Professores

O contacto com os alunos foi uma experiência compensadora

Professor de Ciência Política e Direito Internacional nos anos lectivos de 1988/1989 e 1989/1990, Vitalino Canas coordenou também o lançamento do Curso de Direito em Macau. Mestre em Direito pertence aos quadros da Faculdade de Direito de Lisboa e actualmente encontra-se a leccionar na Faculdade de Direito da Universidade Eduardo Mondlane em Moçambique. Note-se, contudo, que esta entrevista remonta a meados de Maio do ano em curso não tendo sido possível inclui-la na nossa anterior edição por limitações de tempo. Relativamente à sua actividade como docente em Macau considerou, que apesar das dificuldades vindas do exterior.

«O contacto com os alunos foi uma experiência compensadora»

«O Direito» — O senhor esteve a dirigir o Gabinete do Curso de Direito, que numa fase inicial coordenou o arranque do Curso de Direito de Macau. Como perspectiva essa fase inicial do Curso de Direito?

Vitalino Canas — Foi uma fase atribulada. Em si, a ideia da criação de uma escola de Direito era límpida e maioritariamente aplaudida. Penso que se cometeu apenas um pecado original no início: aceitar mudar de agulha. O curso era para ser exclusivamente patrocinado e promovido pela Administração do Território. Criar-se-ia uma Faculdade pública autónoma. Depois decidiu-se ceder às pressões da Universidade no sentido de lhe ser dada a oportunidade de absorver o curso, o que lhe convinha uma vez que era uma maneira de se revelar útil e de dar um passo na batalha da sobrevivência que travou desde o seu nascimento até 1988. Para além disso, calcularam-se mal as divergências e rivalidades tradicionais entre as duas grandes escolas portuguesas de Direito e julgou-se ser possível juntá-las sem dificuldade num projecto desta delicadeza, erro agravado pelo facto de já se ter na altura entregue o projecto a uma delas, a Faculdade de Direito de Lisboa.

«D.» — Posteriormente, numa fase em que o Curso estava ligado à Faculdade de Direito de Lisboa em que o senhor era assistente, começaram a surgir algumas dificuldades com a instituição que tutela o Curso em Macau. Trataram-se de dificuldades de concepção do Curso; dificuldades administrativas, ou dificuldades a nível de personalidade das pessoas envolvidas?

V.C. — Muitas das dificuldades resultaram do pecado original. Desde logo porque a Universidade «contaminou» o curso de Direito. Isto é, os problemas que afligiam a Universidade passaram-se sem qualquer atenuante para o curso, afectando-o. Depois, porque tendo sido inicialmente incumbido de coordenar tudo o que dizia respeito à criação do curso de Direito, o Gabinete do Curso de Direito se viu obrigado a prescindir das suas prerrogativas e a breve trecho a apagar-se quase totalmente, deixando a iniciativa a outras entidades. Não menos importante era a guerra surda entre as duas Faculdades portuguesas, a de Lisboa pretendendo manter a liderança do projecto que lhe havia sido inicialmente garantida, a de Coimbra procurando partilhá-lo em termos de igualdade, como também lhe havia sido prometido posteriormente.

Todos os problemas pessoais e de relacionamento que de facto surgiram foram potenciados por mal entendidos, hesitações, suspeições, ressentimentos, causados por essas indefinições e choques institucionais. O velho provérbio «casa onde não há pão todos ralham e ninguém tem razão» pode aqui ser adaptado. Não tenho qualquer dúvida que se tivesse havido logo no início uma clara definição do «quem é quem» a situação não se teria degradado.

Houve também problemas administrativos criados pelo imenso caos administrativo em que se encontrava a UAO.

«D.» — No início do Curso de Direito, concomitantemente, surgiu um ano propedêutico. Com que objectivos?

