1. A problemática da fiscalização da constitucionalidade, praticamente ignorada ou subestimada durante todo o século XIX, constitui um dos temas nucleares do constitucionalismo moderno. Sendo as normas constitucionais o fundamento último da actividade do Estado, elas só podem atingir o seu fim – o respeito dos direitos fundamentais e da ordem social e política constituídas – se forem simultaneamente criados meios que garantam o seu cumprimento pelos órgãos do poder.
E dado que o Estado constitucional se procura apresentar como um convicto Estado de Direito, em que o Direito serve de medida para todas as coisas, não admira que os meios de garantia que hoje merecem melhor aceitação e se consideram mais ricos sejam aqueles que se desenvolvem apenas através de valorações jurídicas e provêm de órgãos imparciais e independentes: os tribunais. Eles traduzem, no seu conjunto, a chamada fiscalização jurisdicional da constitucionalidade.
Portugal, através do artigo 63.º da sua Constituição de 1911, foi o primeiro Estado europeu a consagrar a fiscalização jurisdicional da constitucionalidade das leis. E a Constituição portuguesa actual mantém e desenvolve essa tradição, instituindo um dos sistemas mais completos do mundo nesta matéria. As suas soluções, como é natural, também se vieram a reflectir no ordenamento jurídico-constitucional de Macau, cujo Estatuto Orgânico consagra hoje diversos meios de fiscalização jurisdicional da constitucionalidade das leis.
A fiscalização jurisdicional da constitucionalidade das leis está actualmente também consagrada em diversos Estados asiáticos, especialmente naqueles que sofreram maior influência do sistema jurídico anglo-saxónico. Nalguns (no Japão e nas Filipinas, por exemplo) esse modelo tem expressa consagração constitucional.
A República Popular da China, porém, não faz a apologia deste tipo de garantia para as suas normas constitucionais. Coerente com o modelo político constitucional marxista-leninista, ela não baseia a sua estrutura constitucional nem na separação de poderes nem na interdependência recíproca entre os seus órgãos de soberania. O Congresso Nacional Popular e a sua Comissão Permanente são os órgãos que concentram o poder supremo do Estado, devendo todos os outros (incluindo os tribunais – artigo 128.º da Constituição da RPC) responder perante ele pelos seus actos. Os tribunais não devem questionar a validade das leis do Congresso, nem lhes deve caber um papel criativo na sua interpretação. Essas funções são desempenhadas pelo Congresso e pela sua Comissão Permanente, havendo portanto uma fiscalização mais política do que jurídica.
Parece-nos indiscutível que o ordenamento de Macau durante estes últimos nove anos de administração portuguesa deve continuar a consagrar com toda a clareza meios jurisdicionais de fiscalização da constitucionalidade que, inseridos na tradição jurídico-constitucional portuguesa, possam ser mantidos e desenvolvidos ao longo do século XXI. E julgamos que a Declaração Conjunta, com a solução de “um país dois sistemas”, cria condições para essa permanência e para esse desenvolvimento. Caberá, no entanto, aos habitantes de Macau a última palavra para que esse projecto se concretize.
2. A modalidade actualmente mais divulgada na Ásia de fiscalização jurisdicional da constitucionalidade é a fiscalização concreta, que surge a propósito da resolução dos litígios nos tribunais. Nascida nos Estados Unidos, onde ficou conhecida pela designação de “judicial review of legislation”, ela encontra-se hoje espalhada um pouco por todo o mundo. Na maioria dos Estados, o modelo instituído obriga o juiz (qualquer juiz – seja de tribunal de primeira instância, seja de tribunal superior) a recusar a aplicação das normas que ele considere inconstitucionais ou ilegais, pois só pode basear a sua sentença em normas válidas. Em certos países, porém, a sua consagração conduz a solução diferente: ao detectar um possível caso de inconstitucionalidade, o juiz de primeira instância tem apenas competência para levantar um incidente, fazendo-o subir em separado a um tribunal superior para apreciação e decisão final, que será vinculativa.
Este segundo modelo, que hoje vigora, por exemplo, na Alemanha (veja-se o artigo 100.º da Constituição de Bona), foi aplicado pelo Estado Novo em todas as províncias ultramarinas portuguesas, incluindo Macau. Introduzido através do artigo 199.º da Carta Orgânica do Império Colonial Português de 1933 e posteriormente mantido nas Leis Orgânicas do Ultramar de 1953 e de 1972, ele remetia a decisão do incidente da inconstitucionalidade para o Conselho Superior das Colónias (cuja designação foi mais tarde alterada para Conselho Ultramarino).
