Direito do Trabalho

A retribuição e a Lei das Relações de Trabalho de Macau: hesitações e convicções de um jurista lusitano

João Leal Amado*

Introdução[1]

Comecemos pelo princípio, isto é, pela noção de contrato de trabalho, vertida no art. 1079.º do Código Civil de Macau: contrato de trabalho é «aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autoridade e direcção desta».

A retribuição ou salário traduz-se, afinal, no preço da mercadoria força de trabalho, constituindo um elemento essencial do contrato de trabalho, enquanto obrigação capital e nuclear a cargo da entidade empregadora. Como escreve BERNARDO XAVIER, «em traços gerais, do ponto de vista jurídico, a retribuição costuma perfilar-se como a obrigação essencial a prestar no contrato de trabalho pelo empregador, obrigação de índole patrimonial e marcadamente pecuniária, devida em todos os casos e não tendo carácter meramente eventual, ligada por uma relação de reciprocidade à actividade prestada, tendo nela a sua causa»[2]. Trata-se, ainda, de um direito que desempenha uma função marcadamente alimentar, ligado como está à satisfação das necessidades básicas do trabalhador e do respectivo agregado familiar, aspecto que o legislador não pode nem deve negligenciar. Também por isso, a LRT afirma que o empregador deverá «pagar ao trabalhador uma remuneração justa e compatível com o seu trabalho» (art. 9.º, al. 2), reafirmando, no art. 57.º, n.º 1, que «os trabalhadores têm direito a uma retribuição justa pela prestação do trabalho».

Determinar com rigor aquilo em que consiste a retribuição não é, contudo, tarefa fácil, dada a grande complexidade assumida por aquela, nela se distinguindo o chamado «salário de base» de todo um extenso e diversificado conjunto de prestações complementares ou acessórias, tais como diuturnidades, subsídios de risco, de penosidade, de toxicidade, de isolamento, de alojamento, de alimentação, de transporte, de turno, de férias, de Natal, prémios de produtividade ou de assiduidade, comissões, prestações por trabalho extraordinário ou nocturno, etc. A retribuição é, pois, uma realidade multiforme e heterogénea, integrada por numerosas prestações pecuniárias mas também, não raro, por prestações em espécie[3], a este propósito se falando, eloquentemente, em «retribuição complexiva», de modo a abranger todas aquelas prestações. De forma ainda mais impressiva, não falta mesmo quem veja na variada tipologia de atribuições patrimoniais constitutivas do salário a expressão de uma autêntica «selva retributiva», tornando a estrutura daquele fragmentária e quase incontrolável.

Segundo o disposto no art. 58.º, n.º 1, da LRT, «a retribuição do trabalho compreende a remuneração de base e a remuneração variável». A noção de remuneração de base consta, por sua vez, da al. 4) do art. 2.º da LRT («todas as prestações periódicas em dinheiro, independentemente da sua designação ou forma de cálculo, devidas ao trabalhador em função da prestação do trabalho e fixadas por acordo entre o trabalhador e o empregador ou por norma legal»), ao passo que a noção de remuneração variável compreende «todas as prestações não periódicas pagas casuisticamente pelo empregador, nomeadamente subsídios, prémios e comissões que tenham natureza de gratificação, bem como as gorjetas cuja cobrança seja incontrolável pelo empregador» (art. 2.º, al. 5).

A simples transcrição destes preceitos definitórios suscita, de imediato, algumas questões de qualificação, designadamente no que diz respeito às gratificações e às gorjetas. Vejamos.

I. Problemas de qualificação: as gratificações e as gorjetas como atribuições patrimoniais constitutivas da retribuição?

Prima facie, só se deveria considerar retribuição aquilo a que o trabalhador tivesse direito em contrapartida do seu trabalho. A retribuição analisa-se, com efeito, numa obrigação a cargo do empregador, numa prestação juridicamente devida ao trabalhador. Em conformidade, dir-se-ia que a lei deveria excluir do conceito de retribuição as gratificações ou prestações concedidas pelo empregador a título de recompensa ou prémio (pelos bons resultados obtidos pela empresa, pelo desempenho ou mérito profissionais do trabalhador, pela sua assiduidade, etc.), na medida em que tais atribuições patrimoniais fossem marcadas por um espírito de liberalidade, não existindo qualquer prévia vinculação patronal ao respectivo pagamento. Tratar-se-ia, naqueles casos, de prestações concedidas mas não devidas, de uma liberalidade que não de uma obrigatoriedade, ou seja, de uma espécie de doação remuneratória[4]. Ora, é justamente da contraposição entre a obrigatoriedade de efectuar a prestação retributiva e o animus donandi que caracteriza estas gratificações ou prémios que se extrairia a conclusão de que estes últimos não se considerariam retribuição[5].

Do mesmo modo, e como se disse, a obrigação retributiva recai sobre o empregador (é, aliás, a principal obrigação que para este resulta do contrato de trabalho), pelo que quaisquer gratificações concedidas ao trabalhador por terceiros, maxime as chamadas «gorjetas» (pagas pelos utilizadores directos dos serviços prestados pelo trabalhador, caso dos empregados de restaurantes, bares e cafés, dos barbeiros e cabeleireiros, dos motoristas de táxi, dos empregados de casino, etc.), ainda que correspondam a uma parcela não negligenciável do rendimento daquele, não deveriam integrar a retribuição do trabalhador. A retribuição, repete-se, consiste numa prestação obrigatória a cargo do empregador: se a prestação em causa não é juridicamente obrigatória ou não é efectuada pelo empregador — e as gorjetas não são uma nem outra coisa —, então não estaremos, em princípio, perante uma prestação de natureza retributiva[6].

Sucede que, contra esta linha de argumentação, a LRT parece acolher uma noção extremamente ampla de remuneração variável, nesta cabendo todas as prestações pagas pelo empregador, «nomeadamente subsídios, prémios e comissões que tenham natureza de gratificação», bem assim como as «gorjetas cuja cobrança seja incontrolável pelo empregador». Ou seja, se, em Portugal, há prémios/gratificações que integram e outros que não integram a noção de retribuição, parece que, em Macau, todos deverão como tal ser qualificados; e se, em Portugal, as gorjetas não constituem retribuição, parece que, em Macau, algumas haverá que sim ― aquelas cuja cobrança seja incontrolável pelo empregador[7].

Temos dúvidas sobre a bondade da solução vertida nesta al. 5 do art. 2.º da LRT: não corresponderá ela a uma noção de retribuição demasiado expansiva?

II. Modalidades da retribuição: a dicotomia (desajustada?) entre a remuneração de base e a remuneração variável.

«A retribuição pode ser certa, variável ou mista, sendo esta constituída por uma parte certa e outra variável», conforme se lê no art. 261.º, n.º 1, do Código do Trabalho português. E é sabido que o critério distintivo destas várias modalidades de retribuição radica na respectiva unidade de cálculo ou de medida: a unidade de cálculo da retribuição certa é constituída pelo tempo (a hora, o dia, a semana, a quinzena, o mês), ao passo que a retribuição variável é calculada com base em critérios diversos da medida temporal, maxime o rendimento (rendimento do trabalhador individualmente considerado ou rendimento de um determinado grupo de trabalhadores) — será o caso do salário à peça, do salário à tarefa, das comissões, etc. A retribuição mista, por seu turno, é constituída por uma parte certa (calculada em função do tempo) e por uma parte variável (calculada em função do rendimento)[8].

