Doutrina

O poder regulamentar da administração do Território

Por Vong Hin Fai

Texto publicado na edição de ‘O Direito’ de Março de 1991. O autor, então aluno do 3.º ano do Curso de Direito, é, actualmente, advogado em Macau.

1. Espécies principais de actos normativos da administração

1. Quanto ao conteúdo dos actos normativos[1], não se pretende, através da presente reflexão, discutir a incompatibilidade da enumeração taxativa consagrada no artigo 115.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), com a força obrigatória geral das decisões do Tribunal Constitucional e dos outros tribunais[2].

Independentemente desta incompatibilidade, é certo que a Assembleia Legislativa e o Governador são os entes principais de quem emanam os actos normativos cuja fonte institucional não é aquela que foi prevista no artigo 72.º do Estatuto Orgânico de Macau (EOM).

2. Nos termos do EOM[3], o Governador tem poderes normativos não só no domínio da função legislativa (artigos 5.º e 13.º do EOM), mas também no domínio da função executiva ou administrativa (artigos 6.º e 16.º, n.º 1, c) e n.º 2.º do EOM.

Só nos interessam agora os poderes normativos no plano da função administrativa — os poderes regulamentares —, para que as matérias a abordar em seguida não se desviem do tema deste trabalho.

II. O poder regulamentar como um dos «outputs» jurídicos da administração

3. Tendo em conta a referida análise do poder regulamentar segundo o critério de actos normativos, cumpre-nos agora estudar esta realidade em relação ao desempenho da função administrativa pelo Governador. Numa perspectiva doutrinária, costuma-se distinguir como formas principais dessa função:

— Regulamentos administrativos: são as normas jurídicas emanadas por uma autoridade administrativa no desempenho do poder administrativo[4], ou seja, são os produtos resultantes de exercício do poder regulamentar por parte da Administração para completar e desenvolver certas normas jurídicas preexistentes, facilitando-se, pois, a sua aplicação.

— Actos administrativos: o seu estudo ocupa um lugar importante no Direito Administrativo em virtude da sua influência quotidiana e imediata sobre os particulares — pessoas singulares ou colectivas —, por um lado, e sobre os trabalhadores da função pública, por outro. Conforme definição do Professor Marcello Caetano, o acto administrativo é uma «conduta voluntária de um órgão da Administração que, no exercício de um poder público e para prossecução de interesses postos por lei a seu cargo, produz efeitos jurídicos num caso concreto»[5].

Para além das definições do acto administrativo verificadas nas diversas obras ou manuais científicos, o DL n.º 23/85/M de 23 de Março, que diz respeito ao regime jurídico dos actos administrativos, apresenta-nos também, no artigo 1.º, uma definição.

— Contratos administrativos: às vezes as autoridades administrativas não definem normas gerais e abstractas, nem actuam de modo unilateral sobre casos concretos, mas sim colaborando com os particulares, na base de um acordo de vontade que se designa por contrato administrativo[6].

— Operações materiais: são as actividades realizadas pela Administração, as quais não provocam qualquer alteração relevante na ordem jurídica.

Como indicamos na parte final do ponto (2), incidiremos a nossa análise sobre os regulamentos administrativos.

III. As funções dos regulamentos e suas classificações na óptica de critérios diferentes

4. Do referido foi já abordado, muito sucintamente, a natureza dos regulamentos administrativos. Cumpre-nos assim estudar em seguida as suas funções, entre as quais se destacam:

— «Assegurar a execução de uma lei ou decreto-lei cujas normas careçam de integração por via regulamentar, através do preenchimento de espaços que o legislador, por razões de flexibilidade, de especialidade, de especialização técnica ou de actualização periódica, deixou propositadamente em branco;

— Assegurar a melhor execução de uma lei ou decreto-lei que não carecem de integração por via regulamentar, mas cuja aplicação não deve ficar dependente de processos e modos de agir instáveis, incertos e desconhecidos do público;

— Assegurar a execução uniforme de uma lei ou decreto-lei que deva ser aplicado por vários departamentos ou por vários organismos dependentes de um mesmo departamento.

Em qualquer destas três hipóteses, os regulamentos do Governo desempenham uma função instrumental e subordinada em relação ao conteúdo de um acto legislativo anterior, sendo-lhe vedado não só modificar alguma das suas normas, como ainda desviar-se do seu sentido geral ou comprometer a sua realização prática»[7].

