J. Oliveira Ascensão*
Sumário
1. O recurso à gestão coletiva e os seus efeitos; 2. A posição do titular perante o ente de gestão; 3. A representação dos titulares: sua relatividade; 4. A reversão de percentagens das receitas para interesses que não são diretamente dos titulares; 5. As autorizações globais de utilização dum repertório; 6. A problemática da legitimidade; 7. A repartição pelos titulares; 8. Suavização da subordinação dos titulares; 9. A intervenção pública; 10. A integração económica europeia e os exclusivos intelectuais; 11. Territorialidade da gestão coletiva e construção do mercado único europeu; 12. A Proposta de Diretriz da Comissão Europeia sobre a gestão coletiva.
Palavras-Chave:
Gestão coletiva. Representação. Legitimidade. Repartição. Monopólio. Territorialidade e integração europeia. Supervisão.
1. O recurso à gestão coletiva e os seus efeitos
Os titulares de direitos autorais – abrangendo nesta categoria os autores e os titulares de direitos conexos – detêm, indiscutidamente, um direito subjetivo, qualificado na generalidade dos casos por o conteúdo deste constituir um exclusivo.
O exercício do exclusivo é manifestação de autonomia. Veja-se a disciplina do direito de autor, que é paradigmática. O art. 40 do CDADC[1] atribui ao titular originário, bem como aos seus sucessores ou transmissários:
– autorizar a utilização da obra
– transmitir ou onerar, no todo ou em parte, o conteúdo patrimonial do direito.
O titular tem assim a disponibilidade normalmente associada à titularidade dos direitos, explorando diretamente o bem intelectual ou praticando negócios jurídicos sobre ele. A liberdade outorgada é porém sempre relativa – está cerceada pela função social e outras cláusulas gerais, bem como pelas restrições especiais próprias do Direito Autoral.
O titular pode recorrer a terceiros para praticar atos jurídicos que se repercutem sobre o objeto do seu direito. Pode, nomeadamente, mandatar outrem para a prática desses atos. Nesses casos haverá um terceiro, além do titular, que está igualmente legitimado para essa prática, nos termos do mandato recebido.
O recurso a terceiros para a gestão dos direitos reveste feições diversas, consoante a natureza das obras e o conteúdo do contrato.
No que respeita ao contrato de edição de obra científica, por exemplo, os autores, na grande maioria dos casos, contratam diretamente com as editoras. Nem lhes passa pela cabeça inscrever-se para o efeito em entidade de gestão coletiva. Mas podem fazê-lo, se assim o entenderem.
Já no que respeita à obra musical a situação é a contrária. Se o autor quer dar a obra à exploração comercial, particularmente se o quiser fazer pela radiodifusão ou pelo audiovisual, o autor terá quase fatalmente de recorrer a outrem para o seu exercício. Não pode controlar todas as emissões, nem sequer é viável, na grande maioria dos casos, criar uma empresa para esse efeito. Tem de recorrer a entidade gestora que mandata para o efeito.
Intervêm então as entidades de gestão coletiva. Neste caso, exercem a gestão coletiva que chamamos forçosa. O autor ou outros titulares não estão obrigados a recorrer a elas, mas na prática não têm outro remédio. A adesão ou contratação com entidade de gestão coletiva supõe se livre, mas eles fatalmente o terão de fazer para a eficácia da exploração dos direitos. O fundamento da gestão coletiva está assim no serviço prestado aos titulares dos direitos. É esta aliás a justificação sempre apresentada.
Mas o recurso a esta gestão ultrapassa muito os casos de gestão coletiva forçosa. Pode não haver este constrangimento e o titular, voluntariamente, entregar a obra ou prestação ao cuidado de uma entidade de gestão.
Este panorama será transtornado por uma figura anômala: a gestão coletiva forçada ou obrigatória[2] . Pode a lei, atribuindo direitos sobre bens intelectuais, determinar que estes só podem ser exercidos por uma entidade de gestão coletiva. Então todos os titulares de direitos daquela natureza ficam automaticamente sujeitos a uma entidade de gestão coletiva, se porventura quiserem explorar as suas obras ou prestações. É o que se passa no respeitante ao direito de autorizar ou proibir a retransmissão por cabo, que o art. 7/1 do Dec.-Lei n.º 333/97, de 27 de novembro, determina que “só pode ser exercido através de uma entidade de gestão coletiva do direito de autor, que se considere mandatada para gerir os direitos de todos os titulares, incluindo os que nela não estejam inscritos…”.
É também o que é estabelecido pela Lei n.º 62/98, de 1 de setembro, que regula o disposto no art. 82 CDADC. A cópia privada é livre (art. 75/2 a e e CDADC), mas é sujeita a uma compensação equitativa a atribuir ao autor e, no âmbito analógico, também ao editor (art. 76/1b). A “compensação equitativa” é cobrada, gerida e distribuída por uma “pessoa coletiva” (arts. 3/2 e 5), que tem como associados os vários entes de gestão coletiva dos direitos dos beneficiários da remuneração. E por sua vez estes têm como associados uma classe de titulares específica.
Outro esquema consiste na extensão aos não associados dos acordos coletivos celebrados por uma entidade de gestão. É o que se passa nos termos do Dec. Lei n.º 333/97, de 27 de novembro, no que respeita aos acordos celebrados por uma entidade de gestão coletiva do direito de autor e um organismo de televisão, relativos a obras musicais, tendo por objeto a comunicação por satélite.
A gestão coletiva forçada pode em certos casos ser justificada pela natureza da relação em causa, quando não se vislumbra maneira de um regime ser aplicável aos que forem membros de uma entidade de gestão coletiva e não o ser aos que o não forem. Mas há que ter em conta que é um instrumento muito perigoso, que só se poderá aceitar em última análise. Subverte o princípio da liberdade de associação. E a entidade de gestão coletiva beneficiária perde todo o estímulo para defender os interesses dos titulares. Se eles estão amarrados de toda a maneira às suas decisões, só os interesses próprios dessas entidades passam a ser determinantes. Por isso, a gestão coletiva forçada é o El Dorado dos entes de gestão, que não precisam de agradar e atrair os titulares não associados porque, de toda a maneira, os têm nas mãos.
Isto já revela como é complexa a teia de interesses que se debate à volta da gestão coletiva de direitos de autor e conexos. Se ultrapassarmos a hoje enganosa designação de “sociedades de autores”, divisamos pelo menos seis categorias diferentes de interesses e interessados:
1. Os titulares de direitos autorais: os criadores, os artistas e os outros titulares de direitos conexos, bem como os sucessores e transmissários.
2. Os utilizadores (users), que são as entidades, tendencialmente empresariais, que fazem a exploração económica dos direitos intelectuais, como adquirentes derivados dos direitos ou de faculdades específicas.
3. As entidades de gestão coletiva, como intermediários e agregadores das posições dos titulares e intermediários na relação com os utilizadores, mas que prosseguem também interesses próprios muito relevantes.
4. Os provedores de serviços na internete, indispensáveis no campo cada vez mais vasto da exploração em linha.
5. O consumidor ou utilizador final de obras intelectuais.
6. Sobre tudo isto se situam os interesses coletivos, como o da Cultura, que tanto se invoca e a que tão pouco se atende.
Este interesse coletivo prolonga-se no interesse público, nomeadamente no interesse na supervisão por parte das instituições públicas, que é hoje fundamental. Há pois motivo para acrescentar pelo menos uma sexta categoria de interesses, de modo algum diminuída em relação às restantes.
2. A posição do titular perante o ente de gestão
Suscitou-se dissídio quanto a qualificar as entidades de gestão coletiva como mandatárias ou como representantes dos seus associados. Supomos que não vale a pena entrar nesta questão, porque os resultados são os mesmos. O art. 73/1 CDADC determina que essas entidades desempenham a sua função como representantes dos respetivos titulares. Efetivamente, os efeitos dos atos de gestão vão-se repercutir diretamente na esfera jurídica dos titulares, como é próprio da representação. Não vemos interesse em pôr em causa a qualificação legal, ou em discutir que neste caso haja um mandato com representação.
Pode-se porém ir mais longe. Em países do centro e norte da Europa entidades de gestão coletiva exigem dos autores ou titulares de direitos a cessão fiduciária dos seus direitos para que sejam integrados na gestão a que procedem. O titular pratica uma autêntica cessão: a titularidade passa para a entidade de gestão coletiva. Mas a cessão é fiduciária, no sentido que essa entidade deve tipicamente exercer o direito no sentido da boa administração no interesse do titular.
