Sobre o ensino do Direito em Macau
Vitalino Canas*
I — Não será desproporcionado dizer que a Declaração Conjunta do Governo da República Portuguesa e do Governo da República Popular da China sobre a questão de Macau, põe termo a dúvidas e contendas jurídicas de vários séculos, ao definir finalmente, em instrumento internacional de legitimidade e validade reconhecida por ambos os Estados, o estatuto de cada um deles relativo ao Território de Macau, com os respectivos direitos e deveres mútuos, bem como os poderes de cada um. Nem todos se aperceberam nos primeiros momentos que a Declaração Conjunta não era um mero rol de intenções, mais ou menos vinculantes jurídica e politicamente. A verdade é que dela saltaram verdadeiros deveres para o Estado português, a serem cumpridos por ele próprio directamente, ou por via indirecta, através dos órgãos de governo do Território.
Mais: sobre o Estado português incide a primeira grande dose de responsabilidade no cumprimento integral do acordo. Na verdade, muitos dos pressupostos, requisitos ou condições de natureza vária cujo preenchimento se torna necessário para que a parte chinesa possa cumprir as suas próprias obrigações, dependem da diligência portuguesa. O eventual inadimplemento português constituiria justificação suficiente para a recusa pela RPC de cumprimento das suas obrigações. E, mais grave, mesmo que RPC quisesse cumprir, não obstante o défice da performance portuguesa, não o conseguiria. 1
II — É nesta perspectiva que no próprio ano em que é rubricada a declaração conjunta (1987), o Secretário Adjunto da Administração e Justiça do executivo do Território, na altura o Dr. António Vitorino, lança a ideia da criação de um curso de Direito em Macau. Desde então e até 1990 estive ligado, a vários títulos, à concepção e lançamento (em 1988) do curso na Universidade de Macau. Não parecerá estranho que algumas das ideias aqui propostas sejam expressas com alguma paixão que lhes tirará, porventura, objectividade. Uma ou outra poderá contender com a filosofia actual do curso, mas se assim acontecer deve ser entendida como contribuição, mais do que como crítica. Confio porém em que os pontos comuns excedem largamente os divergentes. Até porque muitas das convicções aqui expostas terão já sido expressas por outros, nomeadamente no encontro de Setembro de 1987, em Macau, justamente sobre o curso de Direito, na altura ainda em projecto. E hoje mesmo, de manhã, fê-lo o Dr. António Hespanha com clareza e concisão que não conseguirei imitar.
III — Embora não faltasse quem pusesse em causa a própria utilidade do ensino do direito em Macau, os objectivos deste são, na minha perspectiva, bastante respeitáveis. Passemo-los em revista.
IV — (I) Criar um quadro de agentes reconhecedores do direito localmente enraizados. Mesmo que não se adira por inteiro às modernas teorias juspositivísticas, poder-se-á aceitar facilmente que qualquer sistema jurídico tem de incluir uma espécie de “norma de reconhecimento”, 2 que faculte aos operadores do direito um conjunto de critérios — mais ou menos formais, mais ou menos materiais — que são utilizados para distinguir o Direito do que não é Direito. Essa regra de reconhecimento nunca tem uma formulação inteiramente precisa nem um traço expresso. Resulta em grande medida da aceitação social dos próprios operadores do Direito. 3
Uma das primeiras funções do ensino do Direito é preparar pessoas capazes de se inserir sem perturbação nessa comunidade restrita e mais ou menos elitista dos operadores do Direito. Até aqui nada de novo. Macau não fugiria à regra se só se tratasse disto. Mas em Macau o consenso social sobre o que é Direito é bastante mais frágil do que o que encontramos nas sociedades de forte e unívoca tradição jurídica romanística ou anglo-saxónica. Por isso o ensino do Direito em Macau não pode ainda partir desse consenso como dado mais ou menos adquirido; diversamente, tem de partir de um momento logicamente muito anterior: o momento em que ainda se discutem as próprias bases do consenso, momento primitivo de qualquer sistema jurídico.
V — (II) Contribuir para a criação de uma cultura do Direito. O Direito em Macau tem-se baseado numa tensão equívoca entre dois vectores. Por um lado, há o conjunto normativo importado de Portugal, produzido umas vezes por entidades formalmente incluídas na organização política do Estado português, outras por órgãos da Administração do Território de Macau. Por outro, há o conjunto de tradições, culturas, influências, idiossincrasias, trazidas por 90% da população dos lugares donde é originária, nomeadamente da China. O resultado da tensão entre estes dois vectores é uma interiorização da regra e do dever jurídico anormalmente deficitária.