Em qualquer caso, é óbvio que a retribuição certa, calculada em função do tempo de trabalho, além de ser a mais simples e a mais difundida, é também aquela que mais segurança confere ao trabalhador, visto que torna a sua posição menos dependente do (in)êxito da empresa e das flutuações do mercado, assim atenuando, de algum modo, o poder patronal. A retribuição variável, pelo contrário, conquanto possa invocar a seu crédito o argumento do incentivo à produtividade (e da redução de custos, em épocas de crise…), tem inconvenientes conhecidos: provoca ritmos de trabalho desumanos, atentando contra a segurança no trabalho; estimula a competição entre trabalhadores, afectando a solidariedade entre os mesmos; pode pôr em xeque a própria dignidade do trabalhador enquanto pessoa, intensificando a exploração do trabalho alheio, etc.

Perante este quadro de interesses contrapostos, tende a ver-se com muito bons olhos a chamada «retribuição mista», quiçá por esta se traduzir num compromisso aceitável entre a necessidade de contribuir para a elevação dos níveis de produtividade (algo a que a retribuição certa se mostra pouco sensível) e a tutela de uma certa segurança para o trabalhador (algo que a retribuição variável manifestamente coloca em xeque).

No n.º 2 do art. 262.º, o legislador português ensaia uma definição das noções de retribuição base e diuturnidade. Porém, se relativamente a esta última a missão legislativa parece ter sido concluída com êxito, já o mesmo não se poderá dizer no tocante à primeira daquelas noções. Com efeito, a exacta delimitação conceptual daquilo que seja a retribuição base não constitui tarefa simples e tem dado azo a algumas divergências doutrinais. Ora, esta norma entende por retribuição base aquela prestação «correspondente à actividade do trabalhador no período normal de trabalho». A formulação legal parece pouco esclarecedora, deixando de fora aquilo que, na lição de JORGE LEITE, constitui o cerne da retribuição base, a saber, o seu carácter de «contrapartida da prestação standard», isto é, de contrapartida da prestação laboral realizada em condições consideradas normais ou comuns. Assim, segundo JORGE LEITE, deve entender-se por retribuição base «a prestação que, de acordo com o critério das partes, da lei, do IRC ou dos usos, é devida ao trabalhador com determinada categoria profissional pelo trabalho de um dado período realizado em condições consideradas normais ou comuns para o respectivo sector ou profissão». Em conformidade com este entendimento, serão prestações complementares «todas as restantes devidas ao trabalhador em razão de factores diferentes do da prestação de trabalho em condições consideradas normais ou comuns: por motivo de acréscimo de despesas, real ou presumido, em determinadas épocas do ano, por antiguidade na empresa ou na categoria, em razão da particular penosidade, do isolamento ou do risco em que o trabalho é prestado, em função dos lucros, etc.»[9]. Em regra, as prestações complementares estarão, por conseguinte, ligadas a contingências especiais da prestação laboral (a penosidade ou o isolamento, p. ex.) ou a aspectos particulares relativos ao próprio trabalhador (a sua produtividade ou a sua antiguidade, p. ex.).

Em síntese, dir-se-ia que, à luz da experiência portuguesa, no meio das muitas incertezas que existem nestas matérias, é inegável que a contraposição se estabelece, neste campo, entre retribuição certa e retribuição variável e, noutro plano, entre a retribuição base e os complementos retributivos. Ora, de forma algo surpreendente, a LRT opta por contrapor a remuneração de base à remuneração variável (art. 58.º, n.º 1, e art. 2.º, als. 4) e 5), o que não nos parece contribuir para a clarificação conceptual neste tão delicado domínio. Além disso, a remuneração de base, nos termos do art. 59.º da LRT, compreende, entre outras, as seguintes prestações periódicas: salário de base, remuneração do trabalho extraordinário, acréscimo por prestação de trabalho nocturno ou por turnos, subsídio de alimentação, subsídio de família, subsídios e comissões inerentes às funções desempenhadas, certos montantes cobrados pelo empregador ao cliente, 13.º mês de salário ou outras prestações de natureza semelhante, etc.[10]. Trata-se, ao que pensamos, de uma definição extremamente (excessivamente?) ampla de remuneração de base. E repare-se que a LRT distingue a «remuneração de base» do «salário de base», aquela englobando este, este sendo apenas uma das prestações naquela compreendidas, o que, em definitivo, implica a introdução de um ulterior factor de complexidade nesta matéria.

Dir-se-ia, em suma, fazendo um breve balanço comparativo, que a LRT se mostra mais generosa do que o CT português no tocante à definição da retribuição: ainda que assentando numa contraposição desconhecida do ordenamento português (a contraposição entre a remuneração de base e a remuneração variável), o certo é que a noção de remuneração variável da LRT parece compreender prestações excluídas pela lei portuguesa (as gratificações, algumas gorjetas), sendo igualmente certo que a noção de remuneração de base da LRT é mais abrangente do que a consagrada pelo CT.

III. A irredutibilidade da retribuição: uma verdadeira garantia?

Nos termos do n.º 2 do art. 57.º da LRT, a retribuição do trabalho é fixada por acordo entre o empregador e o trabalhador, contanto que sejam respeitadas as exigências do princípio da igualdade e sem prejuízo da observância das disposições legais aplicáveis a sectores de actividade específicos. Ora, uma vez que seja estabelecido o montante da retribuição, a LRT inclui entre as garantias do trabalhador a proibição de o empregador «diminuir a remuneração de base do trabalhador, salvo nos casos previstos na presente lei» (art. 10.º, al. 5).

Importa saber quais são esses «casos previstos na presente lei». E a resposta, um tanto ou quanto desconcertante, retira-se do disposto no art. 59.º, n.º 5, segundo o qual, «a remuneração de base só pode ser diminuída mediante acordo escrito entre as partes, o qual só produz efeitos após comunicação à DSAL, a efectuar pelo empregador no prazo de dez dias». Ou seja, para reduzir o montante da retribuição previamente acordado entre as partes, a lei exige o acordo escrito do trabalhador, mas também se basta com ele, não sujeitando essa redução salarial a autorização de qualquer outra entidade, nem prevendo circunstâncias especiais para que tal acordo possa ter lugar…[11]

Aqui chegados, dir-se-á que mais do que numa verdadeira e própria garantia da irredutibilidade da retribuição (rectius, da remuneração de base), do que se trata é, tão-só, de uma singela manifestação do princípio pacta sunt servanda. E diga-se ainda que, nesta matéria, não parece avisado consagrar uma garantia legal do trabalhador, com foros de solenidade, a qual logo cede com o respectivo assentimento. É que, como é óbvio, a situação economicamente dependente e juridicamente subordinada do trabalhador é de molde a lançar um forte juízo de suspeição sobre a integridade do seu consentimento[12]. Voltaremos ao assunto infra.

IV. O vigor do sinalagma trabalho-salário: um sinalagma que deveria ser atenuado?

O trabalhador compromete-se a prestar a sua actividade intelectual ou manual «mediante retribuição». A retribuição é devida como contrapartida do trabalho, isto é, em função da prestação do trabalho. Estas afirmações são basicamente correctas, mas terão de ser encaradas com as devidas cautelas, visto que é fácil apresentar exemplos em que o dever de pagar a retribuição não corresponde a trabalho efectivamente prestado — pense-se nos feriados (art. 44.º da LRT) ou nas férias (art. 46.º) —, os quais constituiriam outras tantas excepções ao sinalagma trabalho-retribuição, que se condensa na conhecida expressão germânica «Kein Arbeit, kein Lohn».

