Doutrina

A propósito da pena de morte

Maria Fernanda Simões*

«Meus caros alunos, digo-vos já que o Direito Penal é a disciplina mais bonita do curso de Direito». Foi mais ou menos com estas palavras proferidas pelo Professor Figueiredo Dias no inicio do 3.º ano que eu tive a primeira abordagem com este ramo do Direito e, sem querer menosprezar outros ramos de Direito, perfilho a mesma simpatia por este.

Nesta altura em que Macau vive um momento histórico único cuja transição exige a reordenação do sistema jurídico face à Declaração Conjunta, estando em discussão a Lei Básica e com esta, a possibilidade de não consagração do direito à vida como um direito fundamental susceptível de inviabilizar a pena de morte no novo Código Penal para o Território, propus-me escrever um pequeno texto, enquanto simples aluna e sem qualquer outro Intuito que não o de uma breve reflexão que me merece o assunto.

Para tanto socorrer-me-ei dos conhecimentos que me foram ministrados pelos meus Professores e de alguma bibliografia que citarei. Não pretendo que seja mais do que um breve apontamento e no qual procurarei tanto quanto possível sintetizar aquilo que penso acerca da pena de morte.

O Direito Penal, é, sem dúvida, o ramo de direito que mais obriga a uma profunda reflexão, não que outros ramos de direito o não exijam, mas porque é aquele direito que mais se faz sentir no íntimo de cada cidadão, e é fácil perceber porquê. Porque é aquele ramo de direito cuja violação atinge o bem mais precioso do ser humano, a Liberdade (quando não a própria Vida, nos sistemas que consagram a pena de morte)!

E costume dizer-se que o Direito Penal corresponde ao lado patológico do Direito, pois só intervém quando já foram violados os bens jurídicos que visa proteger, isto resulta da própria natureza fragmentária do Direito Penal, pois entende-se que este só deve tutelar aquele conjunto de bens jurídicos indispensáveis à vida em comunidade resultantes de uma valoração ético-jurídica ínsita nessa resma comunidade. Bens estes que encontram o seu fundamento nos princípios constitucionalmente consagrados: A Vida, a Liberdade, a Integridade Física, a Honra e todos outros inalienáveis da pessoa humana. Citando o Prof. Figueiredo Dias: «O direito penal torna-se, (…) numa ordem de protecção de bens jurídicos que é, ela própria, expressão da ordem axiológica fundamental da comunidade».

Daqui resulta a natureza fragmentária do Direito Penal, cuja intervenção só se legitima quando outro ramo do direito seja ineficaz, sob pena de ilegalidade.

«O poder punitivo do Estado, (…) exerce-se primariamente no sentido do controlo do crime; (…) no sentido da protecção das condições essenciais da vida do homem na comunidade e, assim da livre realização e desenvolvimento da personalidade de cada um»[1].

Quando o Estado chama a si o monopólio do ius punendi, porque não se permite a quem quer que seja, fazer justiça petas suas próprias mãos, tem que justificar e legitimar a pena que vai infligir ao delinquente, sob pena de comprometer a sua própria existência enquanto Estado de Direito, constitucionalmente democrático.

No entanto, a pena é indissociável da culpa e da ilicitude como partes integrantes do conceito material de crime, e como tal a sua legitimidade encontrar-se-á na Constituição Democrática do Estado[2]. Até porque, a não ser assim, e porque por trás do Estado estão Homens, se pergunta: «quem é quem para punir outrem e com que fundamento»?

É, pois, ao Direito Penal que cabe a tarefa de justificar a aplicação de urna pena, e ao fazê-lo, procura simultaneamente o seu próprio fundamento, residindo nas ideias de culpa e ilicitude a razão de ser da pena.

Historicamente a ideia de culpa como fundamento da pena surge ligada a uma outra, conhecida como a Lei de Talião concepção esta que consistia na aplicação de um castigo ao infractor idêntico ao sofrido pela vítima, traduzido por outras palavras, «olho por olho dente por dente». Quem praticava algum delito deveria ser punido pela sua conduta culposa.