5. De entre os vários critérios de classificação, parece-nos que a sua dependência face à lei, projecção da sua eficácia, âmbito da sua aplicação e forma são os melhores para apurar as espécies dos regulamentos existentes na ordem jurídica do Território.

6. Quanto ao primeiro critério, os regulamentos foram sempre divididos tanto pela doutrina como pela legislação[8] em regulamentos complementares ou de execução e os independentes ou autónomos.

8 Quanto aos regulamentos independentes, ver aparte final do artigo 115.º, n.º 6 da CRP e artigo 5.º, n.º 7 do DL n.º 47/90/M de 20 de Agosto; quanto aos regulamentos complementares, ver o n.º 6 deste artigo.

Os primeiros são aqueles que desenvolvem ou aprofundam a disciplina jurídica constante de um acto legislativo pré-existente, facilitando, pois, a sua aplicação aos casos concretos. No ordenamento jurídico português, eles devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar[9]. No Território, existe a mesma exigência legal constante do artigo 5.º, n.º 6 do DL, n.º 47/90/M de Agosto.

Os segundos são provenientes das autoridades administrativas que actuam no exercício de competência atribuída por lei, para assegurar a realização das suas atribuições específicas, não tendo por objectivo desenvolver ou aprofundar uma determinada lei.

Segundo alguns autores, os regulamentos independentes são «expressão da autonomia com que a lei quis distinguir certas entidades públicas, confiando na sua capacidade de autodeterminação e no melhor conhecimento de que normalmente desfrutam acerca das realidades com que têm de lidar»[10].

Em virtude dos seus aspectos externos e decisivos que se traduzem na prática, por uma importância superior à dos regulamentos de execução, existem certas limitações importantes à sua elaboração:

— Não podem as normas incidir sobre matérias abrangidas pela reserva de lei — em sentido restrito, são as matérias constantes dos artigos 167.º e 168.º da CRP e do artigo 31.º, n.º 2 e n.º 3 do EOM; em sentido amplo, são as matérias que devem ser reguladas por acto legislativo da Assembleia da República ou do Governo da República, por um lado, e por acto legislativo praticado por qualquer órgão de governo próprio do Território, por outro.

— Não podem ser elaboradas sem uma lei de habilitação, pela qual se atribui expressamente a certa autoridade administrativa competência para a emissão de regulamento sobre certa matéria administrativa (artigo 7.º do DL 47/90/M de 20 de Agosto)

7. Quanto ao segundo critério, projecção da sua eficácia, há que referir a distinção entre regulamentos internos e externos. Os primeiros, designados também por regulamentos de organização, produzem os seus efeitos jurídicos unicamente no interior da esfera jurídica da pessoa colectiva pública cujos órgãos os elaboram. Os regulamentos externos são aqueles que produzem efeitos jurídicos em relação a outras pessoas colectivas públicas ou em relação a particulares, nos quais se incluem os trabalhadores da função pública, na sua qualidade de cidadãos.

8. Quanto ao âmbito da sua aplicação, importa referir os regulamentos gerais e locais. Os regulamentos gerais são aqueles que se aplicam em todo o território. Os regulamentos locais só se aplicam numa determinada circunscrição territorial, como os regulamentos municipais.

9. Quanto à forma, distinguem-se as portarias e despachos (artigo 16.º, n.º 2 do EOM) tendo aquelas uma predominância hierárquica em relação a estes. No entanto parece-nos que não existe disciplina alguma a regular a escolha entre uma forma e outra. Neste contexto, conclui-se facilmente que os legisladores do EOM foram mais generosos do que os da CRP, uma vez que em Portugal a forma de decreto-regulamentar é obrigatória quando tal seja determinado pela lei que as normas regulamentam ou sempre que se trate de regulamentos independentes (artigo 115.º, n.º 6 do EOM) A solenidade dos decretos-regulamentares é salientada pela necessidade da sua promulgação pelo Presidente da República, nos termos do artigo 137.º, b) da CRP. Correspondendo ao exercício dos poderes regulamentares mais importantes do Governo da República, os regulamentos independentes estão sujeitos ao controlo político do Presidente da República. Finalmente, o Governo da República só pode elaborar regulamentos complementares ou de execução sob a forma de portaria, despacho ou resolução normativa do Conselho de Ministros. No enquadramento jurídico do Território, parece-nos que a discricionariade no exercício do poder regulamentar pelo Governador é bastante ampla, na medida em que apenas será obrigatoriamente ouvido o Conselho Consultivo sobre a regulamentação da execução dos diplomas legais vigentes no Território, nos termos do artigo 48.º, n.º 2, c) do EOM, sendo os pareceres não vinculativos (artigo 49.º, n.º 4 do EOM).