Em todo o caso, não deixa de ser verdade que, nesta matéria, o ordenamento português vai bastante mais longe do que o macaense, maxime no que diz respeito ao regime das faltas justificadas: com efeito, o princípio consagrado no art. 255.º do CT é o de que a falta justificada não determina perda de retribuição (embora se prevejam alguns casos em que isso sucederá), ao passo que o princípio consagrado no art. 53.º da LRT é justamente o oposto (conquanto também existam casos, contados, em que as faltas justificadas são remuneradas).

Trata-se de um ponto em que se regista uma acentuada disparidade regimental, propendendo o sistema português para conceber a falta justificada como traduzindo o exercício de um direito por parte do trabalhador, que não deve ter repercussões negativas na sua retribuição (pense-se nos casos de matrimónio do trabalhador ou de falecimento de um familiar do mesmo, bem como na obrigação de comparência em tribunal). Pelo contrário, em Macau vigora, com maior crueza, o sinalagma trabalho-salário, pelo que a falta, ainda que justificada, não confere direito a retribuição[13]. Resta saber se este é um bom princípio.

V. Os prazos de pagamento da remuneração e a prescrição do crédito retributivo.

Quanto à matéria do tempo do cumprimento, é sabido que o contrato de trabalho apresenta como uma das suas características mais relevantes a de ser um contrato de execução sucessiva. A obrigação retributiva, em particular, enquanto principal obrigação a cargo do empregador, insere-se na categoria das chamadas obrigações duradouras, mais concretamente na sua modalidade das obrigações periódicas ou reiteradas. Significa isto que o tempo se revela um factor de extrema importância no tocante à conformação global da prestação do empregador, influenciando decisivamente o respectivo conteúdo. Influência que, pode dizer-se, se faz sentir a dois níveis: por um lado, como já foi observado, o tempo traduz-se na unidade de cálculo da retribuição certa; por outro lado, o tempo funciona também como unidade de vencimento da retribuição.

Como é lógico, em sede de cumprimento da obrigação retributiva é este último (o tempo como unidade de vencimento) o aspecto que mais nos interessa. E também aqui a LRT demonstra grande flexibilidade, estabelecendo que «o empregador tem o dever de pagar a remuneração de base regular e tempestivamente» (art. 62.º, n.º 1) e determinando ainda que «a obrigação de pagamento vence-se no último dia do período de referência da remuneração de base acordado entre as partes» (art. 62.º, n.º 2)[14].

A obrigação retributiva vence-se, assim, automaticamente, isto é, sem necessidade de prévia interpelação por parte do credor-trabalhador. Contudo, não obstante o n.º 4 do art. 62.º da LRT prescreva que «o empregador fica constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, o trabalhador não puder dispor do montante da remuneração de base no tempo devido», o certo é que este «tempo devido» não coincide com o vencimento da obrigação, visto que o n.º 3 do mesmo preceito estabelece que «a remuneração de base é paga no prazo de nove dias úteis, contados da data do vencimento da obrigação»[15]. A lei autoriza, pois, o diferimento do pagamento do salário em relação à data do respectivo vencimento[16].

Como se vê, toda a disciplina jurídica do tempo do cumprimento da obrigação retributiva se estrutura com base na ideia da pós-numeração: o salário deve ser pago posteriormente à correlativa prestação de trabalho, não antecipadamente. Ora, como é óbvio, isto não deixa de se traduzir numa posição de certo privilégio para a entidade empregadora, pois, nas palavras de MONTEIRO FERNANDES, «esta pode eximir-se ao cumprimento total ou parcial da retribuição se, no período correspondente, tiver faltado ou sido incompleta a disponibilidade da força de trabalho; mas o trabalhador já terá cumprido a sua parte quando, porventura, se verifique o não pagamento da retribuição correspondente»[17]. Resta saber se, neste quadro, o trabalhador a quem não seja pago o salário poderá recorrer ao mecanismo da excepção de não cumprimento do contrato. Abordaremos o assunto infra.

Pergunta-se: em caso de falta de pagamento da retribuição, qual será o prazo de prescrição de tal direito de crédito? A LRT não responde, mas o Código Civil de Macau estabelece, a este respeito, uma solução que merece atenção e que nos parece mais feliz do que a da lei portuguesa. Vejamos então qual é, a traço grosso, o regime português nesta matéria, antes de nos concentrarmos na lei de Macau.

Nos termos do disposto no art. 337.º, n.º 1, do CT português, «o crédito de empregador ou de trabalhador emergente de contrato de trabalho, da sua violação ou cessação prescreve decorrido um ano a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho». Como é sabido, o decurso do tempo é um facto jurídico não negocial, é um acontecimento natural juridicamente relevante, ou seja, produtor de efeitos jurídicos. E um dos seus efeitos mais importantes consiste, precisamente, em fazer cessar a exercitabilidade dos direitos subjectivos.

No que concerne ao curso da prescrição, cabe dizer que, regra geral, o seu início dá-se quando o direito puder ser exercido. Em princípio, para que o prazo da prescrição comece a correr torna-se necessário, mas também suficiente, que a dívida seja exigível, que a obrigação se vença. O respectivo início pode, no entanto, ser impedido por determinados motivos, isto é, pelas chamadas causas suspensivas da prescrição. De facto, o CCivil prevê diversas causas de suspensão da prescrição, causas essas que, dir-se-ia, «adormecem» esta última. Consiste tal suspensão em não se contar para o efeito da prescrição o tempo decorrido enquanto durarem certos factos ou situações. Fala-se em suspensão do curso quando ela impede o início ou o curso da prescrição (que a prescrição comece a correr ou que prossiga) e em suspensão do termo quando ela impede que o tempo da prescrição se complete.

Munidos que estamos destas ideias sumárias sobre o instituto da prescrição, cumpre analisar o disposto no art. 337.º do CT. E a leitura deste preceito logo nos revela que: i) não existe um regime específico de prescrição para os créditos do trabalhador (salariais ou não), pois o artigo estabelece um tratamento uniforme para todos os créditos oriundos da relação de trabalho, independentemente de o seu titular ser o trabalhador ou o empregador; ii) a nota alimentar possuída pelo direito ao salário não implica a respectiva imprescritibilidade, visto que a lei não declara o crédito salarial isento de prescrição; iii) os créditos laborais são, porém, imprescritíveis na vigência da relação de trabalho, dado que o prazo prescricional só começa a correr «a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho».

É este último, sem dúvida, o núcleo essencial do preceito em análise. Com efeito, depara-se-nos aqui uma verdadeira suspensão do curso da prescrição enquanto vigorar o contrato de trabalho. E a solução de suspender o curso da prescrição na constância da relação laboral logra fácil explicação, se atendermos à desigualdade das forças em presença nesta relação. Com efeito, à normal superioridade económica e social do empregador acrescenta-se, ao celebrar-se o contrato de trabalho, a subordinação jurídica do trabalhador (o qual, como se sabe, presta a sua actividade em moldes heterodeterminados), o que tudo vai ter importantes reflexos a nível psicológico, originando ― e, o que é mais, justificando ― fenómenos de inibição e receio do trabalhador face ao empregador.

Dir-se-ia, pois, que, constituindo fundamento específico da prescrição a penalização da inércia negligente do titular do direito, a lei entendeu não ser exigível ao trabalhador-credor que promova a efectivação do seu direito na vigência do contrato, demandando judicialmente o empregador. Neste caso, o não exercício expedito do direito por parte do seu titular não faz presumir que este a ele tenha querido renunciar, nem torna o credor indigno de protecção jurídica (dormientibus non sucurrit ius).

