que aderem à teoria da probabilidade predominante para caracterizar o conceito de indícios suficientes, já fará todo o sentido adoptar para o conceito de fortes indícios um significado mais exigente, que traduza uma possibilidade particularmente qualificada de futura condenação[49].
De salientar que, enquanto que a avaliação da suficiência dos indícios é efectuada sempre no final do processo preparatório (no final do inquérito e no final da instrução), portanto com a fase de recolha de provas que fundamentam a acusação já concluída, a decisão relativa aos fortes indícios pode ter lugar em qualquer altura do processo, sendo naturalmente tomada com base nos elementos de prova disponíveis no momento em que é proferida[50].
Aceitar que a expressão fortes indícios pressupõe uma verdadeira convicção de probabilidade de futura condenação implica reconhecer que, sendo a detenção ou a medida de coacção grave, nomeadamente a prisão preventiva, ordenada durante o inquérito, no momento em que o respectivo mandado ou despacho é proferido estão já reunidos os indícios suficientes para ser deduzida acusação[51].
4. Indícios suficientes e princípio do acusatório
I. A exacta compreensão da importância da avaliação da suficiência dos indícios para permitir a transição da fase preparatória para a fase de julgamento evidencia a necessidade de evitar que tal avaliação seja feita pelo mesmo magistrado que vai julgar a causa. Essa é uma exigência basilar do princípio do acusatório, o qual, visando a máxima garantia de imparcialidade, impede de intervir na formulação do juízo de certeza o magistrado que tenha formulado o juízo de probabilidade.
Efectivamente, a necessidade de formular um autónomo juízo de certeza depois de se concluir por um juízo de probabilidade não é um mero preciosismo do legislador processual penal. É uma imposição para obter uma decisão justa e imparcial, dado que a convicção alcançada durante o processo preparatório não reúne as condições necessárias para fazer justiça num Estado de direito. Como já foi salientado, ela é uma convicção baseada em boa medida em provas recolhidas unilateralmente pelo Ministério Público e órgãos de polícia criminal, sem garantia de total contraditório, com segredo de justiça, sem imediação nem oralidade e sem publicidade.
Pelo contrário, a convicção de certeza há-de basear-se na produção concentrada, pública, com oralidade e imediação, de todas as provas, devidamente contraditadas por todos os sujeitos processuais.
Permitir que pudesse julgar a causa um magistrado que já tivesse formulado juízos de apreciação dos indícios existentes, considerando-os suficientes ou insuficientes, seria fazer perigar a confiança geral na objectividade da justiça, pois seria legítimo duvidar que esse magistrado se iria abstrair das conclusões já formuladas para criar uma convicção nova, apenas baseada nas provas produzidas na audiência de julgamento.
Assim, estará impedido de julgar a causa o magistrado que, no final da fase preparatória, já tiver avaliado a suficiência ou insuficiência dos indícios[52][53].
II. Merece, por isso, a minha concordância, a forte limitação dos poderes de apreciação liminar da causa pelo juiz de julgamento, que a reforma de 1998 veio clarificar. Por força do novo n.º 3 que a Lei n.º 59/98 aditou ao artigo 311.º, fica esclarecido que o saneamento do processo versa questões meramente formais, não podendo em caso algum a acusação ser rejeitada nessa fase processual por insuficiência de indícios. E esta limitação impõe-se quer a acusação tenha sido formulada pelo Ministério Público, quer o tenha sido pelo assistente. Outra interpretação seria sempre violadora da estrutura acusatória constitucionalmente consagrada. E isto porque obrigaria o juiz a, antes de marcar a data da audiência, avaliar, através da leitura dos autos, o mérito dos indícios recolhidos, para concluir pela sua não manifesta insuficiência. A marcação da data da audiência, se assim fosse, pressuporia a formação de uma convicção prévia quanto ao mérito da causa, fundada na leitura dos autos. Ora é precisamente a afirmação dessa convicção prévia que o princípio do acusatório quer evitar. E isto sucede, não por se entender que o juiz não seja capaz de se abstrair dela e de a substituir por outra convicção formada apenas com base nas provas produzidas na audiência, mas sim para que não haja qualquer motivo que justifique essa desconfiança. Se o despacho que marcasse a data da audiência implicasse o reconhecimento de que a acusação não seria manifestamente infundada, haveria motivos para desconfiar que uma eventual sentença condenatória posterior se pudesse ter baseado nessa convicção liminar, em vez de se basear apenas na avaliação das provas produzidas na audiência[54].