A situação resultante é muito gravosa para o titular. Assim, o autor perde todo o contato com a obra. Conserva apenas o direito pessoal (ou “moral”); de resto, não pode praticar nenhum ato que atinja o aproveitamento patrimonial. Não pode por exemplo autorizar uma utilização gratuita, para fins beneficentes, a qualquer agremiação da sua simpatia, porque todo o poder de autorizar passou para a entidade de gestão coletiva. Para ter acesso àquela gestão coletiva, tem de abrir mão de todo e qualquer poder sobre a sua obra ou prestação.
Não está previsto, em Portugal ou no Brasil, que as entidades de gestão coletiva imponham a cessão fiduciária dos direitos. Mas também não está proibida. Pelo que paira sempre a ameaça de, na prática, alguma entidade o vir, abertamente ou não, a estabelecer.
Por isso propusemos, nos trabalhos de preparação do CDADC, que para defesa do autor ou demais titulares fosse expressamente proibida, dada a gravidade da situação, a cessão fiduciária dos direitos. Mas a proposta encontrou a oposição da Sociedade Portuguesa de Autores e não foi por diante.
Há assim o risco de uma expropriação na prática do direito patrimonial do titular em contrapartida da adesão à entidade de gestão coletiva. Expropriação que pode igualmente surgir mesmo quando se não preveja a cessão fiduciária. Podem ser inseridas cláusulas que excluam que os titulares realizem atos de gestão, nomeadamente quaisquer autorizações graciosas. O titular ficaria então contratualmente impedido de as praticar. Mas a entidade de gestão coletiva também o não poderia fazer, porque só tem poderes de autorização no interesse (patrimonial) do autor; uma autorização gratuita não serve por natureza esse interesse patrimonial. O que implica que nunca uma obra ou prestação dada à gestão coletiva poderia então ter utilização beneficente, ou gratuita em geral.
A distorção em relação às previsões legais é grave. O art. 68/3 CDADC dispõe que “Pertence em exclusivo ao titular do direito de autor a faculdade de escolher livremente os processos e as condições de utilização e exploração da obra”. Quanto ao art. 41, sobre o “Regime da autorização”, impõe a forma escrita (n.º 2), e dispõe que desta “devem constar, obrigatória e especificamente, a forma autorizada de divulgação, publicação e utilização, bem como as respetivas condições de tempo, lugar e preço”. Mas a assinatura dum contrato de adesão a uma entidade de gestão coletiva pode anular na prática estas previsões da lei. O autor passa a ocupar uma posição de cliente duma entidade de gestão, ficando vinculado por um contrato – que de contrato já não tem quase nada.
A posição dos artistas intérpretes ou executantes é ainda mais frágil. O art. 178/1 CDADC atribui-lhes o direito exclusivo de autorizar, por si ou pelos seus representantes, a radiodifusão e a comunicação ao público, a fixação de prestações que não tenham sido fixadas e a reprodução das fixações realizadas. Mas se o artista autorizar a fixação para fins de radiodifusão a um produtor cinematográfico ou audiovisual ou videográfico, ou a um organismo de radiodifusão, entender-se-á que transmitiu esses direitos em contrapartida de uma remuneração inalienável, equitativa e única. Ainda por cima, a gestão desta remuneração única será exercida através de acordo coletivo celebrado entre os utilizadores e a entidade de gestão coletiva representativa da categoria, “que se considera mandatada para gerir os direitos de todos os titulares dessa categoria, incluindo os que nela não se encontrem inscritos” (art. 178/2). Essa remuneração única abrangerá igualmente a autorização para novas transmissões, a retransmissão e a comercialização de fixações obtidas para fins exclusivos de radiodifusão (n.º 3). Há então manifestação potenciada de gestão coletiva forçada.
Só fica de fora a faculdade contida no art. 178/1 d CDADC: “A colocação à disposição do público, da sua prestação, por fio ou sem fio, por forma que seja acessível a qualquer pessoa, a partir do local e no momento por ela escolhida”. É a fórmula utilizada pela lei para caracterizar a colocação em rede à disposição do público. Porém, mesmo esta é submetida à gestão coletiva obrigatória, nos termos do art. 178/4. Donde resulta que a lei se preocupa muito mais com uma proteção de interesses empresariais que com a proteção dos artistas intérpretes ou executantes.
Outro aspecto deve ser preliminarmente esclarecido, para fixarmos os contornos da gestão coletiva: qual o estatuto da obra ou prestação que é entregue à gestão coletiva?
Pensar-se-ia que a entidade de gestão negociaria cada obra ou prestação, atendendo ao seu significado ou valia particular. Atuaria assim como o faria o titular se não tivesse aderido à gestão coletiva.
Não está, evidentemente, impedida de assim fazer. Mas na realidade é uma ocorrência meramente marginal.
Consideremos à obra musical, que ilustra a situação com muita nitidez. A entidade de gestão coletiva de direitos musicais licencia todo um repertório. Pratica negócios de massa. Cada obra ou prestação individual é tendencialmente englobada num conjunto, e é esse que é colocado à disposição dos utilizadores.
Sendo assim, a individualidade da obra esbate-se. Tanto faz ser excelente como medíocre. É objeto dos mesmos atos dispositivos.
Isso satisfaz os utilizadores, que querem ter as mãos livres, e a entidade de gestão, que evita a discussão caso por caso. Mas cria numerosos problemas, em particular:
– o da legitimidade das autorizações genéricas da entidade de gestão
– o da remuneração do autor ou artista, cujas obras ou prestações são utilizadas.
Estes problemas terão de ser ulteriormente examinados.
3. A representação dos titulares: sua relatividade
A gestão coletiva, na visão da lei, só se justifica pela defesa dos interesses dos titulares de direitos autorais. E efetivamente, neste domínio, afirma-se insistentemente que é esse interesse que é exclusivamente prosseguido por essas instituições. Elas apresentam-se como emanação dos autores e outros titulares, cujo benefício é constantemente invocado como diretriz de atuação.
Mas a realidade não é bem essa.
Por um lado, os quadros dessas entidades não são necessariamente titulares de direitos. Pode recorrer-se a técnicos ou gestores, por exemplo, que pouco ou nada tenham que ver com obras ou prestações. A categoria que se invoca começa a ficar descolorida perante esta realidade.
Depois, porque os associados ou membros em geral não são necessariamente os autores ou os artistas que se proclama defender.
Vejamos o que se passa com os “autores”. Os autores representados pelas entidades de gestão não são apenas os criadores intelectuais. O próprio art. 73/1 CDADC não refere “representantes dos autores”, fala antes em “representantes dos respetivos titulares”. Ora, os transmissários são também titulares. Portanto, mesmo em vida do autor, o substrato pessoal do ente de gestão pode exprimir interesses muito diferentes dos dos criadores intelectuais. Repare-se que os transmissários são usualmente empresas que procedem à exploração económica de bens intelectuais. Exprimem por isso interesses empresariais e de modo algum os interesses culturais que as entidades de gestão coletiva de direitos de autor se alegam defender.
Uma simples observação estatística demonstra bem que “sociedades de autores” e associações ou cooperativas de criadores intelectuais não são a mesma coisa. As entidades de gestão coletiva acabam por ser sensíveis a outros interesses que não são os dos criadores intelectuais. Analogamente poderíamos dizer em relação às entidades de gestão dos direitos dos artistas.
Acresce aquilo a que podemos chamar o drama do representado. É uma questão geral, mas que tem aqui também a sua manifestação.
É uma decorrência da imperfeição humana. O poder do representante tem a sua justificação na prossecução do interesse do representado. Mas a natureza humana leva a que o representante pense mais no seu próprio interesse que no interesse do representado. Isso acontece em todos os setores: na representação política, como o demonstram os escândalos permanentes que a comunicação social nos vai revelando em todos os países; na representação empresarial, em que representantes de uma maioria trabalham antes de mais na preservação das suas posições e dos seus próprios interesses; em relações simples de representação, como as que os emigrantes estabelecem deixando as suas terras confiadas a parentes ou amigos, e afinal… A boa formação humana, que permitiria que as finalidades da lei fossem asseguradas, é na realidade ocorrência rara.
Mas há muito mais do que isto.
Mesmo excluindo os transmissários, somos levados a concluir que as entidades de gestão não são agregados de criadores intelectuais ou de artistas intérpretes ou executantes. Exemplifiquemos com o caso dos autores, que é bem nítido.