10. Finalmente, não podemos deixar de realçar a situação equívoca dos entes a quem se atribui o poder regulamentar. Em primeiro lugar, nos termos do artigo 16.º, n.º.1, c) do EOM, o Governador é a entidade competente para regulamentar a execução das leis e demais diplomas vigentes no Território, que disso careçam. Por seu turno, o Governador pode delegar essas competências nos secretários-adjuntos, nos termos do artigo n.º 4 do EOM. Ao abrigo do artigo 3.º do DL 85/84/M de 11 de Agosto, os responsáveis pelos serviços públicos, em sentido amplo (artigo 67.º do EOM), podem obter os poderes em causa através de delegação ou subdelegação de competências pelo Governador ou secretários-adjuntos. Mas, o que foi referido em cima apenas diz respeito à execução das leis e demais diplomas vigentes no território que disso careçam. Quanto aos regulamentos independentes, afigura-se-nos que nem o EOM nem o DL, 47/90/M pretendem disciplinar tal instituto segundo o modelo consagrado na Constituição da República (artigo 115.º, n.º 6 e n.º 7 da CRP). Podem os responsáveis dos serviços públicos, em sentido amplo, elaborar regulamentos independentes? Segundo a doutrina tradicional, a resposta é positiva, desde que haja lei de habilitação a atribuir competências (subjectiva e objectiva) para a emissão do regulamento. Deste modo, uma lei orgânica de um determinado ente público pode ser considerada como lei de habilitação se aos seus órgãos forem conferidas as competências referidas pela mesma lei orgânica. Encontrar-se-ia assim um fundamento para o poder de elaborar regulamentos independentes por parte dos responsáveis dos serviços públicos? Considerando-se, porém, o formulário dos regulamentos independentes constante do artigo 5.º, n.º 7 do DL n.º 47/90/M, surge logo uma divergência entre esta doutrina e a legislação aplicável no Território sobre a questão em causa.

IV. Vigência dos regulamentos

11. Ao abrigo do artigo 16.º, n.º 2 do EOM, acompanhado pelo artigo 1.º, n.º 1, b) do DL, 47/90/M, as portarias e os despachos regulamentares externos são publicados no Boletim Oficial sob pena de ineficácia jurídica. Em regra, os regulamentos entrarão em vigor no Território no prazo de cinco dias contados a partir da sua publicação, nos termos do artigo 73.º do EOM.

12. Quanto à cessação da sua vigência, são relevantes os seguintes factores:

— Caducidade: extinção da sua vigência pela superveniência dum facto com força bastante para tal. Isto pode ocorrer nos seguintes casos:

a) Decurso do prazo fixado para a vigência;

b) Cessação da competência regulamentar do órgão que emanou o regulamento;

c) Revogação da lei que o regulamento veio complementar.

— Revogação: neste caso, o regulamento deixa de vigorar como resultado de um acto voluntário dos poderes públicos, podendo ser revogado quer do outro regulamento hierarquicamente idêntico ou superior, quer por lei.

— Impugnação contenciosa: dada a polémica dessa figura, será melhor analisar tal problemática num capítulo isolado.

V. A questão da impugnação dos regulamentos

13. Antes de mais, teremos que abstrair das situações relativas à inconstitucionalidade dos regulamentos, visto estarem relacionadas com a fiscalização da constitucionalidade das normas jurídicas.

14. Com a recepção do D.L. 129/84, que aprovou o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, na ordem jurídica do Território através da sua publicação no Boletim Oficial n.º 24 de 9 de Junho de 1984, criou-se um novo sistema quanto à impugnação contenciosa dos regulamentos administrativos.

Importa salientar que o diploma fez uma distinção entre os regulamentos exequíveis por si mesmo ou imediatamente operativos e os regulamentos só exequíveis através de um acto concreto de aplicação ou mediatamente operativos. Os primeiros são aqueles que podem ofender os direitos ou os interesses dos particulares só pelo simples facto de entrarem em vigor, sendo admissível por isso a impugnação directa. Quanto aos segundos, o regime geral é o de não aplicação ressalvando-se, porém, o seguinte mecanismo: quando os regulamentos tenham sido julgados ilegais por qualquer tribunal[11] em três casos concretos, passam os mesmos regulamentos a ser impugnados directamente. Tudo isso resulta dos art.os 26.º, n.º 1, i) e 51.º, n.º 1, e) do ETAF.