De qualquer modo, convém não ignorar que o prazo de prescrição dos créditos laborais é, à luz da lei portuguesa, de apenas um ano. Pelo que, se é certo que o regime legal permite que, em determinados casos, sejam reclamados créditos vencidos há dez, quinze ou mais anos, é igualmente verdade que, noutros casos, ele faz decair os referidos créditos num prazo curtíssimo, o que se mostra pouco recomendável[18]. Um prazo prescricional mais dilatado (p. ex. de cinco anos), conjugado com uma suspensão do termo (mediante a qual a prescrição apenas se pudesse completar, por hipótese, um ano após a cessação do contrato), eis o regime que, do nosso ponto de vista, melhor se adequaria aos interesses em presença.

É que, em rigor, a tutela dos créditos laborais não requer a suspensão do curso da prescrição na vigência do contrato de trabalho: realmente, nada se opõe a que a prescrição corra enquanto o contrato vigorar; tudo reclama, isso sim, é que ela só se possa completar depois de extinto o vínculo. Ora, a este propósito, cabe dizer que a resposta do Código Civil de Macau é cristalina. Com efeito, no seu art. 311.º, n.º 1, al. c), prevê-se que «a prescrição não se completa: entre quem presta o trabalho doméstico e o respectivo empregador, por todos os créditos, bem como entre as partes de quaisquer outros tipos de relações laborais, relativamente aos créditos destas emergentes, antes de 2 anos corridos sobre o termo do contrato de trabalho». Cá temos, pois, a consagração expressa da solução que nos parece mais acertada, a da suspensão do termo da prescrição (neste caso, uma suspensão de termo bienal)[19]. Aplaudimos, sem reserva, esta solução constante do CCivil de Macau.

VI. A prova do pagamento, o «recibo» da remuneração e as (problemáticas) declarações liberatórias.

No que à obrigação retributiva diz respeito, é ponto pacífico que incumbe ao empregador fazer a prova do respectivo cumprimento. Para tal efeito, é admissível qualquer meio de prova, mas o certo é que também aqui se confirma a tese de que o melhor meio de prova do cumprimento é representado pela quitação. Na verdade, a entidade empregadora pode exigir quitação do trabalhador, nos termos da regra geral contida no art. 776.º, n.º 1, do CCivil de Macau (quem cumpre a obrigação tem o direito de exigir quitação daquele a quem a prestação é feita), podendo ainda recusar-se a cumprir enquanto a quitação não for dada (n.º 2 do mesmo artigo).

Esta é, contudo, uma matéria em que a singularidade da dívida salarial se vem a revelar em toda a sua extensão. O ordenamento juslaboral obriga, com efeito, à passagem de um «recibo» (rectius, de um «boletim de pagamento») aquando do pagamento da retribuição; simplesmente, o documento a que alude o n.º 6 do art. 63.º da LRT não se traduz numa qualquer quitação, não visa facilitar a prova do cumprimento ao devedor-empregador, mas, bem ao invés, consiste numa obrigação estabelecida no interesse do credor-trabalhador, visando permitir-lhe um controlo a posteriori sobre os seus créditos e respectiva (in)satisfação. Trata-se, assim, de um documento entregue pelo devedor ao credor, documento situado nos antípodas da quitação prevista no CCivil[20].

O cotejo do disposto nos arts. 776.º do CCivil e 63.º, n.º 6, da LRT revela-se, de todo o modo, extremamente fecundo. Não havendo sombra de contradição normativa entre os dois preceitos, estes reflectem entretanto, seguramente com alguma fidelidade, as preocupações básicas, estruturantes de cada um dos respectivos sectores do ordenamento jurídico. Assim, é certo que a relação jurídica entre trabalhador e empregador se analisa num vínculo de natureza obrigacional; é também pacífico que a satisfação do interesse do credor (neste caso, do trabalhador) constitui o fim e a razão de ser de tal vínculo; simplesmente, ainda que assim seja, o interesse do devedor não é minimamente descurado na relação obrigacional, sendo mesmo usual aludir-se à existência, no Direito Civil, de um princípio geral de protecção desse devedor (o chamado favor debitoris), princípio operante sempre que não prejudique o escopo central da obrigação — a satisfação do interesse do credor. Pode mesmo dizer-se que, de certa maneira, é isto o que se passa quando o CCivil atribui ao devedor o direito à quitação — satisfeito o interesse prioritário do credor, pelo cumprimento, o legislador preocupou-se em acautelar devidamente o legítimo interesse daquele no tocante à prova desse cumprimento.

Só que — e aqui intervém o Direito do Trabalho — a plena satisfação do interesse do credor da obrigação retributiva exige algo mais: a complexidade e essencialidade do salário, a própria natureza assimétrica da relação da qual este emerge (repare-se que estamos perante um credor que se encontra juridicamente subordinado ao devedor, circunstância nada despicienda), tudo reclama acrescida segurança e controlabilidade dos termos em que a prestação debitória é efectuada, certificando-se aquilo que foi pago e permitindo que se verifique se foi pago tudo o que era devido — objectivos que o n.º 6 do art. 63.º da LRT busca, justamente, atingir.

Questão diferente, que assume particular complexidade, é a de saber qual o sentido e alcance das chamadas «declarações liberatórias» emitidas ou subscritas, não raro, pelo trabalhador («nada mais tenho a exigir da entidade empregadora», «recebi todas as importâncias que me eram devidas», etc.), maxime aquando da cessação do respectivo contrato de trabalho. Pergunta-se: possuirão tais declarações algum valor jurídico? E, em caso afirmativo, de que tipo? Produzirão elas efeitos no plano probatório («recibo de quitação»)? Ou terão mesmo efeitos dispositivos, traduzindo-se numa renúncia, por banda do trabalhador, aos seus direitos («declaração de remissão»)?

A nosso ver, não existe uma resposta, única e universal, para estas questões. Pelo contrário, tal resposta dependerá de uma cuidada e casuística tarefa interpretativa, oscilando em função da concreta declaração em causa. Com efeito, nem sempre aquelas declarações se analisam numa renúncia/remissão. Na verdade, a renúncia é um negócio jurídico. A remissão da dívida assume mesmo a natureza de negócio jurídico bilateral (art. 854.º do CCivil de Macau), pelo que, enquanto contrato, pressupõe um certo conteúdo intelectual e volitivo, ou seja, (i) pressupõe que o credor conhece o seu direito, tem consciência da sua existência, sabe que ele ainda se encontra insatisfeito, e (ii) pressupõe, também, que o credor quer extinguir esse crédito, tem vontade de o abandonar, de dele se demitir[21]. Em suma, a remissão postula uma verdadeira e própria declaração de vontade (como é sabido, os efeitos dos negócios jurídicos produzem-se ex voluntate).

Acontece que nada disto se passa, por vezes, com as chamadas «declarações liberatórias». Ao contrário: amiúde o trabalhador emite-as porque desconhece, e apenas porque desconhece, a existência de qualquer crédito seu ainda por satisfazer. Destarte, ao declarar nada mais ter a exigir da entidade patronal, ele não pretende extinguir o seu crédito, ele julga que o seu crédito já se encontra extinto (por exemplo, que o respectivo salário já foi integralmente pago). Não há aqui, portanto, a mínima intenção de renunciar ao que quer que seja — não estamos, afinal, perante uma declaração de vontade, mas antes perante uma mera declaração de ciência, declaração esta que poderá ser fundada ou não, mas que está despojada, enquanto tal, de qualquer relevância ou significado dispositivo.