Deve, por isso, ser reafirmado que a apreciação liminar do processo pelo juiz de julgamento não pode de forma alguma ser equiparada à comprovação da suficiência dos indícios levada a cabo pelo juiz de instrução. Insistir nesta equiparação revela, acima de tudo, incapacidade para compreender a relevância do princípio do acusatório e das consequências da consagração constitucional da estrutura acusatória do processo penal português.
5. Indícios suficientes e princípio da iniciativa processual das partes
I. No sistema do actual CPP, o juiz de instrução só avalia a suficiência dos indícios, proferindo despacho de pronúncia ou de não pronúncia, se tal lhe for solicitado pelo arguido ou pelo assistente.
Não foi assim durante a vigência do CPP de 1929, pelo menos para a forma de processo de querela: a submissão de uma pessoa a julgamento pressupunha sempre a prolação de um despacho de pronúncia e, portanto, uma avaliação judicial da suficiência dos indícios.
A solução do actual CPP é manifestação de um princípio nele consagrado, que tem repercussões relevantes em todas as fases do processo penal, e que podemos designar por princípio da iniciativa processual das partes: à jurisdição está, em regra, vedada a iniciativa da sua própria intervenção. O juiz só exerce o seu poder soberano de administrar a justiça quando uma outra entidade exterior solicite formalmente a sua intervenção.
Assim, a avaliação da suficiência dos indícios pode não ser judicialmente comprovada, nomeadamente quando o arguido não requeira a abertura da instrução.
É certo que, em todos os crimes públicos e semi-públicos, a suficiência dos indícios, nos casos em que não seja requerida instrução e o processo siga para julgamento, terá sido avaliada e afirmada pelo Ministério Público – órgão do Estado dotado de autonomia, cuja actuação se rege por critérios de estrita objectividade.
Nos crimes particulares, porém, a avaliação indiciária feita pelo assistente, através da acusação particular, pode ser suficiente para desencadear o julgamento. Basta que o arguido opte por não requerer a instrução[55].
II. Será inconstitucional esta possibilidade admitida pelo CPP de haver um julgamento penal sem uma afirmação prévia da suficiência dos indícios por parte de um órgão do Estado?
Há quem defenda que sim, entendendo ser um dever indeclinável do Estado evitar julgamentos criminais inúteis, salvaguardando oficiosamente os inocentes de perseguições injustas[56].
Embora concordando que se devem, em regra, evitar julgamentos inúteis, não creio que a afirmação prévia da suficiência dos indícios por parte de um órgão do Estado seja uma imposição constitucional. O que está em causa é fundamentalmente o direito pessoal ao bom nome e reputação do arguido, do qual o próprio poderá prescindir, se preferir dar prevalência à celeridade processual. A Constituição obriga a que seja dado ao acusado o direito de solicitar a comprovação judicial da suficiência dos indícios. Mas não obriga a que essa comprovação seja feita mesmo contra a sua vontade[57].
A conclusão seria porventura outra se o simples facto de o assistente deduzir uma acusação contra alguém acarretasse automaticamente consequências restritivas autónomas para os direitos fundamentais do acusado, como poderia eventualmente resultar do artigo 290.º do CPP de 1929, antes da reforma de 1972. Ora não é isso o que se passa hoje: o estatuto de réu, ou de acusado, não importa deveres adicionais autónomos em relação aos que já são inerentes ao estatuto de arguido.
Assim, na perspectiva das garantias de defesa, a abertura da instrução corresponde ao exercício de um direito potestativo. Se o arguido preferir, pode optar por se sujeitar ao julgamento imediato, dando primazia ao seu direito a um processo célere, também ele constitucionalmente consagrado.
Esta solução de permitir a submissão de uma pessoa a julgamento penal dispensando uma avaliação judicial da suficiência dos indícios pressupõe, a meu ver, que seja dado ao arguido, no momento em que é notificado da acusação, a informação necessária para se poder concluir que a não apresentação do requerimento de abertura da instrução representa uma omissão consciente, nomeadamente quanto às consequências que acarreta.
Julgo, por isso, de aplaudir a consagração da obrigatoriedade de nomeação de defensor ao arguido antes deste ser notificado da acusação, que a reforma de 1998 veio prever através do novo n.º 3 aditado ao artigo 64.º. Esta solução permite que o acusado possa esclarecer devidamente as opções processuais que se lhe colocam após tomar conhecimento da acusação[58].