O direito de autor vigora paradigmaticamente durante a vida do criador intelectual e mais setenta anos pós-morte.
Em vida, o criador intelectual terá no máximo uns 70 anos de proteção. Mesmo admitindo que criou aos 20 anos e faleceu aos 90, o que toma já em conta o prolongamento progressivo da vida humana, é um cálculo de duração máxima plausível. Mas o autor vai criando normalmente durante toda a vida, logo o gozo médio de cada direito em vida é muito menor.
Após a morte do autor, os sucessores recebem o direito por um período normal de 70 anos. Aqui, período máximo e efetivo coincidem: são sempre 70 anos pós morte do autor.
Como os sucessores são também titulares, que são representados (tal como os criadores) pelas entidades de gestão respetivas, temos de concluir que entre os membros destas entidades haverá muito mais titulares não criadores que criadores. Porque a soma dos transmissários e dos sucessores é muito superior seguramente ao número dos criadores intelectuais representados.
Não há motivo para que isso se não repercuta fortemente sobre as entidades de gestão coletiva de direitos autorais. Os entes de gestão coletiva justificam se como representantes dos criadores e os artistas, mas representam-se antes de mais a si mesmos. Atuam como fortíssimos grupos de pressão, que se apoiam normalmente nos abundantes recursos financeiros de que dispõem. Isso permite-lhes manifestações faustosas, como saraus de gala que só podem sustentar-se com dinheiros que deviam reverter para os representados. A fidelidade destes entes é antes de mais aos interesses que os amparam e conservam. O autor, ou os titulares em geral, são mais o objeto da atuação que os sujeitos cujos interesses são efetivamente prosseguidos.
4. A reversão de percentagens das receitas para interesses que não são diretamente dos titulares
Esta situação é agravada pela atribuição, pela lei ou pela prática, de percentagens em benefício dos próprios entes de gestão. Estas são retiradas necessariamente das quantias cobradas como destinadas aos titulares.
Temos antes de mais as quantias destinadas à administração do próprio ente. Têm sempre de existir, porque são a base para que a administração se possa realizar. A alternativa seria o Estado tomar sobre si esse encargo, o que acontece em certos casos, em países escandinavos e agora acontecerá na Espanha, na remuneração dos autores pela cópia privada: mas é uma ocorrência insólita.
A questão está no volume desta percepção sobre os rendimentos. A Lei n.º 83/01, de 3 de agosto, que regula a gestão coletiva, não estabelece nenhum limite. Deveria estabelecê-lo. Tão-pouco o estabelecia a lei sobre compensação por cópia privada (Lei n.º 62/98, de 1 de setembro).
Na prática as percentagens variam muito, chegando a atingir 30%, na previsão legal. Assim, a proposta de reforma da lei da cópia privada do GPEARI[3], de 2011, que continua pendente, limitava os custos de funcionamento a 30% das receitas globais obtidas com a cobrança das compensações equitativas. Na versão da proposta de abril de 2011 o limite baixou para 20%, então no art. 11/4[4].
Não é esta a única percepção que grava sobre as receitas arrecadadas. O art. 13 da Lei n.º 83/01, de 3 de agosto, atribui às entidades de gestão coletiva uma “função social e cultural”. A esta devia ser afetada uma percentagem não inferior a 5% das receitas.
O PJL 118-XII[5], sobre a reforma da lei da cópia privada, previa por sua vez que, das receitas líquidas apuradas para “compensação” da cópia privada, fossem ainda destinadas:
a) 10% a um Fundo Cultural
b) do remanescente, 5% ao Fundo Cultural do Ministério da Cultura
c) do remanescente, 10% à entidade pública de fiscalização
Tudo isto é anômalo.
Começando pela função cultural, essa está completamente deslocada. A “pessoa coletiva” prevista é uma entidade de arrecadação de receitas e de distribuição subsequente pelas entidades de gestão coletiva suas associadas. A isso se reduz a sua competência. Não tem nenhuma qualificação especial que lhe permita arvorar-se em difusora cultural, e muito menos a tem para o fazer à custa dos autores e outros beneficiários, mordendo nas verbas a estes destinadas. A função cultural, prevista logo na epígrafe do artigo, equivaleria muito provavelmente a auto-promoção da entidade de gestão coletiva.
O Projeto acima referido, sob a epígrafe “Fundo Cultural”, previa no art. 12/1 que a entidade única de cobrança, como dissemos, destine 10% das receitas líquidas à constituição dum Fundo Cultural, pressupõe-se que da entidade única de cobrança. Reside aqui a grande falha desta entidade, que tem atuado de modo rotunda e manifestamente ilegal. A prática foi ainda pior que a lei: a entidade única, a AGECOP, não exerce a função cultural a que está adstrita por lei, antes repassa os fundos a isso destinados a alguns dos entes de gestão seus associados. Há assim uma dupla ilegalidade, a primeira por omissão, a segunda por disposição indevida de fundos consignados. E receia-se que esses fundos sejam simplesmente arrecadados pelos entes associados para que são remetidos, sem afetação efetiva a finalidades culturais, porque não há satisfatória prestação de contas da destinação que se lhes atribui.
Apareceu também uma referência à função social. Esta é em Direito uma categoria técnica, mas aqui tem um sentido completamente diferente. Traduz-se na “prossecução de atividades sociais e de assistência aos seus associados ou cooperadores”. Não se vê o que sejam “atividades sociais”: os titulares dos direitos agradeceriam decerto que o dinheiro para tal despendido lhes fosse antes diretamente entregue. E também uma entidade de gestão coletiva de arrecadação não tem nenhuma qualificação especial para tomar para si funções de assistência aos seus membros. Tudo isto correria muito melhor se as quantias eventualmente aplicadas seguissem o destino normal, sendo repartidas diretamente pelos titulares dos direitos administrados[6].
A seguir (art. 12/2) prevê-se que a mesma entidade única afete 5% das receitas líquidas percebidas ao Fundo Cultural do Ministério da Cultura, consignada ao pagamento do Subsídio de Mérito Cultural. Há aqui um óbvio aproveitamento parasitário: uma percepção extraordinária de dinheiros destinados aos autores vai reverter em benefício de um fundo público. É um imposto? De todo o modo, não se explica por que é atingida esta remuneração, destinada a estes autores (e editores também), e não quaisquer outros proveitos que aos titulares se destinem.
Com isto, já lá vão 35% das receitas, que são subtraídas aos seus destinatários! Ultrapassam-se até os 30% que inicialmente haviam sido previstos para os custos de funcionamento dos entes de gestão coletiva!
Enfim, o art. 13 prevê que a fiscalização caiba ao IGAC e que para isso a entidade única pagará uma taxa correspondente a 10% dos custos de funcionamento – portanto, da quantia até 20% das receitas previstas. Também é anómalo que os custos da fiscalização no interesse público acabem por recair sobre os próprios fiscalizados. E com isto lá se vai mais uma fatia da receita que a lei justificara como compensação da cópia privada.
5. As autorizações globais de utilização dum repertório
Um ponto ainda mais delicado está na repartição dos proventos obtidos pelos titulares a quem a lei os destina. Para o esclarecer, seria necessário apurar os critérios que presidem a essa repartição.
Mas aí, espera-nos uma surpresa: a lei, em geral, nada diz.
Procurando avançar, vamos distinguir os dois tipos fundamentais de situações em causa.
Os direitos (ou faculdades) integrados no direito de autor podem basicamente ser:
− direitos exclusivos
− direitos de remuneração.
Abstraímos do direito pessoal (“moral”) e de outras faculdades pessoais singulares que possam aparecer em certos direitos específicos.
Como os direitos intelectuais são em si exclusivos, as grandes faculdades correspondentes também são, como é natural, exclusivas. Nessa categoria se integram os grandes direitos ou faculdades complexos de comunicação ao público, reprodução, distribuição e transformação.
Mas também há ocorrência, como vimos, de direitos de remuneração. Aí abre-se uma fresta no exclusivo, não podendo o titular impedir a utilização por outrem, mas restando-lhe o direito de ser remunerado pela utilização. Qualifica-se então a compensação ou remuneração como “equitativa”: veja-se o art. 76/1 b CDADC.
Como se processa a autorização dos titulares, em ambos os casos, quando os direitos são confiados à gestão coletiva?
Dissemos já que nos casos paradigmáticos a obra ou prestação, entregue à entidade de gestão coletiva, é objeto de negócios de massa.