Líquida nos parece, assim, uma primeira conclusão: qualquer que seja o valor ou alcance atribuível às declarações em exame, estas nem sempre terão um significado dispositivo/remissivo, não redundando forçosamente, portanto, numa renúncia aos créditos laborais. Perguntar-se-á então: quando o trabalhador declara que «se considera pago de tudo quanto lhe era devido», ou que «recebeu todas as importâncias que lhe eram devidas», que significado tem isto? Caso não se analisem numa renúncia, serão estas declarações totalmente irrelevantes? E, se o não forem, qual será o seu valor jurídico?

A nosso ver, aquelas declarações do trabalhador, não implicando embora a extinção dos seus créditos ainda insatisfeitos, nem por isso são juridicamente irrelevantes, pois não deixam de produzir consequências danosas no tocante à respectiva prova — seja vendo nas referidas declarações uma quitação sui generis (concedendo ao empregador-devedor um meio de provar que cumpriu), seja vendo nelas um reconhecimento negativo de dívida (invertendo o onus probandi do cumprimento da obrigação, sendo ao trabalhador-credor que passa a incumbir a prova do não cumprimento). Seguro parece, qualquer que seja a via de abordagem escolhida, que estas declarações liberatórias não podem deixar de se repercutir no plano probatório, onerando a posição do respectivo emitente (o trabalhador) nesse plano.

À jurisprudência caberá, sem dúvida, um importante papel na tarefa de avaliar, em cada caso concreto, o peso probatório que deverá ser conferido a tais declarações. Julga-se, ainda assim, que o respectivo peso probatório tenderá a ser diminuto, e isto por várias razões: i) em primeiro lugar, dada a função alimentar desempenhada pelo principal crédito do trabalhador, o direito ao salário, a qual aconselha um regime restritivo no que toca à prova do cumprimento da obrigação retributiva (rectius, um regime que dificulte ao empregador a prova de pagamentos que, afinal, não efectuou); ii) em segundo lugar, dada a complexidade estrutural do próprio salário (a chamada «selva retributiva»), a qual explica as dificuldades frequentemente encontradas pelo trabalhador para saber se todos os seus créditos foram ou não satisfeitos, justificando o seu erro[22]; iii) em terceiro lugar, dada a circunstância de o credor se encontrar, neste campo, juridicamente subordinado ao devedor, com os reflexos psicológicos daí advenientes (o que explica que o trabalhador sinta muitas vezes dificuldades em resistir à solicitação do empregador para que emita tais declarações, mesmo quando não está inteiramente seguro da efectiva satisfação de todos os seus créditos).

Uma última nota, a este respeito. Em toda a exposição que antecede foi pressuposta a situação típica na qual são emitidas estas declarações liberatórias. Diferente será o caso, naturalmente, na hipótese de o trabalhador, tendo plena consciência de que alguns dos seus créditos não foram ainda satisfeitos (ou, no mínimo, tendo dúvidas a esse respeito), voluntariamente afirmar que «se considera pago de tudo quanto lhe era devido» Aqui sim, já se nos deparará uma verdadeira remissão do débito[23], na medida em que o trabalhador emite uma declaração de vontade com um conteúdo abdicativo. Ou seja, a declaração liberatória poderá possuir virtualidades dispositivas (rectius, remissivas do débito patronal), o que relança a discussão, neste contexto, em torno da eventual irrenunciabilidade dos créditos laborais por banda do trabalhador. Voltaremos ao ponto infra, na parte final da exposição.

VII. Falta de pagamento da remuneração: excepção de não cumprimento do contrato?

Segundo a lei portuguesa, a falta de pagamento pontual da retribuição confere ao trabalhador a faculdade de suspender o contrato (art. 323.º, n.º 3, do CT). Assim, nos termos do n.º 1 do art. 325.º, «no caso de falta de pagamento pontual da retribuição por período de 15 dias sobre a data do vencimento, o trabalhador pode suspender o contrato de trabalho, mediante comunicação por escrito ao empregador e ao serviço com competência inspectiva do ministério responsável pela área laboral, com a antecedência mínima de oito dias em relação à data de início da suspensão».

Esta suspensão da prestação de trabalho por iniciativa do trabalhador, com base na falta de pagamento da retribuição, consiste numa modalidade atípica de suspensão contratual. Na verdade, topamos aqui, inequivocamente, com uma adaptação da figura civilística da excepção de não cumprimento do contrato[24] ao âmbito juslaboral: ao contrário do que sucede com a típica suspensão do contrato de trabalho (que se configura como um mecanismo de protecção do devedor impossibilitado de cumprir)[25], este é um meio reactivo-defensivo à disposição do credor insatisfeito, consistindo numa figura que não pode deixar de ser acolhida pelo Direito do Trabalho, até por força da supramencionada «regra da pós-numeração» em matéria retributiva.

A faculdade de o trabalhador suspender a prestação de trabalho consiste, por conseguinte, num regime especial de excepção de não cumprimento do contrato, a invocar pelo trabalhador no caso de falta de pagamento da retribuição. E a excepção de não cumprimento do contrato é uma figura clássica e bem conhecida pelos juristas, traduzindo-se num mecanismo que encontra o seu campo de eleição nos contratos bilaterais, com prestações correspectivas ou correlativas — a interdependência entre as respectivas obrigações significa justamente que, não sendo uma delas cumprida, a outra também o não será. Estamos perante um meio defensivo e provisório (o credor limita-se a não cumprir a sua obrigação em ordem a garantir aquela que lhe é devida pela contraparte), que no fundo constitui, na lição de ANTUNES VARELA, «um simples corolário do pensamento básico do sinalagma funcional»[26].

Ou seja, a exceptio traduz-se numa resposta legítima do trabalhador-credor à falta de cumprimento do empregador: é este quem está em mora, recusando-se apenas aquele a cumprir porque o empregador está em mora e enquanto tal mora subsistir (o trabalhador está disposto a laborar, para tal bastando que o empregador cumpra), recorrendo, portanto, a um meio puramente defensivo[27]. Ora, percorrendo a LRT, não deparamos com qualquer espécie de adaptação da figura da exceptio à situação particular da falta de pagamento da remuneração. Significará isto que, em Macau, o trabalhador não poderá lançar mão deste mecanismo, em ordem a reagir ao incumprimento patronal?

VIII. Falta de pagamento da remuneração e justa causa de resolução do contrato pelo trabalhador.

Constituindo a obrigação retributiva a primeira das obrigações decorrentes do contrato de trabalho para o empregador, compreende-se que a falta de cumprimento de tal obrigação habilite o trabalhador a resolver o contrato com justa causa. Com efeito, no elenco exemplificativo de situações constitutivas de justa causa de resolução contratual por iniciativa do trabalhador, a LTR não deixa de incluir a «falta repetida de pagamento pontual da remuneração na forma acordada ou estipulada por lei» (art. 71.º, n.º 2, al. 1). Mas não bastará, portanto, a falta de pagamento pontual da remuneração para que exista justa causa. É necessário que se trate de uma «falta repetida». Em que termos? O legislador esclarece: «Considera-se verificada a situação prevista na alínea 1) do número anterior quando ocorra o não pagamento da remuneração, total ou parcialmente, dentro do prazo estipulado no artigo 62.º por duas vezes consecutivas» (n.º 3 do art. 71.º).