A lei poderia, além disso, prever expressamente que a notificação da acusação fosse acompanhada de uma explicação, ainda que sucinta, da principal opção que dela decorre para o arguido, à semelhança do estatuído no n.º 2 do artigo 58.º.
6. Conclusões
Das reflexões levadas a cabo nas linhas anteriores podem tirar-se as seguintes conclusões fundamentais:
a) Constitui uma fundamental garantia de defesa do arguido o direito de não ser submetido a julgamento penal senão havendo indícios suficientes de que praticou um crime;
b) Esse direito deve ser entendido como uma importante manifestação do princípio da presunção de inocência do arguido, o qual está presente ao longo de todo o processo penal;
c) A expressão indícios suficientes exige uma possibilidade particularmente qualificada de futura condenação, pressupondo a formação de uma verdadeira convicção de probabilidade dessa condenação;
d) O princípio da presunção de inocência deve estar também presente na avaliação da suficiência dos indícios e ser compatível com o conteúdo normativo a atribuir a esse juízo indiciário;
e) Para isso acontecer, é necessário que a suficiência dos indícios só se afirme nos casos em que quaisquer dúvidas razoáveis quanto à futura condenação do arguido sejam previamente afastadas;
f) Por tudo isto, não faz sentido afirmar que o juízo de suficiência dos indícios traduz uma avaliação menos exigente que a avaliação contida na sentença final.
Notas
[1] Doravante CPP. Os artigos mencionados no texto reportam-se, salvo indicação em contrário, ao Código de Processo Penal actualmente em vigor em Portugal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro. [2] Usando a expressão em sentido semelhante, estabelece o n.º 1 do artigo 391.º-A que «em caso de crime punível com pena de multa ou com pena de prisão não superior a cinco anos, havendo provas simples e evidentes de que resultem indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público (…) pode deduzir acusação para julgamento em processo abreviado…». [3] Vejam-se os artigos 349.º, 354.º, §§ 1.º e 2.º, e 368.º (estes dois últimos apenas antes da reforma operada pelo Decreto-Lei n.º 185/72, de 31 de Maio). Após as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 377/77, de 6 de Setembro, o n.º 2 do artigo 390.º passou a incluir a expressão responsabilidade suficientemente indiciada. [4] Vejam-se os artigos 148.º, § único, e 345.º, ambos do CPP de 1929, bem como o artigo 26.º do Decreto-Lei n.º 35 007, de 13 de Outubro de 1945. [5] Esta expressão surgia também, por exemplo, no já citado artigo 26.º do Decreto-Lei n.º 35 007. [6] O mesmo se podia dizer da expressão prova bastante, usada pelo CPP de 1929; nada se esclarecia se não se soubesse para que é que essa prova bastava. [7] Veja-se, por todos, Manuel Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, III, reimpressão da Universidade Católica, Lisboa, 1981, páginas 101 a 103. [8] Mais discutível é determinar se o mesmo dever do Ministério Público se deve considerar presente nos crimes particulares, após a dedução de acusação pelo assistente. A posição que nesse momento do processo o Ministério Público é chamado a tomar, acusando ou abstendo-se de acusar, parece dever pautar-se pelos mesmos critérios de obrigatoriedade. Em minha opinião, o uso do verbo pode, no n.º 3 do artigo 285.º, não deve ser interpretado no sentido de traduzir um critério de oportunidade. [9] O mesmo se diga da abertura da instrução requerida pelo assistente. Tal requerimento pressupõe também uma avaliação positiva do assistente quanto à suficiência dos indícios. [10] Significativa neste sentido é a forma como o artigo 298.º define a finalidade do debate instrutório: «permitir uma discussão (…) sobre se, do decurso do inquérito e da instrução, resultam indícios de facto e elementos de direito suficientes para justificar a submissão do arguido a julgamento». [11] Curso de Processo Penal, Volume 2.º, Editora Danúbio Ld.ª, Lisboa, 1986, página 231. [12] A palavra surge por vezes usada no singular, nomeadamente na definição de suspeito que consta da alínea e) do n.º 1 do artigo 1.º; a maioria das vezes, porém, é utilizada no plural – vejam-se, por exemplo, os artigos 171.º, 174.º e 200.º a 202.º. [13] Neste sentido veja-se Germano Marques da Silva, Do Processo Penal Preliminar, Editorial Minerva, Lisboa, 1990, página 347. [14] O CPP de 1929 usava o termo indiciado como sinónimo de acusado (ver artigos 370.º e 371.