Reside nesta expressão a pena como retribuição do mal praticado. Esta similitude entre o delito praticado e a pena correspondente conduzia a situações algumas vezes caricatas senão mesmo bárbaras.

Posteriormente, ainda que retributiva, a pena foi expurgada da ideia de correspondência (entre o delito cometido e a pena a aplicar) e passou a ser aplicada apenas em função da culpa do infractor. É através deste conceito de culpa que alguns autores vêm mesmo a defender que a pena não é só um castigo infligido, mas é mais do que isso, ela é um verdadeiro direito do delinquente, (é Hegel quem o defende).

A doutrina da culpa dominou durante largo tempo como única explicação da pena a aplicar, contudo a sua concepção sofreu variadíssimas modificações ao longo dos tempos.

A culpa é um conceito ético associado à ideia de liberdade, mas para subsistir necessita de um suporte material, despido da pura especulação metafísica em que assenta a ideia de Liberdade, ou seja, um conceito de culpa susceptível de ser objectivamente imputado a um comportamento do agente, por forma a responsabilizá-lo criminalmente e, deste modo, poder a pena exercer uma função preventiva, isto é, levar o individuo a adoptar o comportamento de acordo com os valores que a comunidade perfilha. Só deste modo é possível alcançar um conceito material de culpa associado à ideia de liberdade.

Todos nós sabemos que nem sempre o homem é livre de decidir, nem sempre adopta esclarecida e livremente, em um dado momento, o comportamento devido e considerado correcto, contudo, e apesar das limitações inerentes ao meio onde se insere, ele tem que se decidir, quer para o bem quer par o Mal e só a ele lhe cabe a opção.

Porque os homens têm de escolher, porque todos os homens são livres, (ainda que em menor grau, ainda que sofrendo condicionalismos sócio-económicos, culturais etc.), o facto é que a última decisão lhes pertence, e se se decidem pelo crime então forçosamente têm de ser responsabilizados por tal.

O Homem ao longo da sua existência tem que decidir, pois «(…) nas relações sociais, cada pessoa é um fim em si mesma, possui urna dignidade intocável»[3]. Deste modo, só a pena em função da culpa confere ao ser humano a dignidade inerente à sua própria condição.

Por ser assim, o Direito Penal através do conceito de culpa, fundamenta a aplicação na pena, e também, o seu próprio fundamento; «é o valor irrenunciável da garantia da eminente dignidade humana que constitui o fundamento axiológico da culpa jurídico-legal; e é a delimitação da responsabilidade do homem, dali decorrente, que constitui a função desempenhada pela culpa à luz das exigências do Estado de Direito democrático»[4].

Mais tarde, a ideia de culpa como fundamento sofreu alguns acertos, e isto porque, com base em alguns trabalhos desenvolvidos por outras disciplinas como a Psicologia e a Sociologia que vieram pôr em evidência que a liberdade de decisão (o livre arbítrio) é, na maior parte das vezes, inatendível, isto porque, saber ao certo quando é que um agente, em determinada situação poderia ter adoptado o comportamento devido e não o fez deliberadamente, antes se decidindo pela conduta criminosa, conduz a um juízo casuístico de tal modo falível com o qual não se compadece o Direito Penal.

Basicamente existem duas teorias para explicar a finalidade da aplicação de uma pena: a Teoria da Prevenção e a Teoria da Prevenção Especial. A primeira caracteriza-se por atribuir à pena uma função intimadora no sentido geral de prevenir a criminalidade e deste modo a pena tem também uma função educativa no sentido de exemplificativamente servir para os indivíduos adoptarem o comportamento adequado à valoração ético-norrnativa que ela comporta; a segunda de acordo com a ideia de perigosidade, visa essencialmente individualizar a pena a aplicar ao agente tendo em conta a ressocialização do delinquente, isto é, procura responsabilizar criminalmente é certo, mas simultaneamente procura ainda recuperar o delinquente para a sociedade e de modo a que não venha a reincidir.