Pelo exposto, mais do que repetida ou reiterada, parece que a falta de pagamento da remuneração só constituirá justa causa de resolução quando ocorra «por duas vezes consecutivas». À luz desta norma, afigura-se que a reiteração na falta de pagamento do salário, desde que intercalada/interpolada e não consecutiva, não habilitará o trabalhador a resolver o contrato, com direito a indemnização. Solução esta que, a nosso ver, não deixa de ser criticável, por desguarnecer em demasia a tutela do direito à retribuição e a posição do trabalhador neste domínio.

Aceita-se que nem todas as situações de falta de pagamento pontual da retribuição devam constituir justa causa, até porque esta, nos termos do n.º 2 do art. 68.º da LRT, sempre terá de analisar-se num «facto ou circunstância grave que torne praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho». Trata-se, de todo o modo, da principal obrigação do empregador, cujo incumprimento é, ademais, susceptível de lesar gravemente os interesses do trabalhador, pondo em causa a satisfação das suas necessidades básicas, pelo que o ordenamento jurídico não deveria transigir tanto com a mora patronal neste domínio.

IX. A LRT e a equação estabilidade/precariedade do emprego: consequências em sede remuneratória.

Um juslaboralista português, ao sobrevoar a LRT de Macau, aponta, de imediato, uma lacuna a este diploma: ele não dá qualquer guarida ao instituto da suspensão do contrato de trabalho, ao invés do que sucede com a lei portuguesa, que lhe dedica numerosos artigos (arts. 294.º a 322.º do CT)[28]. Será isto estranho? Julga-se que não, dado que, como se disse, o instituto suspensivo se traduz numa manifestação do princípio da conservação do contrato e da estabilidade no emprego. Ora, a verdade é que o princípio da estabilidade no emprego é um princípio pouco valorizado e pouco acarinhado pela LRT. Um exemplo: ao passo que, em Portugal, o impedimento temporário de prestar trabalho devido a doença ou acidente, que se prolongue por mais de um mês, determina a suspensão do contrato de trabalho, com a correspondente garantia do direito ao lugar (art. 296.º, n.º 1, do CT), a LRT só considera justificadas as faltas dadas por acidente ou doença até ao limite de trinta dias seguidos, o que significa que, daí em diante, tais ausências serão tidas como injustificadas, com as inerentes consequências (art. 50.º, n.º 2, al. 7), e n.º 3)…[29]

Assim é que este diploma, numa norma decerto emblemática, não deixa de dispor, sem margem para equívocos: «A resolução do contrato de trabalho pode ocorrer, com ou sem justa causa, por iniciativa do empregador ou do trabalhador (art. 68.º, n.º 1). E, no seu art. 70.º, a lei reafirma que o empregador pode resolver[30] o contrato a todo o tempo, independentemente de alegação de justa causa, tendo o trabalhador direito a uma indemnização. Trata-se, portanto, da consagração do princípio do despedimento ad nutum, da regra do employment-at-will, ao arrepio do disposto nas normas internacionais do trabalho, em particular da Convenção n.º 158 da OIT, de 1982, sobre a cessação da relação de trabalho por iniciativa do empregador. Esta convenção estabelece a exigência de motivação do despedimento proferido pela entidade empregadora, no seu art. 4.º, nos seguintes termos: «Um trabalhador não deverá ser despedido sem que exista um motivo válido de despedimento relacionado com a aptidão ou com o comportamento do trabalhador, ou baseado nas necessidades de funcionamento da empresa, estabelecimento ou serviço». Trata-se, como é bom de ver, de uma convenção que não vigora na RAEM.

O que é que tudo isto tem a ver com a temática da retribuição? Julga-se que muito. Desde logo, porque esta falta de tutela legal da estabilidade do posto de trabalho, na justa medida em que precariza o emprego e acentua a fragilidade da posição do trabalhador, torna ainda mais imperiosa a necessidade de cautela em relação, por exemplo, à prescrição do direito à remuneração (o que, como vimos, é adequadamente ponderado pela lei de Macau) ou à garantia da irredutibilidade da mesma (o que, como vimos, não é devidamente salvaguardado pelo legislador macaense).

Mas muitas outras questões surgem, maxime as que se prendem com a (ir)renunciabilidade do direito à retribuição pelo trabalhador. Será que este pode dispor do crédito retributivo, abdicando dele, celebrando com o devedor-empregador um contrato de remissão? A questão é discutível e é discutida, em Portugal como em Macau. Julga-se que a sua resolução não pode ignorar a directriz formulada pelo art. 65.º, n.º 1, da LRT, nos termos do qual «o trabalhador não pode ceder, a título gratuito ou oneroso, os seus créditos à retribuição, na medida em que estes sejam impenhoráveis». A nosso ver, deste preceito decorre, logicamente (por identidade ou até por maioria de razão), que o crédito salarial deve considerar-se irrenunciável, no mínimo, em medida igual àquela em que é insusceptível de cessão. Na verdade, sendo o crédito salarial parcialmente insusceptível de cessão a terceiro, como se poderia compreender que o trabalhador fosse livre de a ele renunciar integralmente, em óbvio benefício do respectivo empregador? É que em sede de cessão a tutela do salário, assente no seu carácter alimentar, sempre deverá ser de alguma forma contrabalançada pela tutela dos legítimos interesses de terceiros, estranhos à relação laboral (razão pela qual o crédito não é totalmente incedível); já em sede de renúncia, pelo contrário, ao carácter alimentar do salário vem ainda adicionar-se a situação de dependência do credor-trabalhador relativamente ao devedor-empregador, o que contribui para reforçar a tese da irrenunciabilidade. Deste modo, constituiria rematado absurdo que o sistema jurídico se revelasse, a um tempo, altamente restritivo no que toca à possibilidade de cessão do crédito retributivo e marcadamente liberal no que diz respeito à respectiva renunciabilidade — isto é, que a restrição daquela houvesse de conviver com a incondicionada admissão desta.

Ou seja, as razões que presidem ao sistema restritivo contido no art. 65.º da LRT valem ainda em mais forte medida para a hipótese de renúncia, pelo que, julga-se, haverá de entender-se que a lei que proíbe o menos (o menos gravoso para o trabalhador, a cessão do crédito a um terceiro) também proíbe o mais (o mais gravoso, a renúncia perante aquele e em proveito daquele a quem se deve obediência). Isto sob pena de o ordenamento jurídico, tendo-se preocupado com a defesa da integridade do crédito salarial relativamente a terceiros (limitando a possibilidade da respectiva cessão), ter afinal deixado tal defesa inteiramente desguarnecida relativamente àquele de quem, à partida, se poderão esperar maiores e mais perigosos ataques à consistência do direito ao salário — o empregador, que assim teria o caminho livre para pressionar o trabalhador a remitir a dívida. O legislador como que teria barricado as janelas, deixando, porém, a porta aberta… pois, repete-se, parece evidente que a necessidade de tutela do salário se faz sentir com muito maior intensidade nas relações com o empregador do que face a terceiros.[31]

Notas

1 Permitam-me três notas muito breves: a primeira, para felicitar o Centro de Formação Jurídica e Judiciária da Região Administrativa Especial de Macau, na pessoa do seu Director, Dr. Manuel Trigo, pela organização deste seminário; a segunda, para agradecer o convite que tiveram a gentileza de me endereçar e a forma insuperável como todos me receberam em Macau; a terceira, para reiterar que foi com particular satisfação que, nesta ocasião, pude reencontrar amigos e colegas que há demasiado tempo não via.

2 «Introdução ao estudo da retribuição no direito do trabalho português», Revista de Direito e de Estudos Sociais, 1986, p. 67. De resto, a Lei das Relações de Trabalho de Macau (Lei n.º 7/2008, de 18 de Agosto de 2008), ao definir as noções de «empregador» e «trabalhador», nas als. 1) e 2) do art. 2.º, não deixa de aludir ao pagamento/recebimento da remuneração.