º, por exemplo). Essa utilização, porém, prestava-se a confusões terminológicas, tendo sido abandonada no actual CPP. [15] A favor desta equiparação veja-se, por exemplo, o Acórdão da Relação de Lisboa de 14 de Março de 1990, sumariado no Boletim do Ministério da Justiça n.º 395, páginas 656 e 657.> [16] A citação é retirada de um despacho do Tribunal Judicial de Torres Vedras que segue esta orientação, o qual foi apreciado pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 439/2002, publicado no Diário da República, II Série, n.º 276, de 29 de Novembro de 2002. [17] Do Processo Penal Preliminar citado na nota 13, página 348. [18] Nesta linha de pensamento, escreve Jorge de Figueiredo Dias: «os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição» (Direito Processual Penal, Primeiro Volume, Coimbra Editora Ld.ª, reimpressão de 1981, página 133; itálicos no original). [19] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Março de 1961, publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.º 105, páginas 439 e ss. [20] Acórdão da Relação de Coimbra de 31 de Março de 1993, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano XVIII (1993), Tomo II, páginas 65 e 66. [21] Para uma listagem da jurisprudência portuguesa mais recente sobre a interpretação a dar à expressão indícios suficientes vejam-se o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 609/99, de 10 de Novembro, publicado no Diário da República, II Série, n.º 44, de 22 de Fevereiro de 2000, bem como o relatório de mestrado apresentado em Setembro de 2003 na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa com o título Que Indícios? (Um Estudo sobre o Uso da Expressão, sua Correcta Interpretação e os Corolários desse Entendimento), da autoria de GRACINDA SALLES RODRIGUES, a quem agradeço a forma pronta com que me facultou o acesso ao mesmo. O relatório inclui, em anexo, uma extensa lista de jurisprudência que se debruça sobre o tema. [22] Neste sentido vejam-se Frederico de Lacerda da Costa Pinto, Direito Processual Penal – Curso Semestral, fascículos publicados pela AAFDL, Lisboa, 1998, página 129 e o Acórdão da Relação de Lisboa de 14 de Março de 1990, citado na nota 15. [23] É com esse sentido que o mesmo adjectivo é usado, por exemplo, no n.º 4 do artigo 487.º. [24] Neste sentido se pronuncia, por exemplo, o Acórdão da Relação de Coimbra de 31 de Março de 1993, citado na nota 20. [25] A mesma posição é defendida pelo Tribunal Constitucional no seu Acórdão n.º 439/2002, citado na nota 16. Sobre este tema, veja-se também a declaração de voto de Antero Alves Monteiro Dinis junta ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 226/97, publicado no Diário da República, II Série, n.º 145, de 26 de Junho de 1997, bem como Germano Marques da Silva, Do Processo Penal Preliminar citado na nota 13, páginas 359 e ss. [26] Publicado no Diário da República, I-A Série, n.º 72, de 26 de Março de 1993. [27] Está aliás expressamente consagrada no n.º 2 do artigo 308.º. [28] Veja-se, por todos, João de Castro Mendes, Do Conceito de Prova em Processo Civil, Ática Limitada, Lisboa, 1961, página 293 e ss. [29] Neste sentido veja-se Figueiredo Dias, Direito Processual Penal citado na nota 18, páginas 132 e 133. [30] Do Conceito de Prova citado na nota 28, página 321. [31] Como salientou José Osório, «na apreciação do justo grau de probabilidade está o segredo do acerto da decisão» (Julgamento de Facto, publicado na Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano VII – 1954, página 218). [32] Do Conceito de Prova citado na nota 28, página 322, nota 23. [33] Esta tese parece ter acolhimento no n.º 3 do artigo 301.º, que aparentemente confere à prova indiciária uma natureza menos exigente que a atribuída à prova em audiência de julgamento. Neste sentido se pronuncia Germano Marques da Silva, Do Processo Penal Preliminar citado na nota 13, página 348. Mas, como normalmente acontece com os argumentos meramente literais, pode fazer-se outra leitura da norma em questão, conjugando-a com as finalidades da instrução definidas no artigo 286.º. [34] A expressão é de Gil Moreira dos Santos, O Direito Processual Penal, Edições Asa, 2003, página 328. [35] Sobre a distinção entre prova e verosimilhança em processo civil, veja-se PIERO Calamandrei, Verità e Verosimiglianza nel Processo Civile, publicado na Rivista di Diritto Processuale, Volume X (1955), Parte I, páginas 164 e ss. [36] Veja-se, por exemplo, o Acórdão da Relação de Évora de 15 de Outubro de 1991, sumariado no Boletim do Ministério da Justiça n.