Qualquer urna dais teorias é por si só, insuficiente para constituir a finalidade da pena, pois se por um lado, tendo em conta apenas a Teoria da Prevenção Geral o fim da pena seria em grande medida a intimidação (ameaça), conduziria a «(…) transformar o direito penal em direito de terror (…)»[5], e, por outro lado, a Teoria da Prevenção Especial não cumpre a principal função preventiva do crime que cabe ao Direito Penal. Deste modo ambas são explicativas dos fins das penas e, antes de se excluírem, pelo contrário, a sua complementaridade é indispensável ao Direito Penal.

Sendo estes os fins das penas, se se aceitasse a pena de morte, de certo que ficariam logrados esses fins, ou pelo menos a Teoria da Prevenção Especial não teria qualquer significado pois não haveria delinquente a recuperar sempre que lhe fosse aplicada a pena de morte, por outro lado quanto à Teoria da Prevenção Geral que tem por base a intimidação no sentido de prevenir o crime, essa intimidação seria obtida à custa do próprio homem, ou seja, seria utilizar o Homem corno objecto de ameaça, consistindo numa violação à dignidade humana e um retrocesso à sociedade esclavagista!

Deste modo, qualquer que seja a doutrina que um determinado sistema jurídico-penal adopte, (embora só abstractamente existam modelos puros, verificando-se na prática um sistema misto com maior ou menor predominância de um modelo), quanto ao seu fundamento e às finalidades das penas, uma coisa poderá ter-se corno um dado adquirido, é que, e citando o Prof Dr. Eduardo Correia: «(…) a abolição da culpa na fundamentação do direito penal tiraria aos aparelhos do Estado toda a legitimidade para punir. A culpa, partindo da dignidade humana, tem, antes, que ser sempre fundamento, ou, ao menos, limite da pena»[6].

Ora, sendo o nosso Direito Penal um direito que tradicionalmente assenta na ideia de culpa como fundamento da responsabilidade jurídico-penal e, sendo Portugal um dos primeiros países a abolir a pena de morte, de acordo com o direito à vida consagrado constitucionalmente, (art. 24.º da C.R.P.), e, se se pretende a manutenção do sistema jurídico de matriz portuguesa, não faria sentido que no futuro, (pelo memos durante os próximos 50 anos) na RAEM, viesse a ser consagrada a pena de morte. Não creio que fosse essa a ideia dos responsáveis da Declaração Conjunta, nem tão pouco dos redactores da futura Lei Básica e apesar de não se vir declarar expressamente o direito à vida como um bem inviolável na futura Lei Básica, ela não é o Código Penal da futura RAEM, e basta que este não preveja a pena de morte para que fique ressalvada a sua não aplicação.

Acredito que assim será com o novo Código Penal de Macau, pois sendo um projecto que tem envolvido as personalidades mais ilustres do nosso pais, outra coisa não seria de esperar, pois, a não ser assim, constituiria um retrocesso da doutrina portuguesa.

Notas

1 Figueiredo Dias, Pressupostos da Punição, Jornadas de Direito criminal, p. 47, fotocópias fornecidas aos alunos do 3.º ano, Macau/1991.

2 Idem.

3 Para um maior desenvolvimento, sobre a noção de Estado veja-se Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo I, 3. ed., Coimbra Editora, pág. 45 e ss..

4 Figueiredo Dias, Pressupostos do Punição, Jornadas de Direito Criminal, pág. 66 e ss., fotocópias fornecidas aos alunos do 3.º ano, Macau/1991.

5 Idem.

6 Eduardo Correia, As grandes linhas do reforma penal, Conferência proferida em 10/Nov/82, R.O.A.

7 Eduardo Correia, ob. cit.

* Jurista. Texto publicado na edição de ‘O Direito’ de Janeiro de 1991. A autora era então aluna do 4.º ano do Curso de Direito da Faculdade de Direito de Macau.

back to top