3 De todo o modo, e como facilmente se perceberá, convém evitar que a parte não pecuniária da retribuição assuma proporções demasiado vastas. É que numa economia mercantil o salário há-de assumir, em regra, uma forma monetária, há-de consistir basicamente numa quantia de dinheiro livremente disponível. Com efeito, só o pagamento em dinheiro preserva a liberdade de escolha dos seus consumos por parte do trabalhador, o que é inegavelmente reclamado pelo art. 6.º da Convenção n.º 95 da OIT, sobre a protecção do salário. Note-se que, como é óbvio, estamos a falar da livre disponibilidade, pelo trabalhador, do seu salário (isto é, do objecto mediato do direito) e não do seu crédito ao salário — cuja disponibilidade se encontra, como veremos infra, assaz limitada. Por outras palavras: a livre disponibilidade refere-se àquilo que o trabalhador pode fazer ao salário-dinheiro (depois de cumprida a obrigação e, portanto, satisfeito o direito) e não ao salário-direito, ao salário enquanto situação de poder ou de prevalência, enquanto jus ad rem.

4 Recorde-se que, nos termos do art. 935.º do CCivil de Macau, «é considerada doação a liberalidade remuneratória de serviços recebidos pelo doador, que não tenham a natureza de dívida exigível».

5 Ainda que assim fosse, sempre se diria que o nomen utilizado pelas partes (gratificação, prémio, recompensa, etc.) para identificarem estas atribuições patrimoniais não bastaria para as descaracterizar enquanto elemento integrante da retribuição do trabalhador, sempre que tais atribuições patrimoniais lhe fossem juridicamente devidas, assumindo carácter vinculativo para o empregador.

6 Ainda que, como observa JÚLIO GOMES, entre a retribuição e as gorjetas, realidades distintas, possam registar-se interferências mútuas (Direito do Trabalho, vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pp. 769-770).

7 Fará sentido introduzir este critério distintivo? E, a ser introduzido tal critério, a solução não deveria será oposta? Não deveriam integrar a retribuição aquelas gorjetas cuja cobrança fosse controlável pelo empregador?

8 Importa sublinhar que a retribuição variável, enquanto retribuição exclusivamente calculada em função do resultado ou do rendimento do trabalho, não é incompatível com a circunstância de o contrato de trabalho ser um negócio jurídico por força do qual o trabalhador se compromete, tão-só, a prestar a sua actividade em benefício e sob a autoridade do empregador. Em qualquer contrato de trabalho, independentemente da modalidade de retribuição praticada, o respectivo objecto consiste, na verdade, na prestação de uma actividade laborativa por banda do trabalhador, sendo a realização desta actividade — e não a obtenção do respectivo resultado — aquilo que se encontra in obligatio. Todavia, e ao invés daquilo que sucede quando estamos perante a chamada retribuição certa, o resultado da actividade desenvolvida pelo trabalhador assume extrema importância em sede de retribuição variável, não tanto para apurar se o trabalhador cumpriu ou não as suas obrigações (maxime se prestou a respectiva actividade com o zelo e a diligência exigíveis), mas sim para determinar o montante da contrapartida patrimonial devida pela entidade empregadora. Assim, na hipótese de retribuição variável, o trabalhador não deixa de cumprir o contrato caso não atinja os resultados pretendidos, mas o certo é que o seu inêxito acaba por se repercutir negativamente em sede remuneratória.

9 Colectânea de Leis do Trabalho, Coimbra Editora, Coimbra, 1986, p. 89.

10 A lei refere-se ainda ao âmbito e ao cálculo da remuneração de base, nos arts. 60.º e 61.º.

11 Note-se que a anterior lei do trabalho de Macau (o DL n.º 24/89/M, de 3 de Abril) exigia a autorização prévia da DSTE para que tal diminuição pudesse ocorrer (a este propósito, vd. BENTO DA SILVA e MIGUEL QUENTAL, Manual de Formação de Direito do Trabalho em Macau, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, 2006, pp. 55 e 120). A LRT, pelo contrário, limita-se a exigir que o acordo escrito entre as partes seja comunicado à DSAL (art. 59.º, n.º 5 e 6) – o que, reconheça-se, é manifestamente curto.

12 O CT português consagra a garantia da irredutibilidade da retribuição no seu art. 129.º, n.º 1-d), nos termos do qual é proibido ao empregador «diminuir a retribuição, salvo nos casos previstos neste Código ou em instrumento de regulamentação colectiva de trabalho». Esta proibição de regressão salarial (trata-se, é claro, do salário nominal, não do salário real, o qual é inexoravelmente corroído pela inflação…) significa que não é lícita a diminuição da retribuição, nem por decisão unilateral do empregador, nem mesmo por mero acordo inter partes (a baixa de categoria, caso implique diminuição da retribuição, está sujeita às exigências constantes do art. 119.º do CT, entre elas a da respectiva autorização pelo serviço com competência inspectiva do ministério responsável pela área laboral). Dir-se-ia que a lei procura furtar o trabalhador a possíveis pressões da entidade empregadora, num domínio que para aquele é vital.

13 Outros traços regimentais confirmam a maior dureza do regime macaense: assim é que, por exemplo, a duração do período anual de férias corresponde, em Macau, a seis dias úteis (art. 46.º da LRT), ao passo que em Portugal ela se prolonga por, pelo menos, 22 dias úteis (art. 238.º do CT); tal como o limite máximo do período normal de trabalho semanal corresponde, em Portugal, a 40 horas (art. 203.º, n.º 1, do CT), elevando-se a 48 horas em Macau (art. 33.º, n.º 1, da LRT).

14 Na ausência de acordo expresso entre as partes, a lei presume que o período de referência é o mês (art. 59.º, n.º 4, da LRT).

15 Diferentemente, nos termos do n.º 4 do art. 278.º do CT português, o montante da retribuição deve estar à disposição do trabalhador na data do vencimento ou em dia útil anterior, pelo que o empregador ficará constituído em mora se o trabalhador, por facto que não lhe seja imputável, não puder dispor do montante da retribuição na data do vencimento (n.º 5 do mesmo preceito). Como observa MENEZES LEITÃO, verificar-se-á mora no pagamento da retribuição sempre que o atraso no pagamento desta não seja imputável ao trabalhador, não se exigindo que a causa do atraso seja imputável ao empregador, pelo que este responderá objectivamente por atrasos no pagamento devidos a caso fortuito (Direito do Trabalho, Almedina, Coimbra, 2008, p. 434). Também aqui, por conseguinte, o regime português se afasta do macaense.

16 Aliás, também no caso de cessar a relação de trabalho o empregador deverá pagar todas as remunerações devidas no prazo de nove dias úteis, contados a partir da cessação, como decorre do disposto no art. 77.º da LRT.

17 Direito do Trabalho, 13.ª ed., Almedina, Coimbra, 2004, p. 480.

18 Assume aqui particular acuidade o problema dos trabalhadores contratados a termo. Com efeito, um trabalhador contratado, por hipótese, pelo prazo de seis meses, vê prescrever os créditos de que é titular um ano após o termo deste contrato (ou seja, um ano, ou pouco mais, após o vencimento desses créditos). Ora, isto revela-se iníquo, até porque, na maioria dos casos, são estes os trabalhadores menos conscientes dos seus direitos e mais carentes de protecção legal.