A obra perde a sua individualidade. Entra tudo no mesmo saco. É uma mónada mais, dentro da categoria que é objeto de negócios de autorização global. Abstrai-se completamente da índole de cada obra ou prestação ao se concederem licenças globais de utilização de todo um repertório.
Os entes de gestão coletiva emitem tabelas ou tarifas, atendendo às utilizações que se tiverem em vista e que são então precisamente caracterizadas. Dependem de fatores externos e não da qualidade intrínseca de cada obra ou prestação. Atende-se por exemplo ao tipo de estabelecimento, área, função a desempenhar, época do ano, etc.
Vai-se ao ponto de se especificar igualmente a música ambiental, os lares para idosos, os escritórios sem atendimento de público, a música que se ouve durante as esperas telefónicas…[7]
Mas nestas e noutras especificações, por vezes altamente contestáveis, não entra a ponderação da valia da obra ou prestação concreta. A licença é dada tipicamente “a peso”, abrangendo todo o repertório ou fração dele.
6. A problemática da legitimidade
Isto cria, necessariamente, um problema grave de legitimidade. Como podem as entidades de gestão coletiva dar licenças universais de utilização? Isso suporia que representam todos os titulares do mundo.
Começamos pelos casos de gestão coletiva forçada: aqueles em que a lei dispõe que certos direitos só podem ser exercidos por entidade de gestão coletiva.
Vamos supor que há uma única entidade nesse setor, que essa entidade está constituída e que não há dissídio sobre a respetiva legitimidade. A entidade pode outorgar licenças globais.
Mas, mesmo então, há uma incongruência. As entidades de gestão coletiva são territoriais, logo só podem autorizar para o território português. Se pretendem dar licenças referentes a obras ou prestações que têm por país de origem países estrangeiros, falta-lhes legitimidade para tanto.
Procura-se então ultrapassar a dificuldade mediante convênios de representação recíproca. Por acordo entre as entidades gestoras do tipo de direitos em causa, uma entidade de país estrangeiro representa os titulares portugueses daqueles direitos, enquanto a entidade portuguesa representa os desse país[8].
Isto resolve alguns problemas, mas não resolve todos. Por um lado, porque nem em todos os países do mundo há as entidades de gestão de todas as categorias; em certos casos não as há mesmo de categoria nenhuma. A licença universal concedida não cobre pois toda a utilização que possa ser realizada. A utilização que exceda esse limite constituiria possivelmente um crime, à luz da ordem jurídica portuguesa.
Mas subsistem dificuldades, até quando há em Portugal uma representação coletiva forçada (o que dá a segurança máxima possível mas que é de ocorrência relativamente rara): basta que o mesmo não aconteça à luz da ordem jurídica estrangeira. Uma vez que o grande princípio é, como não podia deixar de ser, o de que cada entidade de gestão só representa os seus próprios representados, temos mais uma vez uma ilegitimidade na autorização global que for emitida. O usuário português estará em falta, porque não recebeu afinal uma autorização universal. E como é também fatal (uma vez que racionalmente não pode deixar de se concluir que é assim) pairam sobre ele todas as consequências negativas da falta de título suficiente.
Passamos agora à situação meramente interna: a do utilizador que recebe a “licença” de uma entidade nacional, e só se propõe utilizar música ou em geral obras ou prestações que têm Portugal como país de origem: fado, por exemplo. Mesmo então, se não houver gestão coletiva forçada, os problemas de legitimidade persistem.
De facto, as entidades de gestão continuarão a não poder autorizar universalmente aquele tipo de utilizações, porque a pertença a essas entidades é livre. Logo, o utilizador não fica universalmente garantido, mesmo nesta hipótese. Poderá ser sempre atacado como infrator pelos titulares que se não filiaram[9].
Concluímos assim que o sistema globalizante, fundado em licenças referentes a toda uma categoria de obras, tem pés de barro. Salvo na hipótese rara de ambos os contraentes beneficiarem de gestão coletiva forçada, não garante representatividade que dê em todos os casos uma segurança completa ao usuário no gozo da licença obtida. Excluindo a hipótese de se fornecer uma lista exaustiva de todas as obras ou prestações abrangidas pela representação, que não é na realidade praticável.
7. A repartição pelos titulares
As licenças globais criam também grandes problemas de repartição.
A repartição é uma fase extremamente delicada. Não há então, mesmo entre os titulares representados, solidariedade: há, sim, choque de interesses. Para os afrontar, deve haver critérios que permitam a justificação com transparência das posições adotadas pelo ente de gestão.
Mas, com surpresa, verificamos que a Lei n.º 62/98 é completamente lacunosa neste ponto. Limita-se a remeter no art. 15/2 l para os estatutos de cada entidade, que deverão prever “os princípios e regras do sistema de repartição e distribuição dos rendimentos”. Lava daí as suas mãos. Pelo que o receio é grande de que se caia no domínio da arbitrariedade ou da subordinação a certas maiorias.
Na realidade, como se pode saber quais as utilizações que efetivamente foram feitas, se a autorização é global? É claro que não se pode seguir a solução fácil de repartir igualmente por todos os titulares. Mas como também se não fazem distinções pelo mérito intrínseco das obras ou prestações, fica o campo aberto ao palpite – ou seja, à arbitrariedade. Se porventura se procedesse por amostragem já seria bem melhor, mas não cremos que seja habitual.
Acresce até que, quando a lei intervém nesta matéria, o resultado é assustador. É o que acontece nos termos da Lei n.º 62/98, de 1 de setembro, que regula a compensação por cópia privada. O art. 5 prevê incaracteristicamente a “Pessoa coletiva”: é a entidade única de cobrança e distribuição das quantias destinadas a essa compensação. Esta é hoje em dia a AGECOP, que é constituída por sua vez pelas entidades de gestão coletiva de direitos autorais setoriais[10]. Ora bem, este art. 5/2 e determina que os estatutos da “pessoa coletiva” deverão prever “critérios de repartição das remunerações entre os membros dos associados, incluindo os modos de distribuição e pagamento aos beneficiários que não estejam inscritos nos respetivos organismos mas que se presume serem por estes representados”.
É espantoso. Não são sequer os estatutos das entidades representativas dos beneficiários que determinam os critérios de repartição: são os estatutos da pessoa coletiva que as agremia, a AGECOP. A pessoa coletiva, entidade de Direito Privado, vai comandar o modo de proceder das entidades representativas dos setores compreendidos!
Não temos dúvida em afirmar a inconstitucionalidade de semelhante previsão. A regulação geral desta matéria só poderia provir da lei. Colocar uma entidade privada a “legislar” sobre os modos de proceder das entidades de gestão que a compõem está fora de toda a legalidade institucional. A “pessoa coletiva” é uma mera entidade de cobrança e distribuição dos dinheiros destinados aos titulares[11].
A lei atribui ainda à “pessoa coletiva” a gestão das quantias arrecadadas, mas erradamente o faz. A pessoa coletiva é mera entidade de cobrança e distribuição.
Deve distribuir os proventos pelos seus associados e não retê-los. Por isso, autonomizar ainda uma função de gestão dos dinheiros arrecadados é muito perigoso, pois sugere que a pessoa coletiva tenha um domínio sobre as receitas que só poderia funcionar em detrimento dos destinatários finais.
De facto, a lei não pode eximir-se de estabelecer os grandes fundamentos da repartição final. O que se espera que aconteça nos trâmites da reforma da Lei n.º 62/98, atualmente em curso.
O problema está, como dissemos, na técnica a adotar, de maneira a dar visos de credibilidade às repartições que se realizam. A questão é geral: sempre que há uma autorização global é este o problema primeiro que se defronta.
São porém inúmeros os desvios que vamos encontrar neste domínio.
Por vezes, as entidades não repartem, pura e simplesmente, os proventos recebidos ou certas classes destes. Assim, em Espanha, a AISGE, entidade representativa dos artistas, recebe a compensação equitativa por cópia privada, mas não a distribui pelos artistas: declara afetá-la a funções de tipo assistencial em benefício dos artistas necessitados. A legitimidade de semelhante tipo de destinação é altamente contestável, porque a lei prevê esta compensação em benefício dos artistas, como pessoas individualizadas, e não em benefício de um coletivo abstrato. Os critérios de atribuição são por outro lado discricionariamente fixados pelo AISGE, em termos de modo algum transparentes[12].