Na verdade, é notório que o Direito proveniente de fora, dos portugueses, é um Direito estranho, não é socialmente radicado. É um Direito a que só se recorre, ou que só se reconhece, raramente, embora em contrapartida não haja manifestações claras de rejeição. Por isso, por exemplo, o grau de recurso aos tribunais para resolver contendas civis, ou mesmo para justiçar actos do foro criminal é nitidamente inferior ao que encontramos noutras sociedades.
Acresce que na China e nas sociedades donde são provenientes a maior parte dos habitantes de Macau, o Direito ou é entendido como um conjunto de regras prudenciais, cujo cumprimento possibilita a mais fácil satisfação de um interesse, ou é entendido como ordem autoritária e instrumento de domínio de quem tem o poder, que só se cumpre ou respeita quando não se lhe pode fugir. Apesar da escola dos legalistas 4 ter estudado na China aspectos da lei de que os filósofos europeus da altura nem sequer tinham consciência, o Direito sempre teve um papel modesto na ordenação da sociedade chinesa, ao contrário da Ética.
Por isso, enquanto nas sociedades que nos são culturalmente próximas a comunidade tem uma forte consciência jurídica, isto é, em percentagem elevada 5 conhece e reconhece os seus deveres jurídicos como deveres e não como meras imposições estranhas, na sociedade de Macau os 450 anos de presença portuguesa não tiveram grande sucesso no aumento da percentagem da população etnicamente chinesa que encara e interioriza o Direito como uma fonte de obrigações que devem ser respeitadas independentemente das consequências resultantes do não respeito.
O ensino do Direito também aqui tem de partir de trás. Muito mais do que em outras latitudes, a Faculdade de Direito em Macau tem de criar verdadeiros propagandistas do Direito como modo adequado e indispensável de ordenamento social. Portanto quando se fala de universalização do Direito, não se pode entender o conceito só como expressão de um intuito de mera divulgação e publicitação do Direito existente. A universalização do Direito implica, em Macau, a própria universalização do entendimento do Direito como instrumento social privilegiado de convivência, de justiça e progresso.
VI — (III) Contribuir para a criação de um Direito localmente enraizado. A Declaração Conjunta determina no seu ponto (4) que “os actuais sistemas social e económico em Macau permanecerão inalterados, bem como a respectiva maneira de viver; as leis vigentes manter-se-ão basicamente inalteradas”. Uma interpretação — ou utilização — possível desta cláusula seria a de que ela pretende “preservar o Direito português em Macau”. Embora possível, é uma interpretação irrealista. Primeiro, porque, como sustentei antes, o Direito português qua tale tem revelado pouca capacidade de aderir à realidade macaense. Tentar preservá-lo em meia dúzia de anos, quando não se conseguiu impô-lo no universo da comunidade em vários séculos, seria tarefa gigantesca. Em segundo, porque preservar soa demasiado a conservar intocado. E conservar uma obra humana intocada só se poderá ambicionar (se é que se pode) quando se trate de algo completo e perfeito. Nenhum sistema jurídico é completo e perfeito. O sistema jurídico de Macau está longe, inclusivé, de ser razoavelmente completo e perfeito, pelo que, tanto ou mais do que preservar o que quer que seja, há que criar. E o que vai ser criado no futuro por uma sociedade com certo grau de autonomia não se consegue definir com antecedência através de decretos.
A interpretação que proponho aqui é diferente: é obrigação de Portugal criar um sistema de leis tão moderno e consistente quanto possível; mas, mais do que isso, Portugal tem de criar um direito localmente enraizado. Será esse o único que poderá permanecer basicamente inalterado.
Quais são as implicações imediatas?
Desde logo, não é forçoso que o direito localmente enraizado seja o Direito português. Não quer isto dizer que este não tenha virtualidades para isso. Não significa que não possa ser adaptado. Nada obsta a que a raiz jurídica portuguesa possa contribuir decisivamente para os alicerces do Direito de Macau. Mas não é forçoso que assim seja. Partir desse ponto de vista plástico pode evitar alguns equívocos e evitará certamente muitas regras vazias ou com mera função semântica.
Depois, o direito vigente que ficará basicamente inalterado não pode ser definido por critérios meramente formais: não interessa quem aprovou, quando aprovou, como aprovou. Interessa a sua aderência substancial à consciência jurídica da comunidade.
Finalmente, a definição do critério substancial do Direito que deve ficar, do que deve evoluir, do que deve ser substituído, do que deve ser criado de novo, ou do que deve ser declarativamente codificado, cabe aos juristas locais em estreita relação dialéctica com a sua comunidade. Sobre a definição de tal critério não basta uma simples decisão política investida de autoridade.