19 Para maiores desenvolvimentos sobre o regime da prescrição dos créditos laborais em Macau, vd. J. C. BENTO DA SILVA e MIGUEL QUENTAL, Manual de Formação de Direito do Trabalho em Macau, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, 2006, pp. 128-131.

20 Nada disto, porém, invalida o que se escreve supra, isto é, que o empregador pode, pagando o salário, exigir quitação. Esta quitação será, aliás, normalmente dada mediante a assinatura, pelo trabalhador, do duplicado do documento previsto neste n.º 6, assim se constituindo um documento particular que prova o recebimento, pelo credor, das importâncias nele enunciadas. Mas, note-se, apenas dessas importâncias! Como escreve JORGE LEITE, «o recibo assinado pelo trabalhador só prova que este recebeu as importâncias nele discriminadas, mas não prova que nenhumas outras lhe sejam devidas» (Colectânea de Leis do Trabalho, cit., p. 96). Significa isto, ao menos numa certa visão das coisas, que o trabalhador, assinando embora o duplicado do documento previsto no n.º 6, não dá propriamente quitação ao empregador, não o considera quite, livre da sua obrigação. Assinando o referido duplicado, o trabalhador confirma, tão-somente, que recebeu determinadas importâncias. Saber se estas coincidem ou não, ponto por ponto, com o montante em dívida é, porém, toda uma outra questão. De resto, nem poderia ser de outra forma, sabendo-se como se sabe que a obrigação de entrega daquele documento assenta, nas palavras de JORGE LEITE, «na presunção de que o trabalhador se não encontra, no momento em que recebe as prestações e, eventualmente, assina os recibos, em condições de conhecer os montantes dos seus créditos» (ob. e loc. cit.).

21 Como escreve VAZ SERRA, «a vontade de remitir supõe que o credor conhece a existência da dívida (…) ou que o credor tem dúvidas acerca da existência da dívida e quer remiti-la para o caso de existir» («Remissão, reconhecimento negativo de dívida e contrato extintivo da relação obrigacional bilateral», Boletim do Ministério da Justiça, n.º 43, 1954, p. 80).

22 Aspecto a que o próprio legislador se mostrou sensível, ao exigir que a entidade empregadora entregue ao trabalhador um documento (o chamado «boletim de pagamento») onde constem, de forma discriminada, as importâncias pagas e os descontos efectuados (art. 63.º/6 da LRT). Como se disse, parece evidente que, com esta especial exigência, a lei procurou conferir ao trabalhador um meio para este poder eficazmente controlar, a posteriori, a exacta medida em que os seus créditos estão (in)satisfeitos — objectivo que, no entanto, resulta comprometido cada vez que o trabalhador, no preciso momento em que recebe a prestação, declare nada mais ter a exigir do empregador, ou fórmula similar.

23 Na lição de VAZ SERRA, «se o credor reconhecer que a dívida não existe, e o fizer com a intenção de extinguir uma dívida existente, haverá remissão» (art. 13.º, n.º 2, da proposta de articulado sobre o reconhecimento negativo de dívida – loc. cit., p. 96).

24 Nos termos do art. 422.º, n.º 1, do CCivil de Macau, «se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo». Sobre esta figura, vd., por todos, ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, vol. I, Almedina, Coimbra, pp. 398-402.

25 Pense-se, designadamente, nas hipóteses clássicas de suspensão do contrato devido a um impedimento temporário do trabalhador, por doença ou acidente. Para maiores desenvolvimentos sobre o ponto, vd. JORGE LEITE, «Notas para uma teoria da suspensão do contrato de trabalho», Questões Laborais, n.º 20, 2002, pp. 121 e ss.

26 Das Obrigações em Geral, cit., p. 398.

27 Sobre o papel da exceptio non adimpleti contractus como meio de tutela do crédito salarial, vd. JOSÉ JOÃO ABRANTES, «Salários em atraso e excepção de não cumprimento», Direito do Trabalho – Ensaios, cit., pp. 71-92, e JOÃO LEAL AMADO, A Protecção do Salário, sep. do Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, 1993, pp. 102-114. Em geral, sobre o instituto da excepção de não cumprimento no contrato de trabalho, JÚLIO GOMES, Direito do Trabalho, cit., pp. 869-878.

28 A suspensão do contrato de trabalho consiste, nas palavras de JORGE LEITE, na «coexistência temporária da subsistência do vínculo contratual com a paralisação de algum ou alguns dos principais direitos e deveres dele emergentes» (Direito do Trabalho, vol. II, Serviço de Textos da Universidade de Coimbra, p. 170.). Trata-se de um instituto que se filia no princípio da conservação do contrato, traduzindo-se numa manifestação do direito à estabilidade no emprego e, em certos casos, num mecanismo de protecção do devedor transitoriamente impossibilitado de cumprir, através da garantia do chamado «direito ao lugar».

29 As regras são outras caso se trate de faltas motivadas por acidente de trabalho ou doença profissional (justificadas, sem a limitação temporal acima referida, nos termos do art. 50.º, n.º 2, al. 6). Mas, em contrapartida, as próprias faltas resultantes de doença contraída devido a gravidez, parto ou aborto involuntário, só se têm por justificadas durante o período máximo de três meses (al. 8) do mesmo preceito legal).

30 A lei diz que o empregador poderá «resolver» o contrato independentemente de justa causa, mas parece que o termo mais correcto seria «denunciar», visto que estamos a falar de um espaço de decisão livre, discricionário e não motivado do empregador. Curiosamente, a LRT parece reservar o termo «denúncia» para a desvinculação contratual durante o período experimental (arts. 18.º, n.º 4, e 74.º). Por uma questão de pudor?

Refira-se que esta liberdade de denúncia contratual pelo empregador já estava consagrada, no ordenamento jurídico de Macau, no domínio da legislação precedente (art. 47.º do DL n.º 24/89/M). A este propósito, e em perspectiva crítica, BENTO DA SILVA e MIGUEL QUENTAL, Manual, cit., pp. 156-160.

31 Suscita-se ainda a questão de saber se as limitações à renúncia valem apenas durante a vigência do contrato de trabalho ou se sobrevivem à cessação da relação laboral. Em Portugal, a questão tem sido muito discutida, sendo que parece defluir da jurisprudência até hoje dominante que a ratio da irrenunciabilidade dos créditos salariais residiria apenas na natureza própria da relação juslaboral, enquanto relação marcada pela subordinação — o que implicaria que, cessando o contrato, a renúncia passaria a ser amplamente admissível. A nosso ver este é um entendimento redutor, dir-se-ia mesmo que infundadamente unidimensional, da questão. Com efeito, a irrenunciabilidade é outrossim reclamada pela natureza do próprio direito ao salário, enquanto direito marcado por uma nota fortemente alimentar, sendo evidente que a função alimentar da retribuição não se altera com a cessação do contrato, pelo que não se vislumbram razões válidas para baixar a guarda ao direito ao salário após a extinção do vínculo laboral. Urge, pois, superar a perspectiva tradicional — unidimensional — sobre esta questão, substituindo-a por uma perspectiva bidimensional que funde a tendencial irrenunciabilidade dos créditos salariais, não apenas no carácter hierarquizado ou subordinado da relação de trabalho, mas também na função alimentar desempenhada por estes créditos, função que subsiste mesmo após a dissolução do contrato de trabalho.

*Professor Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Comunicação apresentada, dia 26
de Junho de 2009, num seminário sobre o «Novo Regime das Relações de Trabalho»,
organizado pelo Centro de Formação Jurídica e Judiciária.

1/01/2010

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