V.C. — Estudar o Direito gerado por um determinado sistema jurídico não supõe apenas engolir leis, decretos-leis e teorias. Exige um background cultural que permita entender o espírito do sistema. Esse background era e é absolutamente inexistente em muitos dos potenciais destinatários do curso, pelo menos daqueles cuja raiz civilizacional não é a mesma que a portuguesa. O ano propedêutico destinava-se a proporcionar uma certa igualdade de oportunidades à partida.

«D.» — No segundo ano de funcionamento do Curso de Direito o ano propedêutico, quase funcionou sem alunos. Qual o motivo?

V.C. — Ignoro. Já lá não estava.

«D.» — A ligação do Curso às realidades de Macau, que está a ser novamente «esgrimida» que significado tem para si?

V.C. — Qualquer curso universitário que se destine a criar quadros para servir uma comunidade tem de ter qualquer ligação com essa comunidade, senão não faz sentido. Por isso sempre acompanhei, e continuo a fazê-lo, aqueles que defendem que o curso deveria ser bilingue. Não significa isso que o seja do pé para a mão, já amanhã. As grandes revoluções fazem-se gradualmente, ao contrário do que muitos pensam. Se eu tivesse continuado com responsabilidades na direcção do curso garanto que ele já teria alguns laivos de bilinguismo: pelo menos já haveria qualquer coisa escrita em duas línguas (não percebo o que é feito da tradução em chinês do livro do Prof. Ascenção, O Direito, já muito adiantada quando saí) provavelmente algumas aulas práticas já conheceriam essa componente, se calhar alguns dos alunos bilingues mais dotados já estariam a colaborar com os professores na transmissão dos conhecimentos. Infelizmente nunca saberemos se tenho razão porque não foi sequer dada a oportunidade de ter sucesso (ou de falhar…).

Mas independentemente disso a ligação do curso às realidades de Macau não me parece em causa. Mesmo que só em português, o curso tem utilidade para o Território. A simples existência de uma Faculdade de Direito contribui decisivamente para o aprofundamento da cultura jurídica da comunidade e, por essa via, para o aperfeiçoamento do Estado de Direito.

«D.» — O senhor foi o regente da cadeira de Ciência Política do 1.º ano e da cadeira de Direito Internacional Público do 2.º ano do Curso de Direito. Como perspectiva essa experiência?

V.C. — Já tinha dado Ciência Política na FDL e no Centro de Apoio da Madeira. Em Macau limitei-me a aprofundar os aspectos de Teoria Geral e a procurar sistematizar algumas ideias básicas sobre o funcionamento do sistema político de Macau. O resultado ficará exposto no Manual de Ciência Política que como sabem está para sair. Quanto ao Direito Internacional, foi aqui que iniciei a minha experiência docente, pelo que o esforço foi maior. O facto de já ser Chefe de Gabinete do Governador não me permitiu aprofundar tanto quanto desejaria os temas, particularmente aqueles que considero mais aliciantes, relacionados com o estatuto internacional do Território. Não perdi ainda a esperança de o fazer mais tarde.

Mas talvez a experiência mais interessante e mais compensadora tenha sido, apesar de todas as dificuldades vindas do exterior a do contacto com os alunos.

«D.» — Entretanto além de professor universitário o senhor exerceu, em Macau, funções políticas. Como professor de Ciência Política que análise lhe merece a praxis política estabelecida no Território?

V.C. — Ter tido o privilégio de me manter perto do poder possibilitou-me o contacto com uma praxis política difícil de encontrar noutro local, a não ser, talvez em Hong Kong. Destaco quatro fenómenos perturbadores para os figurantes políticos, mas interessantes para o politicólogo: o fenómeno da ausência de política a longo prazo, senão mesmo a ausência total de política; o fenómeno da solidão no exercício do poder; o fenómeno da absoluta descoordenação entre o representante e o representado (na relação entre órgãos de governo local e órgãos de soberania da República portuguesa); o fenómeno do pluralismo sem democracia.

