Qual o tribunal competente?
Por Moreira da Silva
Texto publicado na edição de ‘O Direito’ de Março de 1991. O autor, então aluno do 3.º ano do Curso de Direito.
Este trabalho aparece no âmbito das tarefas solicitadas aos alunos do 3.º ano do Curso de Direito de Macau.
De tema livre, embora circunscrito ao âmbito do Direito Administrativo de Macau — em cuja cadeira se insere — interessou-nos o problema da competência em matéria administrativa, dada a dificuldade que parece existir em determinar-se qual o órgão jurisdicional a quem acabe julgar as denominadas acções administrativas que visem determinar a responsabilidade extra-contratual do Território e dos institutos públicos, bem como os pedidos de indemnização relativos aos seus actos de gestão, existindo localmente um Tribunal Administrativo.
Trabalho feito sob a perseguição do calendário académico de um trabalhador estudante, não poderá ter outra pretensão que não seja o do simples alinhamento de algumas notas de reflexão.
a) Pressupostos:
Nunca vigoraram no Ultramar Português, pois nunca aí foram aplicados:
— O Código Administrativo;
— A Lei Orgânica do Supremo Tribunal Administrativo;
b) A orgânica Administrativa Ultramarina e a Metropolitana
Face aos pressupostos apontados, poderá afirmar-se que existia uma diferença substancial entre as duas ordens jurídicas em matéria de competência:
1. No Ultramar pontuava a Reforma Administrativa Ultramarina (RAU — 1933), a Lei n.º 2.119, de 24/7/63 e o Regimento do Conselho Ultramarino (Decreto n.º 39908) e ainda, mais tarde, a Lei Orgânica do Ultramar (Lei n.º 5/72 de 23 de Junho).
Da leitura dos invocados diplomas, podem retirar-se as seguintes conclusões:
1.1. Os Tribunais Administrativos das Colónias tinham a sua competência voltada, essencialmente, para o contencioso de anulação — artigo 661.º e segs. da RAU — dela se excluindo, designadamente, os recursos dos actos dos governadores — artigo 661.º, a), 1.º — e as acções administrativas que não constam do seu elenco. Ver, ainda, a Base LXV da Lei Orgânica do Ultramar.
1.2. O Conselho Ultramarino, com a sua competência definida na Base LXV, n.º 3, alíneas a) e b) e Base LXVI da Lei Orgânica do Ultramar e artigo 4.º do Regimento do Conselho Ultramarino. Este órgão, funcionava como Instância de Recurso dos Tribunais Administrativos do Ultramar e competia-lhe, ainda, julgar os recursos dos actos dos governadores-gerais ou de província, dos secretários provinciais e do secretário geral.
1.3 Os tribunais comuns a quem, por força da sua competência residual prevista no artigo 66.º do Código de Processo Civil, era cometida a competência para acções administrativas, já que nenhum foro especial estava previsto para estas1.
1 Assim entendeu a jurisprudência da época. Ver, entre outros, Ac. do Conselho Ultramarino de 10/2/66, in Diário do Governo, 2.ª série, de 20/4/66; Ac. do STJ de 22/7/69, Bol. 189, pág. 238; Acórdãos da Relação de Lourenço Marques de 29/10/68 e 21/10/69, vol. XXXIV, pág. 306 e vol. XXXIII, pág. 410, respectivamente, de «Acórdãos da Relação de Lourenço Marques» e Jurisprudência do Conselho Ultramarino, designadamente Acórdãos de 15/7/65 e 14/4/61, ver «Acórdãos Doutrinários do Conselho Ultramarino», 1965, pág. 251 e 1961, pág. 355, respectivamente.
2. No Portugal Metropolitano a organização era algo diversa, já que prescrevia a existência de um outro órgão, as auditorias administrativas, a quem, nos termos do artigo 17.º da LOSTA, era cometida a competência para julgar acções.
c) O Tribunal Administrativo de Macau
Porque integrado na orgânica ultramarina, era-lhe aplicado tudo quanto foi dito supra, em b) 1. Note-se, até, que este tribunal tem o seu regulamento consagrado no Diploma Legislativo Provincial n.º 43, de 17/8/1927 (anterior à RAU) em cujo artigo 7.º eram definidas as suas competências, já talhadas na linha das que a RAU viria a consagrar.
d) A descolonização e a nova orgânica administrativa ultramarina
Com a descolonização, impôs-se ao legislador a tarefa de «… ajustar a divisão judicial dos territórios ultramarinos às realidades decorrentes do processo de descolonização em curso» — como se vê do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 795/74, de 31 de Dezembro, publicado em Macau no B.0. n.º 5 de 1975.
