Professores

Gostava de encontrar em Lisboa, alunos tão preparados

Professor da disciplina de «Introdução ao Estudo do Direito», encarregue das aulas práticas no ano lectivo de 1988/1989, e regente de «Teoria Geral do Direito Civil» no ano lectivo de 1989/1990 do Curso de Direito, Arménio Ferreira não renovou o seu contrato no ano lectivo em curso.

Mestre em Direito, pertence aos quadros da Faculdade de Direito de Lisboa e referindo-se à preparação dos alunos do Curso de Direito de que foi professor considerou:

«O Direito» — Quais os motivos que o levaram a aceitar dar aulas no Curso de Direito da Universidade da Ásia Oriental?

Arménio Ferreira — O projecto inicial tal como o Professor Oliveira Ascenção mo referiu, era aliciante… envolvia uma dimensão cultural prometedora pelo envolvimento local que, em função dela, se programava.

«D.» — E porque não está Interessado em continuar?

A.F. — A Faculdade de Lisboa, a que pertenço, deixou de orientar, ou sequer apoiar, o Curso. As razões decorrem desse dissídio.

«D.» — Deu aulas de Introdução ao Estudo do Direito e Teoria Geral do Direito Civil na UAO. Quais foram as outras disciplinas que já leccionou em Lisboa e qual a disciplina que gostou mais de leccionar?

A.F. — Como monitor, acompanhei Ciência Política e Direito Constitucional; depois, como assistente estagiário, Direito da Economia I; finalmente, como Assistente Convidado, dei aulas de Teoria Geral… já sei que tenho em Lisboa Direitos Reais, para o 2.º semestre.

A de que gostei mais… de certo que Teoria Geral… é do meu feitio amar sempre mais a actual, do que a próxima ou a precedente.

«D.» — Está satisfeito com os resultados dos seus alunos?

A.F. — Com os resultados e com os alunos. Em Macau, a dimensão contida das turmas facilita a aproximação pedagógica e a humanização do trabalho docente. O nível geral dos alunos que estão agora no 3.º ano, que são os que directamente conheci, é bastante bom… incluindo os que ainda não dominam perfeitamente o português, porque a sua dedicação supriu bem essa dificuldade.

«D.» — Comparando os alunos de Macau e os de Lisboa o que tem a dizer, quanto à sua preparação e nível?

A.F. — Julgo que respondo à sua pergunta dizendo-lhe que gostaria de encontrar agora em Lisboa, no 3.º ano a que vou dar aulas, alunos tão preparados.

Há no entanto, um aspecto de ordem universitária que em Macau, por falta de tradição e ambiente académico, precisa de ser fomentado; o estudo do Direito vive fundamentalmente da pesquisa e reflexão individual, para além do âmbito restrito das sebentas; nisso, Lisboa leva vantagem mas, tenho que reconhecer que lá há muitos mais estímulos e meios.

«D.» — Quais os aspectos positivos e negativos do funcionamento do Curso durante os primeiros dois anos?

A.F. — O principal aspecto positivo foi o do próprio funcionamento sem interrupções e sem quebra de nível, superando o aspecto negativo da instabilidade, no segundo ano, que a todos perturbou.

«D.» — Acha que neste momento os problemas do Curso estão mesmo resolvidos?

A.F. — A incompleição estrutural do Curso mantém-se e, os principais aspectos da sua refracção pela UAO, dificilmente terão solução no quadro em que até agora se tem tentado resolver essa questão, sem uma degradação penosa de especificidades essenciais.

Mas, neste momento, a tentativa, embora expedita, de implantação de um novo projecto, cujos contornos não conheço para comentar, deixam-me pelo menos a esperança que melhores dias virão. E, o empenhamento directo da Faculdade de Coimbra é indicador de que se continuará a lutar pelo nível científico e pela institucionalização universitária do Curso. O novo projecto vai precisar ainda dum certo percurso porque, como é sabido, há caminhos que só se fazem ao ritmo do andar; o Curso não poderá voar sem saber correr.

«D.» — Terminado o seu contrato com a Fundação Macau, o que vai fazer? regressar definitivamente a Portugal? Ou vai permanecer em Macau?