A primeira forma de conceber a fiscalização concreta parece-nos, porém, francamente preferível. Só ela reconhece a todos os tribunais a sua plena dignidade como órgãos de soberania, fazendo salientar que este tipo de fiscalização faz parte da própria essência da função jurisdicional: foi esta modalidade que Portugal introduziu na Europa, na sua Constituição de 1911 e que hoje consagra de modo inequívoco no artigo 207.º da sua Constituição actual. E ela também vigora claramente em Macau em toda a sua amplitude, por força da nova redacção dada recentemente ao n.º 1 do artigo 41.º do Estatuto Orgânico (que veio esclarecer algumas dúvidas suscitadas pela anterior redacção do n.º 3 do mesmo artigo).
O teor do artigo 41.º, n.º 1, do Estatuto Orgânico não nos merece qualquer reparo e até deveria, dada a sua importância, ser reafirmado nas disposições gerais introdutórias da futura Lei de Bases sobre a organização judiciária de Macau. Dele deriva o dever para todo e qualquer magistrado de Macau de não aplicar normas contrárias à Constituição portuguesa ou ao Estatuto Orgânico. E julgo que seria bom para Macau poder contar com disposição equivalente na sua futura Lei Básica.
3. A fiscalização concreta, apesar de indispensável, tem também as suas insuficiências. Algumas delas só podem ser superadas através da institucionalização de meios de fiscalização abstracta. Outras, porém, podem ser desde logo resolvidas na forma como se organizar o recurso das decisões resultantes da fiscalização concreta proferidas em primeira instância.
Teoricamente, existem diversas opções para organizar os recursos das decisões tomadas em sede de fiscalização concreta. Os principais modelos são os três seguintes:
1.º: Dar aos recursos relativos à inconstitucionalidade exactamente o mesmo tratamento que é dado aos recursos ordinários sobre qualquer outra matéria; a inconstitucionalidade seria sempre apreciada incidentalmente, como questão prejudicial num processo dirigido a outro fim (à resolução do litígio entre as partes), sendo resolvida pelo tribunal superior competente para conhecer de qualquer outro recurso ordinário interposto nesse processo; este é o modelo mais divulgado nos sistemas anglo-saxónicos, tendo tido consagração em Portugal metropolitano durante a vigência das Constituições de 1911 e 1933;
2.º: Instituir um recurso específico com o fim único de apreciar a inconstitucionalidade, a ser interposto directamente para o tribunal comum hierarquicamente mais elevado; a grande vantagem desta opção em relação à anterior é transformar a inconstitucionalidade na questão principal a resolver, dando-lhe assim maior dignidade, salientando a sua importância e imprimindo maior celeridade à sua resolução;
3.º: Criar, não apenas um recurso próprio, mas também um órgão judiciário especializado na sua resolução; esta solução acrescenta à anterior a vantagem da especialização, proporcionando condições para o aparecimento de uma jurisprudência constitucional mais rica e mais profunda e contribuindo para a dignificação e independência dos tribunais; este sistema, conhecido por modelo austríaco (pois apareceu pela primeira vez na Constituição da Áustria de 1920), é o actualmente vigente em Portugal, onde os recursos sobre fiscalização concreta são decididos em última instância pelo Tribunal Constitucional (artigo 280.º da sua Constituição), opção que tem aliás dado bons resultados.
O modelo que tem vigorado em Macau desde 1976 é o mesmo que está instituído em Portugal, e isso por força da redacção que o artigo 51.º do Estatuto Orgânico tinha antes da revisão operada pela Lei n.º 13/90: a administração da justiça ordinária (onde a fiscalização concreta se insere) era regulada pela legislação portuguesa. Assim, e enquanto não se concretizar a autonomia do sistema judiciário de Macau, aplica-se às decisões proferidas pelos tribunais de Macau o artigo 280.º da Constituição portuguesa, tendo o Tribunal Constitucional competência para decidir os recursos interpostos em sede de fiscalização concreta.
A recente revisão do Estatuto Orgânico, porém, altera esta situação. A nova redacção dos seus artigos 51.º e 75.º aponta para a autonomização da organização judiciária de Macau, ficando em breve os seus tribunais investidos na plenitude e exclusividade de jurisdição. Parece, assim, não fazer sentido manter a competência do Tribunal Constitucional prevista no artigo 280.º da Constituição portuguesa. Caberá à futura lei de bases do sistema judiciário de Macau optar pelo modelo que considere preferível para organizar os recursos em sede de fiscalização concreta.
Optando pelo primeiro sistema mencionado anteriormente, e pressupondo que Macau terá apenas um tribunal superior, simultaneamente de segunda instância e de revista, dividido em secções especializadas, os recursos sobre constitucionalidade seriam apreciados e decididos pela secção competente para conhecer de qualquer recurso ordinário interposto naquele processo.