Qualquer deles daria uma monografia universitária. Em suma, diria que o fenómeno da ausência de política a longo prazo resulta da transitoriedade que atingiu todos os aspectos de Macau. Mesmo que as pessoas não o digam, tem-se a sensação de que tudo o que faz (e não me refiro apenas aos portugueses) é transitório, está condenado a mudar ou a transformar-se. Nesse contexto é quase impossível pensar-se a longo prazo. Predomina a política do imediato. O fenómeno da solidão resulta de em Macau as pessoas que detêm o poder político não captarem a sua legitimidade da aceitação pela população. Em regra nem há apoio aos governantes nem há oposição, ou, quando há é pontual. A comunidade não conhece e muitas vezes mal sabe que existem as pessoas que condicionam aspectos do seu dia a dia. O governante entra sozinho, não cria amigos e um dia vai-se embora, talvez mais sozinho. Noventa e nove por cento da população não reparou. Por outro lado a fonte de onde vem a legitimidade são os órgãos de soberania da República. Mas também aí a solidão, se não existir no início, surge em qualquer ocasião. Os governantes, a partir do momento em que atingem a revelação do que é Macau, tornam-se incompreensíveis para Lisboa que os abandona pura e simplesmente. Particularmente o Governo português. Daí a descoordenação que se tem assistido nos últimos tempos, com ónus visíveis para Macau. Finalmente, assiste-se a algo que considero um fruto do génio português para se adaptar às circunstâncias: O pluralismo sem democracia. Em Macau há tanta ou mais liberdade do que na maioria das sociedades ocidentais. No entanto salvo algumas excepções a nível da Assembleia Legislativa, os titulares dos órgãos do poder não são eleitos por sufrágio universal nem têm qualquer vínculo de representatividade em relação à população.

«D.» — Já manifestou a ideia de que vai preparar tese de doutoramento. Já decidiu qual a área que vai preparar? Em que área foi a sua tese de mestrado?

V.C. — Fiz o Mestrado na área do Direito Constitucional, com uma tese sobre os processos de fiscalização da constitucionalidade e da legalidade. Quanto ao doutoramento, já fui admitido há três anos, sendo o tema da tese «As restrições dos direitos fundamentais». A passagem por Macau atrasou-a um pouco, mas conto dedicar-me de novo à investigação logo que regresse a Portugal.

«D.» — Recentemente a nível da área da justiça surgiram opiniões divergentes, no Território, relativamente aos diplomas que instituíram o notariado privado e sobre a futura Lei de Bases da Organização Judiciária de Macau. Qual a sua opinião sobre a oportunidade destes diplomas?

V.C. — Embora a justiça não pressuponha obras ou realizações tão visíveis como os aeroportos, as pontes, as estradas, os prédios, sempre estive convencido de que a presença portuguesa passa mais por ela do que pelas obras ou pela permanência de empresas portuguesas. A Lei de Bases deve ser perspectivada nesse contexto, mas suponho que as divergências no Território têm resultado sobretudo de questões secundárias, relacionadas com a posição dos agentes da justiça e não de controvérsia sobre a filosofia.

Os notários privados resultam duma medida corajosa que aplaudo, quer como cidadão quer como jurista. Desde que a segurança e a certeza do direito estejam acautelados (e creio que estão) a competição, não faz mal a ninguém.

«D.» — Na edição de «O Direito» de 8 de Junho de 1990 foi publicado um artigo sobre o início de vigência das leis no ordenamento de Macau, em que era analisada a nomeação, posse e delegação de competências de um secretário-adjunto, tendo-lhe sido imputada a autoria do artigo apesar de o seu nome não aparecer na ficha técnica de colaboradores. O motivo teria tido a ver com a sua posição relativamente ao perfil (a opção entre um civil e um militar) para o cargo de secretário-adjunto para a Segurança?