Suponhamos agora os casos em que há repartição pelos titulares a quem esta compensação se destina. O critério-base deveria ser o da utilização efetiva da obra ou prestação. As técnicas modernas permitem até encarar com otimismo a questão, através sobretudo do DRM, Digital Rights Management. Independentemente de alguma ambiguidade na expressão (que não é este o lugar para procurar esclarecer), temos que os meios digitais permitem hoje, com uma certa segurança, progredir muito neste domínio. Permitem nomeadamente apurar em muitos casos as utilizações efetivamente feitas: e não só as utilizações através da internete, mas também utilizações radiodifundidas e outras. O palpite pode ser sucessivamente arredado em benefício de métodos de segurança acrescida.
Com isto, o autor (ou o titular em geral) ganha um novo protagonismo. Deixa de estar inerme perante a entidade de gestão, submetido passivamente aos entendimentos desta. Passa a poder controlar e participar ativamente na repartição.
Os grandes titulares, como os grupos musicais de expansão mundial, podem até ir mais longe: desligar-se das entidades de gestão coletiva para passar a administrar diretamente os seus próprios direitos. Tal supõe evidentemente um investimento empresarial próprio, mas a digitalização é a arma que permite afastar métodos clássicos onerosos e uma sujeição indesejada, para estabelecer um sistema muito mais simples e transparente de gestão. Passa a ser mera decisão financeira de cada titular recorrer à gestão coletiva ou à gestão individual. Isto consolida o novo protagonismo do autor ou do titular em geral.
8. Suavização da subordinação dos titulares
A situação do autor – ou mais amplamente, de todo o titular de direitos autorais – quer esteja legalmente subordinado a entidade de gestão coletiva, quer quando a elas voluntariamente adere, para gestão coletiva forçosa ou não – é como se viu precária. Mas ocorre observar que esta precariedade tem também os seus limites. Não a eliminam, mas suavizam-na.
I – Os direitos não patrimoniais
São os autores quem tem direitos não patrimoniais bem qualificados[13].
O primeiro, e mais importante e decisivo, é o representado pelos direitos não patrimoniais (os impropriamente chamados direitos morais). Estes vêm previstos nos arts. 56 a 62 CDADC, sob o galicismo “Direitos morais”. No art. 56/2 dispõe-se, em relação às faculdades aí previstas, que são inalienáveis, irrenunciáveis e imprescritíveis. Há uma evidente personalização do exercício que impede que os direitos não patrimoniais possam ser dados à gestão coletiva. Qualquer eventual intervenção das entidades de gestão coletiva neste domínio só se poderia imaginar dentro dos limites muito apertados em que é possível imaginar uma intervenção de terceiros em relação a faculdades que têm uma estreita ligação com bens ligados à personalidade de outrem.
II – Limitação do conteúdo do contrato de gestão
O art. 12 da Lei n.º 83/01, de 3.VIII, que como dissemos regula a gestão coletiva, restringe de vários modos o conteúdo do contrato de gestão.
O contrato de gestão:
1. Não pode ser estabelecido para mais de 5 anos, embora se renove automaticamente se as partes não lhe puserem fim
2. Não pode impor a entrega à exploração coletiva de todas as obras ou prestações protegidas do aderente
3. Não pode prever que seja atribuída ao ente de gestão a produção que o aderente realize de futuro.
Amacia-se, como se vê, a sujeição do titular. Há porém que observar que o remédio é parcial e insuficiente. Se há gestão coletiva forçada, o autor não pode discutir que obras entrega ou não à gestão coletiva: ou não as explora, ou se as pretende explorar ficam automaticamente abrangidas. E, se há gestão coletiva forçosa, o autor acaba mesmo por entregar as suas obras à exploração, mesmo que maldizendo interiormente o contrato que assina.
III – Os entes de gestão têm também obrigações
Não são muitas e a lei deixa inúmeros pontos por regular, mas é bom que estejam contempladas algumas. Particularmente importante é o art. 11 da Lei n.º 83/01, que estabelece o “Dever de gestão”. Foi difícil fazê-lo incluir na lei portuguesa, não obstante previsto em documentos internacionais[14], mas é fundamental.
Com efeito, se assim não acontecesse, os entes de gestão poderiam excluir as pessoas non gratae, reduzindo-as a uma espécie de condição de párias no seu universo. A expulsão dos recalcitrantes pairaria como ameaça sempre presente, para reduzir ao silêncio os mais ousados.
De todo o modo, o desequilíbrio em benefício dos entes de gestão é acentuadíssimo. Dissemos que o titular de direitos está reduzido a uma espécie de posição de cliente do ente de gestão. Mas este cliente nem sequer tem em seu favor a tutela do consumidor, que tem o cliente comum.
IV – A diminuição relativa dos poderes do representante em relação aos dos titulares
O último elemento de suavização da subordinação do titular está na circunstância de a entidade de gestão coletiva não ter sobre a obra ou prestação poderes idênticos aos que tem o titular. E isto mesmo deixando de parte o que dissemos já em relação a poderes não patrimoniais.
O titular tem em relação à obra ou prestação, em princípio, todos os poderes. Pode por isso explorá-la ou não, abandoná-la, proibir o aproveitamento gratuito por terceiros…[15]
A entidade de gestão coletiva não. Tem apenas poderes funcionais. Deve exercer a exploração da obra no interesse do titular. Não pode prescindir dessa exploração, nem exercê-la para finalidade diversa daquela.
Em consequência, o titular pode admitir a utilização gratuita da obra ou prestação por terceiros – por exemplo, para fins beneficentes ou por uma causa a que particularmente se devote.
A entidade de gestão coletiva não. A utilização gratuita não se presume ser do interesse do titular. Como ela está vinculada a servir este interesse, deve recusar sistematicamente autorizações dessa índole.
Acontecendo então que, caso o titular fique contratual ou legalmente excluído de interferir na utilização da obra, nem o titular nem o ente de gestão poderão só por si autorizar utilizações gratuitas, ainda que seja manifesto o interesse para a comunidade dessas utilizações.
9. A intervenção pública
É óbvio que há interesses coletivos ou públicos ligados aos direitos intelectuais e ao exercício destes. Tais interesses coletivos justificam a intervenção de órgãos públicos na matéria e, consequentemente, a supervisão dos organismos de gestão coletiva. Aí concorre até uma razão suplementar, porque além do interesse geral há a necessidade de tutela dos interesses dos titulares representados por estes entes de gestão coletiva. Por isso, os países do nosso sistema jurídico criaram organismos públicos a que atribuíram a supervisão da matéria. Estes organismos estão normalmente incumbidos também de coordenar a política nacional e internacional do país no domínio do direito de autor e direitos conexos.
A conformação e as atribuições variam porém grandemente. E isto resulta desde logo de as próprias entidades de gestão coletiva manifestarem sentimentos contraditórios em relação à supervisão. Por um lado querem que ela exista para centralizar a fiscalização e repressão das atividades lesivas dos direitos autorais, aliviando-as dos esforços e custos de tais tarefas; mas por outro lado não querem que as suas próprias atividades sejam controladas. Neste último sentido foi paradigmática a posição tomada pelo Brasil com a aprovação da Lei n.º 9610, de 19.II.98, que é a lei ainda vigente em matéria de direitos autorais: o Conselho Nacional de Direito Autoral, órgão de supervisão, foi pura e simplesmente suprimido, sem que nenhum outro órgão o substituísse nas suas funções! Com isto o Brasil não só ficou sem entidade de supervisão, como ainda na situação rara de não ter um órgão centralizador da política pública no domínio autoral, o que tem inconvenientes manifestos que só agora se tenta, penosamente, superar[16].
Na situação legislativa normal, os entes de gestão coletiva estão sujeitos à supervisão por parte dos órgãos públicos. Esta supervisão destinar-se-ia a afastar as irregularidades e a assegurar que as finalidades da lei fossem efetivamente alcançadas.
Mas, como em toda a supervisão, o resultado final depende da efetividade como esta se exerça. Particularmente quando recai sobre entidades económica e financeiramente poderosas como as entidades de gestão coletiva.
No limite, há sempre a ameaça da captura do regulador: a entidade de supervisão pode ser capturada, de maneira a tornar-se um instrumento dos interesses dos entes de gestão junto do governo, em vez de um promotor do interesse geral – que inclui a proteção dos titulares representados.
A falta ou inoperância do regulador é uma situação política e economicamente inadmissível.