15. Em oposição à solução acima mencionada, há quem entenda que a ilegalidade das normas dimanadas do Governador será apreciada apenas pelo Tribunal Constitucional da República a pedido da Assembleia Legislativa, nos termos do art. 30.º, n.º 1, a) in fine do EOM. Esta solução tem de ser afastada uma vez que ela é apenas um produto da interpretação literal do texto.

Segundo o Dr. António Vitorino, existem quatro níveis de vinculação do ordenamento jurídico de Macau à CRP. As normas constitucionais da fiscalização da constitucionalidade fazem parte do complexo normativo do 2.º nível que se deve entender como globalmente aplicável ao Território[12]. Deste modo, a interpretação da norma estatutária não deve cingir-se à letra da lei, mas sim considerar principalmente a coerência do sistema de que a ordem jurídica de Macau é parte integrante. Do citado conclui-se que a fiscalização abstracta da ilegalidade das normas emanadas pelo Governador nunca pode ultrapassar os limites determinados no art. 281.º n.º, 1, b) e n.º 3 da CRP. No entanto, as normas referidas no art. 30.º, n.º 1, a) do EOM não são mais do que as constantes de acto legislativo com fundamento em violação de lei com valor reforçado, ou seja, lei sobre as matérias previstas no art. 167.º, n.º 1, a) a e) da CRP mutatis mutandis[13].

De qualquer maneira, os regulamentos administrativos ilegais do Território serão sempre impugnados perante o STA, nos termos do art. 26.º, n.º 1, i) do ETAF, excepto as normas que tenham sido julgadas ilegais pelo Tribunal Constitucional em três casos concretos (art. 281.º, n.º 3 da CRP).

VI. Conclusão

16. Acabada a reflexão resumida do poder regulamentar da Administração do Território, é do nosso conhecimento que, no desempenho desse poder, o Executivo de Macau é muito mais livre do que o Governo da República, se bem que o nosso ordenamento jurídico seja de matriz portuguesa. Será a adaptação desta figura jurídica à realidade específica do Território um pretexto que os generosos legisladores invocaram novamente aquando da alteração do EOM?

Quanto à elaboração da Anteproposta da Lei Básica da futura RAEM, o poder legislativo do chefe executivo tem sido sempre objecto de controvérsia. Poderá o poder regulamentar constituir mais um tema polémico quando os redactores da Lei Básica contemplarem, agora e aqui, este instituto?

Notas

1 São os actos que produzem leis e normas jurídicas e que se acham também previstos e regulados por outras normas que se referem ao processo de formação das leis (J. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador).

2 Entre os preceitos constitucionais, salientam-se os artigos 122.º, n.º 1, g) e 282.º da CRP.

3 Quanto à confrontação entre o EOM e a CRP, encontra-se urna análise mais actualizada na comunicação proferida pelo Dr.º António Vitorino em Dezembro de 1990.

4 Freitas do Amaral, Direito Administrativo, 10.ª edição, vol. I, pg. 428.

5 Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, 10.4.edição, vol. I, pg. 428.

6 Pg. 587 e 588 da obra citada na última nota.

7 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, Forma Externa dos Actos administrativos do Governo, pg. 23, 1989.

8 Quanto aos regulamentos independentes, ver aparte final do artigo 115.º, n.º 6 da CRP e artigo 5.º, n.º 7 do DL n.º 47/90/M de 20 de Agosto; quanto aos regulamentos complementares, ver o n.º 6 deste artigo.

9 Artigo 115.º, n.º 7, «in fine», da CRP.

10 Freitas do Amaral, Direito Administrativo, Vol. III, pg. 21, 1989.

11 Trata-se não só das decisões de qualquer tribunal administrativo, mas também das decisões de qualquer tribunal mencionado no art. 211.º da CRP. Não é estranho um tribunal judicial dirimir um conflito em que uma parte invoca unia norma regulamentar ilegal acabando esta parte por ser julgada improcedente.

12 Pg. 23 da comunicação citada na nota (3).

13 Trata-se de demonstração do raciocínio lógico sobre os art. 281.º, n.º 1, b), 1 5.º, n.º 2, 169.º, n.º 2 e 167.º, n.º 1, a) a e) da CRP.

Artigo publicado na edição de “O Direito” de Março de 1991

back to top