Neste diploma Macau passa a pertencer ao Círculo Judicial de Lisboa (antes pertencia a Lourenço Marques), situação que vem a ser mantida pelo Decreto-Lei n.º 269/78, de 1 de Setembro.
Surge, então, o problema de saber-se se a auditoria Administrativa de Lisboa passou a ter competência material para as acções administrativas relativas a Macau, face ao artigo 798.º do Código Administrativo, uma vez que a sua jurisdição se estendeu àquele território.
A resposta parece-nos dever ser negativa:
1. Em Macau continuava a não vigorar o Código Administrativo — cujas normas regulavam a competência e funcionamento das auditorias administrativas.
2. Também ai continuava a não vigorar a LOSTA, pelo que não seria aplicável ao território o seu artigo 17.º, que atribui às auditorias administrativas a competência para as acções administrativas.
3. A RAU mantém-se em vigor e, bem assim, agora também a Lei Orgânica do Ultramar, mantendo-se incólume o regime ultramarino.
Por outro lado, como se diz em sentença do Tribunal Administrativo de Macau de 21/12/87 a propósito desta questão, com a integração de Macau na Auditoria Administrativa de Lisboa tratou-se «de garantir o posicionamento da comarca dentro da organização judiciária portuguesa, nomeadamente para efeitos administrativos e de recursos dentro da hierarquia dos tribunais comuns, como se depreende do texto, e não atribuir competência material à Auditoria de Lisboa.
Aliás — acrescenta-se na mesma decisão — se assim fosse, poderia até defender-se que toda a competência material do Tribunal Administrativo de Macau passaria para a Auditoria de Lisboa por revogação, nessa parte da RAU».
Mas diz-se ainda mais nessa sentença: «(…) porque vai nitidamente contra o espírito de um legislador de “descolonização”, como o de 1974 e 1975, vir atribuir a um Tribunal metropolitano, afastado de Macau, competência material para o julgamento de um tipo de acções (…) até então considerado como pertencente ao foro comum, embora pela via residual do artigo 66.º do Código do Processo Civil».
É, pois, de concluir que da publicação do Decreto-Lei n.º 795/74 e a consequente inclusão de Macau no Círculo Judicial de Lisboa, não resultou a atribuição da competência em matéria de acções à auditoria administrativa de Lisboa visando esta medida, apenas, manter a comarca de Macau sob a hierarquia dos tribunais portugueses, designadamente em sede de recurso, após a conclusão do processo de descolonização.
Logo de seguida à publicação do Decreto-Lei n.º 795/74, entra em vigor no Território o Decreto-Lei n.º 125/75, de 12 de Março (B.O. n.º 14, de 1975), cuja novidade, relativamente a Macau e à parte que nos interessa, consiste na extinção do Conselho Ultramarino — art. 1.º — cuja competência passa para o Supremo Tribunal Administrativo — cfr. arts. 3.º e 4.º.
Temos, portanto, ainda uma configuração idêntica à apontada supra em b), com a variante de, no lugar do Conselho Ultramarino, aparecer o STA.
e) A nova orgânica trazida pelo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais
O ETAF (Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril, B.0. n.º 24, de 9/6/1984) vem estabelecer uma nova orgânica para os Tribunais Administrativos e Fiscais, fixando «em termos precisos a natureza e os limites da jurisdição administrativa e tributária e procedendo “a uma nova repartição de competência entre os Tribunais Administrativos de 1.ª instância — Tribunais de Círculo».
É justificado, até, por imperativos constitucionais.
De acordo com o seu art.º 1.º são tribunais administrativos e fiscais, designadamente:
— o Supremo Tribunal Administrativo;
— os Tribunais Administrativos de Círculo;
— o Tribunal Administrativo de Macau.
1. Supremo Tribunal Administrativo
Tem a sua sede em Lisboa e jurisdição em todo o território nacional e no território de Macau — art.º 14.º, n.º 1.
A sua competência acha-se definida no artigo 26.º, sendo de salientar, relativamente a Macau, o facto de se manter como instância de recurso das decisões do Tribunal Administrativo local – n.º 1, al. a). Exerce, porém, ainda outras competências relativamente ao Território — cfr. designadamente as als. c) e g) do n.º 1 do preceito citado.