A.F. — Vou regressar a Lisboa… «definitivamente» é advérbio que não cultivo; até, porque sendo celibatário, nunca precisei de prometer nada definitivamente.

«D.» — Em que condições é que julga que a Faculdade de Direito de Lisboa venha novamente a colaborar e participar no Curso?

A.F. — Não tenho dados para julgar; nem presumo.

«D.» — Gosta de Macau? Quais os seus encantos e os seus defeitos?

A.F. — Gosto agora mais à partida do que gostei à chegada.

De entre os encantos, destaco a sua matriz histórico-cultural única… mas não a embandeiro tão empoladamente como aqueles que dela fazem a garantia dum futuro autónomo; há ainda, na sociedade macaense, muitos elementos sócio-culturais sincréticos, com virtualidade, e mesmo apetência, para uma síntese fundadora, mas que só a longo prazo dela podem ser fonte… se a envolvência histórica lhe der azo.

Quanto aos defeitos, referirei o défice de institucionalização da vida política e administrativa… julgo que é um dos problemas mais difíceis porque existe uma natural tendência para o desvio casuístico, nos processos de pequena escala; isto é, nas sociedades de muito reduzida dimensão, como a de Macau, o efeito contracturante das articulações compactadas, tende a fazer acumular viscosidade, gerando aderências perversas em todas as instâncias que não recortem com suficiente pormenor o relativismo social. E isso pode comprometer a dimensão valorativa do direito vigente, sempre que este se arrogue não o reflexo do vivido mas o projecto de agir sobre ele.

É claro que a pequena dimensão da sociedade macaense poderia ter gerado soluções inspiradas nalgumas virtualidades de democracia directa… mas isso, só poderia ter ocorrido num contexto teleologicamente orientado e, essa perspectiva nunca teve apoio político central nem força genética local.

Há também problemas de ambiente, quer ao nível do ordenamento físico quer ao nível da salubridade, e, sobretudo, problemas de ordem social, que carecem duma atenção muito cuidada e de medidas de correcção, nalguns pontos inadiáveis.

«D.» — Na sua óptica quais são as prioridades das prioridades para a Administração no período da transição?

A.F. — Parece-me ser urgente aumentar a operosidade no terreno das políticas sociais e culturais, fazendo-as pelo menos tão arrojadas como a dinâmica dos grandes empreendimentos em curso e tão estruturantes internamente como se anunciam ser, externamente, algumas opções de perfil duvidoso. A singularidade da pujança económica sem uma envolvência sócio-cultural própria, fará do Território, a prazo, uma presa ingénua de bárbaros cobiçosos. Macau precisará de intercâmbio cultural e científico, mas simultaneamente tem que gerar internamente mais substância cultural específica que dê propósito à troca.

«D.» — Acredita em «um país dois sistemas»? Acredita que o Direito Português vai perdurar em Macau após 1999?

A.F. — Nada me faz suspeitar da boa fé dos negociadores dessa promessa. E ainda que outras experiências históricas nos revelem fenómenos de convergência segundo o peso recíproco dos sistemas justapostos, o que neste caso seria vitimador para Macau, eu acredito na translação, oxalá que pacífica, da República Popular para um Estado de Direito, antes da significativa degradação do sistema em Macau. E, nessa altura, se aqui tivermos deixado um sistema jurídico de raiz, implantado em profundidade, com bons juristas locais capazes de o fazerem evoluir sem adulteração, prevejo até a possibilidade de alguma influência sobre a reconstrução do sistema jurídico chinês… influência só limitada pela escassez de juristas macaenses bilingues que, então, serão sempre poucos.

Creio, portanto, que o Direito Português vai perdurar mesmo para além da língua, com um fôlego de sobrevivência que impressionará os nossos bisnetos.

«D.» — Qual é o seu hobby? Porque não participou nos convívios dos alunos do Curso?

A.F. — Geralmente aproveito os tempos livres para conversar… com a televisão rigorosamente desligada; alguma leitura também.

Convivi muitas vezes com os alunos. Não sinto é especial apetência pelos convívios formais… se quiser pode mesmo escrever que se trata de uma rebeldia pacífica face às afectações potenciadoras de afinidades, conjunturais ou não porque a questão não será essa, mas mais institucionais que electivas.

Entrevista publicada na edição de «O Direito» de Maio de 1991.

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