V.C. — Fui um dos mentores da tese acolhida pelo Governador quanto à posse do Brigadeiro Tomé Falcão. Além disso tenho trabalhos publicados que embora não se refiram ao tema explicitamente, dão indicação de que não poderia defender o que foi escrito pelo meu amigo Jorge Silveira. Por isso fui apanhado de surpresa quando as tradicionais «mãos amigas» me inteiraram do nervosismo que ia por aí, sobretudo por alguém se ter lembrado de alvitrar que o chefe do gabinete do Governador tinha iniciado uma guerrilha contra o novo Secretário-Adjunto. São os complots de Macau a que não resisto a achar, à distância, uma certa piada.

«D.» — O senhor defende a ideia que os direitos fundamentais referidos na Constituição portuguesa se aplicam a Macau por remissão do artigo n.º 2 do Estatuto Orgânico de Macau. Após a recente revisão do Estatuto Orgânico continua a defender a mesma tese?

V.C. — Não todos os direitos fundamentais. Apenas os direitos liberdades e garantias e os direitos de natureza análoga.Continuo a defender a ideia, agora com convicção acrescida. Quem acompanhou a revisão do Estatuto, particularmente na sua parte final (durante e após a apreciação pelo Conselho de Estado), verificou que a tese que prevaleceu foi justamente essa, tendo-se feito até um esforço para lhe conferir mais abundante base textual, introduzindo-se referência aos referidos direitos em outros locais do EOM.

«D.» — Uma das questões em aberto do tempo da governação de Carlos Melancia foi a nomeação de um alto comissário contra a corrupção. Considera necessária a criação de um organismo especificamente vocacionado para combater a corrupção, ou os tribunais poderiam desempenhar esse papel?

V.C. — Bem, a intenção não é substituir os tribunais, que mantêm incólume a sua jurisdição. O que sucede é que tal organismo vem ocupar campo no espaço antes ocupado pelo Ministério Público e autoridades policiais. É um pouco difícil afiançar a imprescindibilidade do organismo quando o próprio responsável da estrutura congénere em Portugal a põe em causa. Mas parece-me que mesmo que não seja absolutamente necessária a criação ela terá um impacto positivo, particularmente se não se exagerarem as expectativas de resultados. Se não for submetido a uma pressão ou descrença prematuras e se deixarem os seus responsáveis trabalhar com calma.

«D.» — A opção tomada relativamente à nomeação do novo governador de Macau acentua a tónica de uma colaboração institucional entre o Presidente da República e o Governo português. Considera que esta fórmula é suficiente para manter a estabilidade? É que se o governo mudar (mudando o partido político ou partidos que governam) essa fórmula aparentemente deixa de ter significado?

V.C. — A opção agora tomada já se adivinhava há uns tempos até porque era defendida por cada vez mais pessoas. Sem discutir se isso representa ou não uma capitulação, como alguns defendem julgo que o presidente da República fez um esforço meritório no sentido de encontrar uma solução que garanta o diálogo fácil com o governo da República, de quem têm dependido e continuarão a depender aspectos importantes do quotidiano e do futuro do Território.

Falta saber se o Governo da República se vai finalmente considerar corresponsabilizado e solidário com a gestão política do Território, como deveria se houvesse sentido de Estado, ou se vai continuar a assobiar e a olhar para o lado, ao mesmo tempo que se procura servir de Macau como arma de arremesso contra os seus mais directos adversários políticos. É claro que os compromissos quando não resultam de mecanismos institucionais, mas sim de acordos entre pessoas são ameaçados com a mudança dessas pessoas. Uma coisa é certa: a saída do Prof. Cavaco Silva não obrigará o PR a nomear novo Governador, uma vez que estatutariamente este continua apenas a depender do Presidente. Por isso, o melhor é rezar para que o próximo Governo da República perceba um pouco melhor que não se pode brincar com Macau.

Texto publicado na edição de ‘O Direito’ de Novembro de 1991.

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