2. Tribunais Administrativos de Círculo
Têm sede em Lisboa, Porto e Coimbra e a sua área de jurisdição é a fixada no mapa VII, anexo ao Decreto-Lei n.º 374/84, de 29 de Novembro, nele não se incluindo Macau.
A sua competência material vem definida no art.º 51.º. Do confronto deste preceito com o art.º 815.º e segs. do Código Administrativo e bem assim da análise dos artigos 109.º e 111.º do ETAF, fica-nos a certeza de que são os sucessores das auditorias administrativas.
Mas, como concluíramos já, não tendo tido aquelas qualquer jurisdição, em matéria de acções administrativas, no Território de Macau, também os Tribunais de Círculo a não podiam obter agora por «transferência» delas.
3. Tribunal Administrativo de Macau
O ETAF nada diz acerca da sua competência. Pelo contrário, limita-se a apontar — art.º 104.º — que a «organização, competência e funcionamento do Tribunal Administrativo de Macau regem-se por legislação própria».
É bem patente, assim, que o ETAF não quis intrometer-se mais do que o estritamente necessário na ordem jurídica do Território, respeitando os princípios da sua cada vez mais afirmada autonomia2 e deixando intocáveis as normas contidas na RAU e Lei Orgânica do Ultramar.
2 Após a Lei n.º 13/90, de 10 de Maio, que aprovou as alterações ao Estatuto Orgânico de Macau, esta autonomia é tanto mais reafirmada quanto, no art.º 51.º, n.º 1.º, do EOM, se consagrou a própria autonomia da organização judiciária do Território.
É, pois, ao ordenamento jurídico do Território que cabe, no âmbito da sua legislação própria, determinar as matérias que hão-de ser submetidas à jurisdição do tribunal administrativo bem como disciplinar a sua organização e forma de funcionamento.
f) O regime supletivo do artigo 57.º do ETAF
Resta, finalmente, analisar-se se às acções em causa seria aplicável o regime supletivo do art.º 57.º do ETAF, atribuindo a competência ao Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa.
Pelo que acabamos de dizer a resposta não pode deixar de ser negativa3.
3 Contra esta posição a sentença de 14/12/1987 do Tribunal Judicial de Macau, Proc. 333/87, 3.º Juízo.
De facto, se o fizéssemos, não só se iria provocar uma alteração da área de jurisdição deste Tribunal — que o legislador pretendera fixar em «termos precisos» — estendendo-se até Macau ao arrepio do que vem definido no citado mapa VII anexo ao Decreto-Lei n.º 274/84, como, por outro lado, se iria esgrimir contra a própria autonomia do ordenamento jurídico do Território cuja legislação tomara rumo diverso e se mantém em vigor por não ter sido revogada — citado art.º 104.º do ETAF.
g) Competência residual dos tribunais comuns
Face ao exposto não nos resta outra solução que a de lançarmos mão, como sempre tem sido feito, da competência residual dos tribunais comuns4, nos termos do art.º 66 do Código de Processo Civil, dado que, no ordenamento jurídico vigente no Território não é atribuída competência para apreciação das acções adminsitrativas a qualquer outro tribunal (seja o Tribunal Administrativo de Macau, seja qualquer outro tribunal português).
4 Neste sentido veja-se o Acórdão do STA, Tribunal de Conflitos, de 13 de Dezembro de 1990, ainda não publicado.
Podemos, assim, esquematizar a presente situação:
1. O Tribunal Administrativo de Macau mantém a sua competência definida pelos artigos 661.º e seguintes da RAU e Base LXV da Lei Orgânica do Ultramar (citada Lei 5/72, mantida em vigor pela Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de Setembro), essencialmente voltada para o contencioso de anulação.
2. O Supremo Tribunal Administrativo exerce a sua jurisdição no Território, nos termos definidos pelo art.º 26.º do ETAF — ver, também, art.º 19.º, n.º 5.º, do EOM.
3. Os tribunais comuns, nos termos do art.º 66.º do Código de Processo Civil, detêm a competência residual para apreciação dos demais conflitos administrativos, v.g. as acções administrativas que visam efectivar a responsabilidade extracontratual do Território e dos institutos públicos e para os pedidos de indemnização relativamente aos seus actos de gestão.
Artigo publicado na edição de “O Direito” de Março de 1991