º 410, página 903; no mesmo sentido se pronuncia o despacho do Tribunal Judicial de Torres Vedras citado na nota 16. [37] Veja-se a expressiva declaração de voto de Bravo Serra junta ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 439/2002, citado na nota 16, na qual se confessa alguma perplexidade na compatibilização entre o despacho de pronúncia e o princípio da presunção de inocência. [38] Esta expressão foi recentemente utilizada por Saldanha Sanches num artigo de opinião publicado na edição do semanário Expresso de 11 de Outubro de 2003. [39] Neste sentido vejam-se Rui Patrício, O Princípio da Presunção de Inocência do Arguido na Fase do Julgamento no Actual Processo Penal Português, AAFDL, Lisboa, 2000, páginas 34 e ss, e o Acórdão da Comissão Constitucional n.º 168, de 24 de Julho de 1979, publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.º 291, página 346. [40] Neste sentido se pronuncia Gracinda Rodrigues, Que Indícios citado na nota 21, página 16. [41] Dúvidas razoáveis que o despacho de pronúncia deve demonstrar que ultrapassou, como salienta o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 439/2002, já citado na nota 16. [42] Sumários de Processo Criminal (1967-68), Coimbra, 1968, página 39 (aspas no original). [43] Autor e obra citados na nota anterior, páginas 53 e 54. [44] O próprio conceito normativo da expressão indícios suficientes deve ser entendido como uma manifestação do princípio da presunção de inocência. Tem sido esse também o raciocínio do Tribunal Constitucional, nomeadamente nos já mencionados Acórdãos n.ºs 439/2002 e 226/97 (citados nas notas 16 e 25, respectivamente). [45] Sempre que o Ministério Público receba uma denúncia que respeite os requisitos previstos no artigo 246.º e mencione factos que constituam um crime público, a obrigatoriedade de abrir de imediato um inquérito decorre do n.º 2 do artigo 262.º. Mas o problema já se poderá colocar quando a denúncia não cumpra os mencionados requisitos (uma carta anónima, por exemplo) ou quando houver dúvidas quanto à relevância criminal dos factos nela relatados ou quanto à legitimidade do Ministério Público no caso concreto. [46] De salientar que o artigo 251.º do CPP de 1929, após a reforma de 1972, passou a definir arguido como «aquele sobre quem recaia forte suspeita de ter perpetrado uma infracção cuja existência esteja suficientemente comprovada». Tal definição foi omitida no actual CPP. [47] Exemplos de outras possíveis avaliações indiciárias com particular relevo na fase preparatória do processo penal: a pressuposta na decisão de proceder a revistas e buscas (artigo 174.º); a de saber se o crime está imputado ao agente, para efeitos de aplicação de determinadas medidas de coacção menos gravosas (artigos 197.º a 199.º). [48] Vejam-se exemplos dessa «desorientação» em Pedro Teixeira de Sá, Fortes Indícios de Ilegalidade da Prisão Preventiva, publicado na Scientia Ivridica, Tomo XLVIII (1999), n.º 280/282 (Julho/Dezembro), página 400, nota 36. [49] Assim o faz Pedro Teixeira de Sá, Fortes Indícios citado na nota anterior, páginas 400 e ss; no mesmo sentido se pronuncia Gracinda Rodrigues, Que Indícios? citado na nota 21, página 26. [50] Daí que faça todo o sentido o reexame periódico obrigatório dessa avaliação indiciária, pelo menos enquanto não for deduzida acusação. Antes da acusação, o reexame obrigatório, actualmente apenas previsto para a prisão preventiva, deveria ser alargado às restantes medidas de coacção que pressupõem a verificação de um juízo indiciário qualificado. [51] Os indícios que fundamentam a acusação podem não estar ainda todos recolhidos. Mas os que já se recolheram devem ser quantitativa e qualitativamente suficientes para formar uma convicção de probabilidade de futura condenação. Daí que me pareçam exagerados os prazos que o CPP prevê para a duração máxima das medidas de coacção mais graves até ser deduzida acusação (6, 8 ou 12 meses, consoante a gravidade do crime e a complexidade do processo – artigos 215.º e 218.º). [52] Esta solução está implícita no artigo 40.