Como dissemos, os direitos autorais consubstanciam-se normalmente em exclusivos. Os exclusivos, atuados na vida de negócios, constituem monopólios. O facto de as entidades de gestão coletiva gerirem monopólios bastaria já para tornar indispensável uma supervisão, para assegurar que as regras mínimas da concorrência sejam respeitadas. Mas isto é ainda agravado pela circunstância de em cada país as entidades de gestão coletiva serem elas próprias únicas no seu domínio. Têm um monopólio de direito, se a lei impõe que haja apenas uma entidade do seu tipo – é o caso da AGECOP em Portugal ou do ECAD no Brasil; ou têm um monopólio de facto, quando as vicissitudes históricas levaram a que num setor só uma entidade de gestão coletiva se criasse ou só uma entidade subsistisse. Em qualquer caso, mas mais agudamente quando elas próprias são monopolistas, têm de estar sujeitas às regras da concorrência[17].
Por isso, Schack pergunta se haverá um direito subjetivo público dos beneficiários a essa supervisão. Alinha com a posição dominantemente seguida, que é a afirmativa[18]. E isto permite ao público contestar tarifas desproporcionadas por parte dessas entidades monopolísticas.
E tem ainda outra consequência: é a que respeita à atuação dos tribunais.
Sabemos que os limites da intervenção dos tribunais no conteúdo dos contratos são apertados. Mas aqui verifica-se uma situação particular, consistente no caráter monopolista das entidades em presença. Há então uma necessidade acrescida de regulação das atividades no mercado. Os tribunais estão também legitimados para o fazer, para a resolução de litígios sobre regras da concorrência.
Particularmente, dada a posição dominante que essas entidades detêm, é forte a tentação do abuso. Haverá que valorar o exercício à luz das regras da concorrência.
Recentemente, as instâncias de supervisão têm tomado em vários países uma posição ativa no controlo dos abusos de posição dominante e outros desvios das entidades de gestão coletiva. É o caso da “Comisión Nacional de la Competencia” em Espanha[19]. Efetivamente, a grandes entidades de gestão coletiva, como a SGAE (autores) e a AISGE (artistas), têm sido aplicadas pesadas multas por parte das autoridades reguladoras da concorrência.
Não é este porém o único fator relevante. As variações de país para país são grandes, mas a matéria não escapa hoje (podemos afirmá-lo nestes termos amplos) ao crivo do controlo judiciário.
As entidades de gestão, na normalidade dos casos, estabelecem as suas tarifas, que não são sujeitas a discussão.
Estas tarifas, tecnicamente, representam cláusulas negociais gerais[20]. Conduzem portanto àquilo a que se chamava e as leis ainda chamam o contrato de adesão.
Os utilizadores potenciais dos bens em questão, perante os entes de gestão, são consumidores. Têm por isso um direito especial de proteção perante as cláusulas negociais gerais. Tudo isto é controlável judicialmente, se não for resolvido no nível da supervisão administrativa. Não é necessário sequer haver uma previsão na lei da figura técnica da lesão: a proteção legal da parte mais fraca, perante o abuso da entidade monopolista, dá hoje meios de defesa muito efetivos. Em última análise, o recurso aos tribunais garante a efetividade destes.
10. A integração económica europeia e os exclusivos intelectuais
Vimos que os direitos intelectuais constituem nuclearmente em exclusivos; e que esses exclusivos são passíveis de estar confiados a entidades de gestão coletiva que, paradigmaticamente, constituem elas próprias monopólios. Mas ainda há outro exclusivo, de caráter universal, que não pode deixar de ser referido – até pelos problemas que cria na União Europeia. Este último é o exclusivo que resulta da territorialidade dos direitos intelectuais.
Não obstante todos os movimentos de harmonização / uniformização dos direitos intelectuais, estes continuam a ter como ponto de partida a territorialidade. Cada país é competente para regular estes direitos no seu próprio território: não se admite que entidades exteriores pretendam estender a sua disciplina a estas matérias. Por isso se harmoniza e se estabelecem mínimos internacionais, mas não se arreda a competência interna de cada Estado. Por mais densas que sejam (e são realmente) as vinculações internacionais.
Isto arrasta consequentemente a territorialidade das entidades de gestão coletiva. Elas emergem de determinado país e consequentemente têm por limite as fronteiras desse país. Não podem pretender licenciar obras ou prestações com eficácia em países estrangeiros[21]. Por isso dissemos já que quando se querem estabelecer esquemas com eficácia extra-fronteiras as entidades de gestão coletiva procedem por acordos de representação recíproca. O princípio da territorialidade do direito autoral fica assim salvaguardado.
Mas como é possível compatibilizar estes princípios com o movimento de integração económica europeia?
A reação da União Europeia aos exclusivos intelectuais atravessou três fases: hostilidade, aceitação, promoção.
No início, o exclusivo, como obstáculo à livre circulação de bens ou serviços, foi visto como um inimigo. Considerou-se que estava fora das competências da Comunidade e procurou-se de várias maneiras limitar os efeitos negativos sobre a integração económica.
Vencida esta primeira fase, de demolição das barreiras à integração, a atitude dos órgãos centrais da Comunidade muda. Aceita-se a existência destes exclusivos e consequentes monopólios sob a cobertura do direito de propriedade, que os tratados comunitários garantiam, e procura-se harmonizá-los dentro do conjunto das previsões comunitárias.
A terceira fase, que é a atual, corresponde à maturidade da integração comunitária e ao movimento de irradiação das potências dominantes sobre os outros países. Os monopólios intelectuais são sucessivamente empolados por vários instrumentos rotulados de harmonização, que reforçam a subordinação económica dos membros menos desenvolvidos; estes ficam vinculados, embora não estejam em condições de tirar deles proveito. A atual União passa assim a ser promotora ativa da exacerbação dos monopólios intelectuais, a nível interno e a nível internacional.
Por outro lado, na política europeia do digital há uma limitação pouco compreensível.
O ciberespaço não conhece fronteiras. Todos comunicamos ou podemos comunicar com todos pela Net. Pelo que a regulação em matéria da internete deve ser, por natureza, uma regulação universal.
Mas a União Europeia, regulando a matéria antes de mais pelo prisma interno, da lógica do mercado interno e sua integração, omite frequentemente o que ocorre além das fronteiras da própria União. Não é o que fazem outras entidades, a começar pelos Estados Unidos da América. Porém, a União Europeia invoca a comitas gentium, a velha “cortesia internacional”, para se quedar aquém desse limite. Deixando a dúvida se não se tratará antes da política, habitualmente praticada, de deixar o campo livre aos Estados Unidos da América. Assim, há uma lacuna persistente na disciplina das repercussões dos direitos intelectuais além do espaço europeu.
De facto, esta matéria foi discutida, justamente no domínio da gestão coletiva. Assim, Ferdinand Melichar, em livro sobre gestão coletiva[22], põe a questão da necessidade duma “licença global”. Opõe-se a Hoeren, que se posicionara, em estudo para a Comissão Europeia, no sentido da formação de uma “Sociedade de Gestão Coletiva Internacional”. Considera que o confronto das entidades nacionais de gestão coletiva será suficiente para defrontar esta dificuldade. É pois um ponto em aberto.
A União Europeia evitou-o, limitando-se quase à regulação, sempre fragmentária, do mercado único.
11. Territorialidade da gestão coletiva e construção do mercado único europeu
Mas o empolamento dos direitos intelectuais e a territorialidade destes suscitam problemas de compatibilidade com o movimento crescente de integração económica europeia.
A questão põe-se em particular justamente no domínio da territorialidade dos organismos de gestão coletiva. Como se compreenderia que no mercado interno cada país guardasse o exclusivo da gestão coletiva no seu próprio território? Não seria muito mais adequado abrir igualmente esta matéria à concorrência? Permitindo que as entidades de gestão coletiva, que são também empresas, entrassem em concorrência no espaço comunitário?
Esboçou-se então, a nível da Comissão Europeia, o que parecia ser uma quarta fase: a da correção dos excessos monopolísticos no âmbito dos direitos intelectuais, abrindo a uma visão mais solidária e concorrencial, e simultaneamente sensível ao interesse público. Foram produzidos vários documentos de grande interesse, no primeiro mandato de Durão Barroso como Presidente da Comissão, que suscitaram esperanças.