Se o sistema escolhido for o segundo (que nos parece francamente preferível ao anterior), e dado ir existir um único tribunal superior em Macau, os recursos sobre inconstitucionalidade poderiam ser julgados directamente pelo plenário desse tribunal superior.
Preferindo-se a terceira opção, ela poderá ser concretizada através da criação de um órgão equivalente ao Tribunal Constitucional só com jurisdição no território de Macau. Ora parece evidente que a dimensão deste último e o movimento de processos nele existentes não justificam a criação de um tribunal constitucional privativo. Mas talvez já se justifique a autonomização de uma secção especializada em problemas de constitucionalidade no tribunal superior de Macau.
4. A criação, no tribunal superior de Macau, de uma secção especializada em questões constitucionais teria inegáveis vantagens. Ela serviria desde logo para salientar a importância de que se reveste a adequação de todo o universo normativo de Macau ao ordenamento constitucional aqui vigente. E permitiria também uma útil especialização e um dignificante aprofundamento da jurisprudência constitucional, que tão esquecida tem sido em Macau.
Essa secção especializada, porém, não poderia naturalmente justificar-se apenas para conhecer dos recursos interpostos das decisões proferidas em Macau em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade. A sua necessária rentabilização imporia que lhe fossem atribuídas outras funções, entre as quais se poderiam contar o julgamento dos processos de fiscalização abstracta da constitucionalidade, bem como competências relativas ao contencioso eleitoral. Outra hipótese seria criar um recurso autónomo para protecção dos cidadãos contra eventuais abusos dos seus direitos fundamentais por parte da administração, solução que presentemente tem tido bom acolhimento em diversos países, nomeadamente na Alemanha (veja-se o artigo 93.º, n.º 4-A, da Constituição de Bona e a sua “Verfassungsboschwerde”) e em Espanha (veja-se o artigo 161.º, n.º 1, alínea b), da actual Constituição espanhola e o seu “recurso de amparo”.
A fiscalização abstracta é a que se desprende dos casos concretos e dos interesses pessoais neles em jogo. A inconstitucionalidade torna-se o objecto único do processo, sendo discutida objectivamente até à exaustão (e não apenas na medida em que seja relevante para solucionar o caso concreto). Estas características possibilitam decisões com força obrigatória geral, que contribuem para a uniformização da jurisprudência.
A fiscalização abstracta da constitucionalidade é considerada, especialmente nos Estados com um sistema jurídico de tipo continental, como um complemento importante da fiscalização concreta. Ensaiada para as colónias portuguesas através da Lei Orgânica do Ultramar de 1972, ela foi introduzida em Portugal pela Constituição de 1976, que a consagrou em diversas modalidades (preventiva e sucessiva, por acção e por omissão), num sistema que tem dado bons frutos.
O Estatuto Orgânico de Macau também previu algumas formas de fiscalização abstracta da constitucionalidade. A sua redacção inicial, porém, não individualizava o órgão competente para as exercer, o que conduziu, na prática, à não aplicação desses preceitos. A concretização desse órgão só foi operada com a recente Lei n.º 13/90, que esclareceu tratar-se do Tribunal Constitucional português.
Essa outorga de competência ao Tribunal Constitucional, além de tardia, parece-nos neste momento demasiado rígida e limitativa da autonomia judiciária do Território. Solução preferível teria sido admitir a possibilidade dessa atribuição ser transferida mais tarde para os tribunais de Macau. A impossibilidade de o fazer põe em causa, pelo menos para já, a criação da referida secção especializada no tribunal superior de Macau.
Concluindo esta breve exposição, julgamos que à futura lei de bases do sistema judiciário de Macau se abrem fundamentalmente duas alternativas em matéria de fiscalização da constitucionalidade: ou elevar o plenário do tribunal superior a órgão fiscalizador (podendo ser ele também a decidir o recurso do amparo), ou optar por manter provisoriamente as competências do Tribunal Constitucional para que, numa próxima revisão do Estatuto Orgânico, se criem as condições para a autonomização, nesse tribunal superior, de uma secção especializada em matéria constitucional.
Seja qual for a opção que a Assembleia da República venha a tomar, o fundamental é que ela contribua para a dignificação da função jurisdicional em Macau e para que os operadores locais do direito tomem consciência da importância para o futuro de Macau do respeito e da garantia das normas constitucionais e estatutárias. E estou certo que esse objectivo será alcançado.
O Dr. Jorge Silveira leccionou, em 1988-89, a cadeira de Direito Constitucional no Curso de Direito da Universidade da Ásia Oriental. Foi Coordenador-adjunto do Gabinete para a Modernização Legislativa e, desde Agosto de 1996 até Dezembro de 1999, Secretário-Adjunto para a Justiça. Actualmente lecciona na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
Texto publicado na edição de «O Direito» de Janeiro de 1991.