º. A referência nele contida à presidência do debate instrutório, porém, deveria, no bom rigor dos princípios, reportar-se à prolação da decisão instrutória. Não é por presidir ao debate instrutório que o juiz faz perigar a confiança pública na sua imparcialidade, mas sim por, depois de ter encerrado esse debate, proferir a decisão instrutória, avaliando formalmente a suficiência dos indícios. [53] Mais controversa se revela a questão de saber se a formulação de outros juízos indiciários, nomeadamente a afirmação da existência de fortes indícios como pressuposto da emissão de mandado de detenção ou de aplicação de medida de coacção grave, deve, ou não, ser considerada um impedimento para o julgamento. Não é, porém, este o lugar próprio para aprofundar o assunto. Para uma síntese da abundante jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre este tema veja-se o recente Acórdão n.º 297/2003, de 12 de Junho, publicado no Diário da República, II Série, n.º 229, de 3 de Outubro de 2003. [54] Sobre os fundamentos dos impedimentos do juiz e da necessidade de garantir a confiança geral na objectividade da justiça veja-se, por todos, Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal citado na nota 11, Volume 1.º, páginas 135 e ss. Pelo que fica defendido resulta clara a minha discordância relativamente à interpretação fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça no Assento n.º 4/93, citado na nota 26, cuja solução contrariava o n.º 5 do artigo 32.º da Constituição. Em sentido semelhante, veja-se Ana Isabel Amado dos Santos Baltazar Nunes, Acusação Manifestamente Infundada: Análise do artigo 311.º, n.º 2, alínea a), do CPP. O Juízo Probatório na Formulação da Acusação, relatório de mestrado apresentado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa em 1998. [55] Num plano de direito a constituir, seria porventura preferível prever a abertura obrigatória de instrução nos crimes particulares, sempre que o Ministério Público, na avaliação prevista no n.º 3 do art. 285.º, entendesse ser infundada a acusação particular. [56] A defesa desta posição pode ver-se, por exemplo, no despacho de 1 de Julho de 2002 do Tribunal Judicial de Cuba, que foi objecto de recurso para o Tribunal Constitucional, o qual, pelo Acórdão n.º 276/2003, publicado no Diário da República, II Série, n.º 229, de 3 de Outubro de 2003, concluiu pela não inconstitucionalidade da norma constante da alínea a) do n.º 2, conjugada com o n.º 3, do artigo 311.º. No mesmo sentido se havia já pronunciado o mesmo Tribunal pelo Acórdão n.º 101/2001, de 14 de Março, publicado no Diário da República, II Série, n.º 131, de 6 de Junho de 2001. Considerando a não obrigatoriedade da fase instrutória como compatível com a Constituição veja-se também o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 610/96, de 17 de Abril, publicado no Diário da República, II Série, n.º 155, de 6 de Julho de 1996. [57] E será compatível com a Constituição uma solução que, tal como sucedia na vigência do CPP de 1929, preveja a comprovação judicial dos indícios, mesmo quando o arguido a não tenha requerido? O Ministério Público chegou a defender que não, a propósito de um tema controverso – o dos efeitos da decisão instrutória sobre os co-arguidos não requerentes da instrução. O Tribunal Constitucional, porém, não lhe deu razão (veja-se o Acórdão n.º 226/97, citado na nota 25). E julgo que com razão. O princípio da iniciativa processual das partes não é uma exigência constitucional. O que já não se revela compatível com a Constituição é defender, para remediar a falta de controlo judicial sobre a avaliação indiciária nos casos em que não seja requerida instrução, um reforço dos poderes do juiz de julgamento no momento do saneamento do processo, atribuindo ao julgador um papel que apenas pode ser desempenhado pelo juiz de instrução. [58] A redacção do n.º 3 do artigo 64.º, porém, permite a dúvida sobre se a obrigatoriedade de nomeação de defensor se aplica aos crimes particulares, nomeadamente nos casos em que a acusação não é deduzida pelo Ministério Público, mas apenas pelo assistente. Os argumentos avançados anteriormente levam-me a defender essa obrigatoriedade.A reforma de 1998 nesta matéria revela ainda uma outra lacuna: não esclarece quais as consequências do incumprimento da obrigação de nomear defensor ao arguido antes de este ser notificado da acusação. Na verdade, o regime da mera irregularidade, que aparentemente seria a solução a defender face ao silêncio da lei (por força do n.º 2 do artigo 118.º), não se coaduna, em minha opinião, com a gravidade do vício em causa. A situação deveria ter sido equiparada à prevista na alínea c) do artigo 119.º.
Texto publicado em «O Direito» em 26 de Janeiro de 2004.