A preocupação que desencadeou esta mudança de atitude foi a da gestão coletiva transfronteiriça da música em rede, na sequência aliás de esforços e sugestões no sentido da criação dum guichet único e da preocupação demonstrada perante a inexistência de licenças pan-europeias. Assim, a 18 de maio de 2005 é emitida uma Recomendação da Comissão (2005/737/CE) “relativa à gestão transfronteiriça coletiva do direito de autor e dos direitos conexos no domínio dos serviços musicais em linha legais”. No mesmo ano, em 11 de outubro, é publicado um documento de trabalho da Comissão, sobre o impacto da reforma[23]. Lueder, ao tempo diretor dos serviços, desdobrou-se em declarações sobre essa política[24].
Mas tudo foi estéril, afinal. Por mais ousadas que fossem as proclamações, as realizações foram sempre no sentido oposto. É nomeadamente nessa altura que surge a ampliação da duração dos direitos dos artistas e dos produtores de fonogramas para uns absurdos 70 anos![25]
No segundo mandato de Durão Barroso dá-se uma nova investida, na sequência da Agenda Digital[26]. A gestão coletiva volta a ser aí diretamente considerada (n.º 2.11.): “O regime e a transparência da gestão coletiva devem ser melhorados e adaptados ao progresso tecnológico”. Refere-se o “licenciamento transfronteiras e pan europeu do audiovisual”. Mas acrescenta-se que as licenças poderão continuar a ser restringidas a um território apenas. A posição é sustentada agora a um nível mais alto, que é o dos comissários: é a comissária Kroes quem coloca abertamente as questões.
Mas o tempo passou e criou a dúvida: a História não se estará repetindo? Os discursos são muito bons mas afinal as realizações desmentem-nos. Vemos nomeadamente a Comissão da União Europeia participar ativamente, com vários países tutelados pelos Estados Unidos da América, na negociação, nada transparente, do Tratado ACTA[27]; enquanto que, no sentido propugnado pela Comissão, não resultava afinal nada.
Entretanto, é pronunciado um importante Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, no caso Premier League.
Um pub britânico pagava, como todos os outros, 700 libras por mês pela transmissão de jogos de futebol em que interviessem equipas inglesas. Resolve passar a comprá-los à Grécia, pagando apenas 800 libras por todo o ano.
A questão foi levada a tribunal e discutida com base na livre circulação de serviços. Mas parece que não podia deixar de estar também em causa, ao menos implicitamente, a territorialidade da gestão coletiva.
O Tribunal de Justiça (U.E.) acabou por dar razão à dona do pub[28]. Fá-lo com uma certa ambiguidade, como aliás é frequente. Se bem interpretamos, o Direito Autoral continuaria a ser territorial, mas os entes de gestão poderiam oferecer os seus serviços onde quisessem. A ser assim, perderiam a tranquilidade do exclusivo de gestão mas ganhariam um espaço muito mais amplo de exercício, em termos de livre concorrência.
O Ac. procura não obstante moderar as consequências a que chegara, invocando por outro lado que, embora o espetáculo não fosse objeto de Direito Autoral, poderia haver nele elementos protegidos: seria o caso dos logotipos visíveis ou dos hinos que fossem tocados. É um desvio fútil e pouco convincente. A visão ou a audição destes elementos não é uma utilização ilegítima. No CDADC português estaria abrangida no art. 75/2 d (a comunicação pública de fragmentos de obras, “quando a sua inclusão em relatos de acontecimentos de atualidade for justificada pelo fim de informação prosseguido”) e pela al. r (“a inclusão episódica de uma obra ou outro material protegido noutro material”). Destes retira-se seguramente que há um princípio que permite excluir da proteção as obras que episodicamente possam ser vistas ou ouvidas no curso de uma emissão radiodifundida. E afinal, é esse o princípio que consta, até com maior generalidade, do art. 10-bis/2 da Convenção de Berna[29].
Este princípio foi expressamente acolhido pelo ADPIC/TRIPS, ao integrar as regras substantivas da Convenção de Berna (com excepção dos direitos não patrimoniais, art. 6 bis). E em nada contraria o teste dos três passos ou mesmo princípios como o do fair use. A reserva do Tribunal terá servido apenas o objetivo tático de prevenir que a decisão fosse criticada pelo facto de dar razão total apenas a uma das partes.
12. A Proposta de Diretriz da Comissão Europeia sobre a gestão coletiva
Era esta a situação quando foi publicada uma Proposta da Comissão Europeia de uma Diretriz sobre a gestão coletiva: COM (2012) 372 final, de 11.VII.2012, sobre a gestão coletiva do direito de autor e direitos conexos e o licenciamento multiterritorial de direitos sobre obras musicais para utilização em linha no mercado interno[30].
Não é, infelizmente, a altura adequada para examinar este documento, que é muito importante e exige um estudo aprofundado. Limitamo-nos a breves primeiras notas.
A Proposta culmina anos de trabalho da Comissão, preparando uma intervenção neste domínio. Os esforços no sentido de autorregulação pelos interessados não deram resultado, pelo que se envereda agora – finalmente – pela proposta duma harmonização comunitária.
Essa diretriz versaria na realidade dois capítulos diferentes, sinteticamente referidos como os do quadro geral e do passaporte europeu da gestão coletiva.
Por um lado, disciplinaria a própria estrutura e atividade das entidades de gestão coletiva do direito de autor e dos direitos conexos dos Estados-membros. A situação atual é preocupante, dada a ausência de padrões e limites satisfatórios. A proposta Diretriz harmonizaria aspetos como a transparência, os critérios de repartição, os acordos com outras entidades de gestão coletiva, a não discriminação…
Por outro lado, a Diretriz interviria na distribuição de música on-line na União Europeia, coroando muitos estudos e propostas anteriores. Procura-se assegurar condições técnicas, nomeadamente digitais, que suportem a abertura desta frente. Fazem-se também exigências suplementares em numerosos setores implicados: as obras, os autores e outros titulares, os critérios de ponderação, a informação pública e atual, até a contabilidade dos entes de gestão coletiva… É pois uma proposta de reforma integrada e vasta, que abre um campo muito propício ao debate. Mantém-se a anomalia que anotamos já, de uma distribuição em linha, logo sem fronteiras, ser regulada apenas para o mercado único europeu.
Que futuro se poderá prognosticar para esta iniciativa? Era fácil augurar que provocaria controvérsias acesas, tão fortes, crispados e múltiplos são os interesses que se debatem[31]. E assim aconteceu de fato. À hora em que encerramos a Proposta está em debate no Parlamento Europeu, não se vendo que se consigam consensos ampliados[32].
Mais surpreendentemente ainda, surge a notícia da preparação de uma Proposta de decreto-lei do Governo português sobre a gestão coletiva, destinada provavelmente a ficar desatualizada a curto prazo com a iminência da aprovação da diretriz comunitária.
Mas terá êxito no final, mesmo que com maiores ou menores feridas na coerência do articulado? É natural que sim, tanto foi o trabalho de preparação, tão prementes as necessidades sentidas e tão clara a lógica integracionista da Proposta. Até porque o texto, não obstante a sua extensão, deixa logo pontos importantes por regular. Mas mesmo que se limite a uma primeira intervenção, já teria um sentido muito positivo.
Que perspectivas se abrem, no plano da territorialidade da gestão coletiva?
Tudo o que se disser é muito arriscado, pois só agora surgirão reações mais ponderadas. Imaginemos porém que se abria a livre concorrência no espaço europeu, no domínio da gestão coletiva. Muito provavelmente, tal como nos outros domínios, as entidades mais fortes, como a SACEM ou a GEMA, teriam condições de esmagar as outras. Para esse efeito poderiam criar federações pan-europeias (ou mesmo internacionais, se tivessem abertura para tanto) que reforçariam o seu poder.
Por outro lado, porém, é também de supor que teriam de renunciar a grandes vantagens, como as tarifas muito elevadas que o monopólio assegura ou os custos exagerados de funcionamento. Doutra maneira arriscavam-se a defrontar pequenas entidades nacionais mais combativas, que oferecessem melhores condições aos aderentes.
Mas também aqui a História se pode repetir e cair-se num novo monopólio de facto, por via da eliminação progressiva de concorrentes ou de fusões das atuais entidades nacionais. Neste caso, mais uma vez, a concorrência mataria a concorrência.
Este receio, de o resultado de uma intervenção se traduzir numa hegemonia das entidades de gestão mais poderosas, parece confirmar-se. As muitas exigências que são estabelecidas para que as entidades possam proceder ao licenciamento multiterritorial trazem seguramente esta consequência. Às de menor porte restará a consolação de serem dispensadas de algumas exigências gerais na sua atividade corrente, mas ficam limitadas ao mercado interno do seu país de origem.