O ensino do Direito tem, por isso, a responsabilidade de fugir a uma concepção legalística aportuguesada ou achinesada. As pessoas que formar deverão estar capacitadas para assumir a primeira linha na construção/definição/aplicação daquele critério substancial, o qual se deverá basear numa estrutura de princípios, expressos ou não, já gravados no modo de vida e na maneira de sentir a justiça da comunidade de Macau.
VII — Contribuir para o enraizamento do conceito de Estado de Direito. Do que se disse anteriormente não pode inferir-se que os diplomados em Direito devem assumir um papel neutro perante os factos sociais ou perante o dado da consciência jurídica comunitária. O jurista não é um sociólogo, nem um cientista obrigado a um duvidoso neutralismo perante o objecto da sua ciência. O jurista deve ser capaz de discernir quais os sectores do Direito que não só estão enraizados na comunidade como contém o germen do progresso e da realização dos princípios da dignidade da pessoa humana, e quais os sectores do Direito que embora enraizados, põem em causa aqueles bens. Quanto a estes últimos sectores não há que adoptar uma atitude passiva, de certificação e aplicação mecânica. Pelo contrário devem aceitar uma função de activos motores da evolução. Em Macau esta função dos operadores do Direito assume importância decisiva. Só dessa forma alguns passos no sentido da instituição de um Estado de Direito localmente adequado (deverá dizer-se Território de Direito?), se poderão tornar irreversíveis antes e depois da passagem do testemunho para a China.
O ensino do Direito deve virar-se para a criação de diplomados críticos em relação ao objecto do seu estudo ou do seu saber. Sobretudo, deve insistir na pontualização exaustiva dos princípios do Estado de Direito como princípios substanciadores de qualquer sistema jurídico legítimo e como referentes permanentes de qualquer interpretação e aplicação do Direito.
VIII — (IV) Contribuir para a universalização do Direito. Falamos de universalização num sentido diverso do evocado anteriormente (ponto V). Aqui trata-se de tornar o direito vigente universalmente conhecido pela comunidade. Não nos referimos, como dantes, à necessidade de propagandear o Direito como modus vivendi, mas à necessidade de divulgar o seu conteúdo, nas formas mais adequadas, entre as quais se conta a tradução para a língua mais corrente em Macau.Nesse campo, a Faculdade de Direito de Macau não pode rejeitar o papel laboratorial que a sua natureza de instituição científica forçosamente lhe reserva.
IX — (V) Contribuir para a criação de quadros capazes de uma gestão autocentrada do sistema. Sabe-se que uma das sentidas deficiências mais sentidas após as várias transferências por Portugal de Territórios por si administrados foi a desatenção no que toca à capacitação oportuna de quadros locais que pudessem assegurar a continuidade governativa. Em África e em outros pontos do globo deixámos cidades belíssimas, monumentos esplendorosos, alguma presença económica, mas pouca capacidade de auto-governo. Ora, nos momentos de aproximação, reconciliação ou simples relançamento de laços o que conta invariavelmente são as pessoas e as relações que elas travam, muitas vezes facilitadas por vivências culturais e académicas partilhadas, quando não pela simples linguagem comum. Em Macau não se desprezou esse aspecto, sendo a criação de um curso de Direito uma das realizações mais conseguidas nesse contexto. Falta saber se a sua posição relativa na escala de prioridades tem sido adequada. Como experiência pioneira e porventura única em muitos aspectos da formação de futuros quadros dirigentes, o ensino do Direito em Macau não pode esquecer o público a que se dirige e as necessidades muito especificas (quando cotejadas com as de um estudante normal de uma universidade portuguesa ou chinesa) que ostentam. E o Governo do Território não pode enjeitar as suas obrigações de acompanhamento pós-universitário dos diplomados em Direito pela Universidade de Macau, já a partir deste ano.