Tudo isto pode ter repercussões profundas sobre o próprio Direito Autoral – a começar no âmbito europeu. Mas semelhante prospeção extravasa já claramente o objeto deste estudo.
Vamos acompanhar o debate. Mas devemos também participar, porque os grandes movimentos resultam igualmente de pequenos contributos.
Notas
1 O Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos português.
2 Fizemos já esta distinção, aproveitando a diferença de sentidos das palavras forçosa e forçada na língua portuguesa, no nosso Gestão colectiva: síntese dos trabalhos e perspectivas futuras, in “Gestão colectiva do Direito de Autor e Direitos Conexos no ambiente digital”, Actas do Colóquio organizado pela Presidência Portuguesa da Comunidade Europeia em 23 e 24 de Março de 2000, Gabinete do Direito de Autor / Ministério da Cultura (GDA), 2001, 273-292; in Revista da ABPI (São Paulo), n.º 48, Set/Out 2000, 21-30; in Derecho de la alta Tecnologia, Estudio Millé (Buenos Aires), ano XII, n.º 136/137, Dez/99-Jan/01, 25-35; in “Estudos sobre Direito da Internet e da Sociedade da Informação”, Almedina, 2001, 289-309; e in Direito da Internet e da Sociedade da Informação – Estudos, Editora Forense (Rio de Janeiro), 2002, com o título Gestão colectiva: perspectiva do autor, 283-304.
3 Do Ministério da Cultura.
4 E um projeto posterior do grupo do PSD na Assembleia da República baixava a percentagem para 15%.
5 Apresentado na Assembleia da República e discutido em comissão em 2012. Estava aliás muito mal estruturado e foi retirado. Não avançamos na interpretação deste para nos não afastarmos do nosso tema.
6 Não poderá deixar de se estranhar também que esta matéria venha submetida à epígrafe comum “Fundo Cultural”.
7 Podemos dar como exemplo as tabelas da entidade de gestão coletiva de direitos dos artistas.
8 Esses acordos podem ser de vários tipos. Podem as duas entidades:
a – guardar para si as receitas correspondentes às autorizações dadas em representação dos titulares membros ou administrados pela outra entidade, o que pressupõe uma equivalência tendencial de valores;
b – ou entregar as receitas correspondentes a titulares do país estrangeiro à entidade de gestão coletiva estrangeira com quem contrataram.
É natural que neste caso se proceda à compensação de valores resultantes do exercício da representação recíproca.
9 De facto, as entidades de gestão coletiva não elaboram normalmente listas das obras ou prestações dos associados que constam do seu repertório; e igualmente não as têm, ou não as têm atualizadas, das dos titulares associados ou representados pelas entidades estrangeiras com quem celebraram acordos de representação recíproca. A questão da legitimidade é real – tal como consequentemente o é o risco que recai sobre o utilizador.
Problema similar é o que respeita à legitimidade processual das entidades de gestão coletiva. Versámo-lo no nosso Direito Penal de Autor cit., n.os 25 e seguintes, e não o iremos retomar agora.
10 Incluindo dos editores, que todavia não são titulares de direitos autorais. É outra anomalia, que mostra como o centro de gravidade do Direito Autoral se deslocou para a defesa dos direitos empresariais.
11 Distinguimos distribuição e repartição, seguindo a terminologia tendencial da lei. A distribuição é realizada pela pessoa coletiva entre os seus associados, que são entidades de gestão coletiva; a repartição é feita por estas últimas entre os beneficiários finais seus associados.
12 Com a reforma da lei espanhola sobre cópia privada e a transferência para o Estado do encargo da atribuição da compensação, o volume desta compensação baixou radicalmente. A AISGE lamenta que, em vez dos 110 milhões que eram recebidos anteriormente, tenha passado a receber apenas 5 milhões: veja-se Celia Teijido, España da un paso atrás en la defensa de sus creadores, em ACTUA (Revista da AISGE), 80, jul/set 12, 81.
13 Fala-se também por vezes em direitos não patrimoniais dos titulares de direitos conexos: estariam em causa particularmente os artistas intérpretes ou executantes, que são pessoas físicas e podem assim invocar direitos ligados à personalidade. Mas independentemente da análise aprofundada do estatuto destes, que não caberia neste trabalho, pensamos que o artista tem efetivamente faculdades não patrimoniais; mas a estas não corresponde um direito não patrimonial, com a solidez que esta atribuição pressupõe. Por isso a lei, pensamos que com razão, não distingue na titularidade dos artistas um direito pessoal.
14 Dada a oposição das entidades de gestão coletiva nacionais
15 Salvo casos excecionais de deveres de exercício.
16 A Proposta de lei em debate desde 2009 prevê a criação dum órgão com essas funções, mas a aprovação tem sido sucessivamente postergada.
17 Se uma entidade única detém direitos musicais para efeitos de radiodifusão, por exemplo, essa entidade poderia impor as tarifas que quisesse, nas condições que determinasse, sem qualquer correlação com o valor relativo dos bens intelectuais em presença.
18 Haimo Schack, Urheber- und Urhebervertragsrecht, 2.ª ed., Mohr Siebeck, 2001, n.º 1191.
19 Esta autoridade publicou em 2009, sob a designação de Un nuevo impulso, um “Informe sobre la gestión colectiva de derechos de propiedad intelectual”, que é arrasador na descrição dos desvios das entidades de gestão coletiva.
20 Ou “contratuais gerais”, como habitualmente são qualificadas, para retratar a situação mais frequente.
21 Tal como, reciprocamente, não se admite que entidades estrangeiras pretendam licenciar obras ou prestações nesse território.
22 Urheberrecht in Theorie und Praxis, Mohr Siebeck, 1999, 157.
23 SEC (2005) 1254. A 1.ª versão é de 7 de julho de 2005.
24 Veja-se sobre esta época o nosso O Direito de Autor e a Internete. Em particular as recentes orientações da Comunidade Europeia, in Direito da Sociedade da Informação, vol. VII, APDI/Coimbra Editora, 2008, 9-26.
25 Por evidente indução dos Estados Unidos da América.
26 COM (2010) 245 final. Já antes, em 3.I.08, a Comissão emitira outra comunicação, com o título Conteúdos criativos em linha no mercado único (COM (2007) 836 final, 03.01.2008), em que uma das ideias-base era a criação de licenças multiterritoriais para conteúdos criativos. A Agenda Digital retoma estes objetivos, apelando para o licenciamento transfronteiras e pan-europeu: observando que não existe na Europa um mercado unificado no setor dos conteúdos (n.º 2.11.).
27 Que acabou rejeitado pelo Parlamento Europeu.
28 Ac. de 4 de outubro de 2011, em que se determina que uma licença para retransmissão de jogos de futebol, que interditasse a autorização para a utilização noutros Estados-membros, violaria o Direito Comunitário.
29 Eis o texto: “Fica igualmente reservada às legislações dos países da União a regulamentação das condições nas quais, por ocasião dos relatos de acontecimentos da actualidade por meio da fotografia ou da cinematografia, ou por meio da radiodifusão ou de transmissão por fio ao público, as obras literárias ou artísticas vistas ou ouvidas no decurso do acontecimento podem, na medida em que o objectivo de informação a atingir o justificar, ser reproduzidas e tornadas acessíveis ao público”.
30 Na mesma data foi publicado um documento de trabalho da Comissão, SWD (2012) 240 final, sobre o impacto da Proposta. A própria Proposta conheceu já várias versões, embora mantenha a mesma numeração. Isto exprime bem a intensidade do debate.
31 Pense-se por exemplo no que poderá implicar o art. 17/3 proposto: “As tarifas devem refletir o valor econômico dos direitos no tráfego e do serviço prestado pela entidade de gestão coletiva, não discriminarão entre os utilizadores sem justificação objetiva e serão determinadas com base em critérios objetivos”.
32 Simultaneamente estão em debate outros aspectos da harmonização do Direito Autoral mais ou menos relacionados, como a chamada portabilité transfronteiras dos serviços de acesso aos conteúdos e a compensação equitativa por cópia privada.
*Professor Doutor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
Coordenador cientifico, de 1988 a 1990, do Curso de Dreito da Universidade da Ásia Oriental.
**Este escrito é destinado aos Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J. Lebre de Freitas.
28/7/2015