X — O espaço de que disponho nesta ocasião não permite um recenseamento exaustivo de todas as consequências práticas e sistémico-funcionais em que estes objectivos se consubstanciam. Permita-se-me que enuncie um punhado de propostas (algumas das quais, porventura, já em vias de concretização)
(I) — O ensino devia ser virado a procurar a própria essência da consciência jurídica comunitária. Por isso, não se pode encerrar nas paredes da Faculdade e nos códigos portugueses ou chineses. Uma cultura livresca mais ou menos erudita pode ser academicamente louvável, mas não corresponde ao que se espera dos diplomados de Macau;
(II) — Sem enjeitar que a dogmática jurídica continua a ter uma importância fundamental, deve reconhecer-se a estrutura aberta da norma jurídica, a sua permeabilidade permanente à realidade social no vai e vem hermenêutico da aplicação do Direito. A insistência num tratamento abstracto/dedutivo/conceptual de normas cuja raiz pode não ser totalmente local tornará a norma incompreensível ou imprestável;
(III) — Insistência num ensino principialista. Isto é, desgraduação do que é efémero num conjunto normativo e procura dos princípios perenes que o substanciam. Uma lei importante feita pelas autoridades portuguesas pode vir a ser substituída, mas nada de grave acontecerá se quem elaborar a sua substituta souber manter os princípios essenciais, mesmo que em roupagem irreconhecível;
(IV) — Desenho de um plano de estudos multidisciplinar, que abra para disciplinas que confiram uma sólida preparação doutrinária e, porventura, política: disciplinas como a Filosofia do Direito, a Ciência e Teoria Política, a Teoria do Estado de Direito, a Teoria dos Direitos Fundamentais, a Sociologia do Direito, deveriam merecer atenção redobrada, em prejuízo de disciplinas de maior pendor técnico:
(V) — Retoma da ideia do bilinguismo no ensino do Direito tão depressa quanto possível. É insustentável a prazo que o curso continue a ser quase integralmente leccionado em língua portuguesa. E interessa que sejam os académicos portugueses a conduzir a evolução;
(VI) — Criação de incentivos para que indivíduos de etnia chinesa naturais de Macau se inscrevam em maior número no curso e não o abandonem prematuramente. Prevê-se que nos próximos anos a Faculdade de Direito da Universidade de Macau diplomará 15 a 20 candidatos por ano, número curto se tivermos em conta que alguns poderão deixar Macau. Para além disso há que garantir que a Faculdade permaneça depois de 1999, o que pressupõe que a partir do ano lectivo de 1995/6 esse esforço de captação deve acentuar-se;
(VII) — Negociação com as autoridades da RPC de modo a garantir que os indivíduos ligados às suas estruturas que pretendam adquirir conhecimentos jurídicos na perspectiva de desempenharem funções em Macau, façam o seu percurso académico na Universidade de Macau e não nas Universidades da RPC;
(VIII) — Negociação da possibilidade de juristas formados na RPC e escolhidos para exercer funções em Macau tomarem contacto com o Direito local através de seminários preparados pela Faculdade de Direito de Macau;
(IX) — Criação para os juristas locais de condições de investigação, de modo a potenciar a médio prazo um corpo de doutrina e uma escola de jurisprudência auto-sustentável no futuro;
(X) — Retoma do plano de lançamento dos melhores alunos em actividades de docência ou de colaboração no ensino antes mesmo da conclusão das respectivas licenciaturas;
(XI) — Lançamento pela Faculdade de um plano de divulgação bilingue do Direito, nomeadamente através da tradução dos materiais de estudo mais importantes, porventura em colaboração com o Gabinete de Tradução Jurídica e outras instituições;
(XII) — Generalização do debate jurídico sobre a Lei Básica de Macau, de modo a criar desde já um corpo de doutrina que assegure a sua interpretação e aplicação futura em conformidade com os princípios da dignidade da pessoa humana, que estão hoje inscritos no pórtico do sistema jurídico parcialmente erguido pela Administração portuguesa e, por conseguinte, protegidos pela Declaração Conjunta.
(XIII) — Criação de condições privilegiadas de acesso a todas as profissões jurídicas de Macau para os diplomados pela Faculdade de Direito da Universidade de Macau;
(XIV) — Como garantia de estabilidade e inclusivé de permanência em Macau desses diplomados, o curso de Direito da Universidade de Macau deveria ser genericamente reconhecido em Portugal. Comunicação apresentada no colóquio parlamentar, na Assembleia da República, sobre Macau em 30 de Março de 1993.
Notas
1 Vide Alberto COSTA, Continuidade e mudança no desenvolvimento jurídico de Macau à luz da Declaração Conjunta Luso-Chinesa, in Revista Jurídica de Macau, vol.1, 1988, pág. 53 e ss., em especial 54/5.
2 Como se sabe, a construção dos sistemas jurídicos como união de normas primárias e de normas secundárias, entre as quais se contariam as normas de reconhecimento, deve-se a H.L.A. HART, The Concept of Law, trad. port., Lisboa, Gulbenkian, pág. 104 e segs.
3 Ainda HART, ob. cit., pág. 111 e ss.
4 Sobre a escola dos legalistas Kung-chuan HSIAO, A History of Chinese Political Thought, vol. 1, Princeton, 1979.
5 Não a 100%, porque há sempre desviantes.
* Assistente da Faculdade de Direito de Lisboa. Regente do Curso de Direito de Macau nos anos lectivos 1988/1989 e 1989/1990. Dirigiu o Gabinete do Curso de Direito na fase inicial de lançamento do Curso.
Artigo publicado na edição de “O Direito” de Outubro de 1994.