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A iniciativa legislativa

A iniciativa legislativa e o (in)sucesso legislativo nas primeiras legislaturas da Assembleia Legislativa, antes e após a transição da administração portuguesa de Macau para administração chinesa da RAEM, têm semelhanças e diferenças que veremos de seguida, depois abordaremos o caso de um projecto de lei.

Até 20 de Dezembro de 1999, data da transferência da administração portuguesa para a chinesa, a função legislativa pertencia, nos termos do artigo 5.º do Estatuto Orgânico de Macau, aprovado pela Lei n.º 1/76, de 17 de Fevereiro, aos deputados à Assembleia Legislativa e ao Governador.

Em termos quantitativos e com base em dados de quatro legislaturas de 1976 até 4 Dezembro de 1989, o Governador apresentou na Assembleia Legislativa (AL) um maior número de propostas de lei comparativamente aos projetos de lei apresentados pelos deputados. O Governador enviou para a AL 179 propostas de lei e os deputados apresentaram na AL 82 projectos de lei. (Vitalino Canas, «Preliminares do Estudo da Ciência Política», 1992, pg. 251).

A grande maioria das propostas de lei apresentadas pelo Governador na AL foi aprovada. Relativamente aos projetos de lei apresentados pelos deputados na AL, a grande maioria foram aprovados, uma «percentagem de ´sucesso legislativo´ acima de 80%» (Vitalino Canas, ob. cit., pg. 254 e 255).

Este modelo, relativamente às entidades com competência legislativa, manteve-se após a transferência da administração portuguesa para a chinesa, em 20 de Dezembro de 1999. O Chefe do Executivo pode, nos termos do artigo 64.º, al. 5) da Lei Básica apresentar propostas de lei e os deputados podem, nos termos do artigo 75.º apresentar projectos de lei. Contudo, a segunda parte do artigo 75.º impede os deputados da AL de apresentarem projectos de lei e de resolução que envolvam receitas e despesas públicas, a estrutura política ou o funcionamento do Governo, o que limita de sobremaneira a iniciativa legislativa dos deputados. Apenas o Governo pode exercer o poder de iniciativa legislativa nestas matérias. Esta norma estipula, também, que a apresentação de projectos de lei e de resolução que envolvam a política do Governo deve obter prévio consentimento escrito do Chefe do Executivo.

Manteve-se a tendência, em termos quantitativos, que referimos anteriormente quanto ao Governador, do Chefe do Executivo apresentar mais propostas de lei na AL comparativamente a projetos de lei apresentados pelos deputados.

A referida tendência, bastante acentuada nas primeiras legislaturas da AL após 1999, foi de alguma forma alterada na IV legislatura, 4.ª sessão legislativa 2012/2013. O Chefe do Executivo (CE) apresentou 16 propostas de lei na AL, oito tinham transitado da sessão legislativa 2011/2012, e um deputado, eleito directamente, apresentou 12 projectos de lei (Relatório de actividades da AL relativo à IV legislatura, 4.ª sessão legislativa 2012/2013). Na V legislatura, 5.ª sessão legislativa 2013/2014 da AL, cujos trabalhos se iniciaram em 15 de Outubro de 2013, o mesmo deputado e um colega eleito na mesma lista já apresentaram dois projectos de lei na AL: «Regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas e à criminalização da violência doméstica» e «Regime da Actualização das Rendas de Bens Imóveis».

A diferença, relativamente ao «sucesso legislativo» dos projetos de lei apresentados pelos deputados nas quatro legislaturas desde 1976 até 4 Dezembro de 1989, é que nenhum dos projectos de lei, apresentado na IV legislatura, 4.ª sessão legislativa 2012/2013 da AL, bem como os dois projectos de lei apresentados na V legislatura, 5.ª sessão legislativa 2013/2014, foi aprovado. A grande maioria das propostas de lei apresentadas pelo CE na AL foram aprovadas, tanto quanto sabemos houve duas propostas de lei retiradas pelo Governo.

Não cremos que este insucesso legislativo, relativamente aos projetos de lei apresentados pelos deputados, resulte da falta de cedências ou de conciliação dos proponentes face a eventuais alterações a introduzir nos projectos de lei, de forma a garantirem algum consenso por parte da maioria dos deputados, uma vez que os referidos projectos de lei foram todos rejeitados aquando da discussão na generalidade em plenário na AL, ou seja nem houve oportunidade de serem analisados nas Comissões especializadas das AL, onde têm assento vários deputados, e aí serem introduzidas alterações.

A constituição da AL é semelhante desde 1976 até à atualidade. Há deputados eleitos por via indirecta, deputados nomeados e deputados eleitos por sufrágio universal que estão em minoria. Verificou-se, nos termos da Lei Básica, um aumento dos deputados eleitos por via indirecta e dos deputados eleitos por sufrágio universal. Em 1976, a Assembleia Legislativa passou a ser constituída por 17 deputados: seis eleitos por sufrágio universal, seis indirectamente e cinco nomeados pelo Governador. A Assembleia Legislativa, através da Lei n.º 13/90 de 10 de Maio que alterou o Estatuto Orgânico de Macau, passou a ser constituída por 23 Deputados: oito eleitos por sufrágio directo e universal, oito eleitos por sufrágio indirecto e sete nomeados pelo Governador.

O Estatuto Orgânico de Macau foi substituído pela Lei Básica em 20 de Dezembro de 1999 e após as eleições de 15 de Setembro de 2013 a AL passou a ser constituída por 33 deputados: 14 deputados eleitos por sufrágio universal, 12 deputados por via indirecta, escolhidos por Associações, e sete deputados nomeados pelo Chefe do Executivo. Relativamente à eleição dos deputados eleitos por sufrágio universal verificou-se um aumento significativo da sua base eleitoral. Se nas eleições por sufrágio universal para a AL em 1976 votaram 2.846 eleitores, em 1988 votaram 20.049, em 1996 75.093 e nas últimas eleições em 2013 votaram 151.881 eleitores.

Um dos projectos de lei apresentado na AL pelos deputados José Pereira Coutinho e Leong Veng Chai, eleitos por sufrágio universal pela lista «Nova Esperança», debatido e votado na generalidade no dia 2/1/2014, denominava-se, como referimos anteriormente, «Regime da Actualização das Rendas de Bens Imóveis».

O aumento do preço de compra e do arrendamento dos imóveis tem sido constante. A estimativa da população residente de Macau em 31 de Dezembro de 1999 era de 437.455 pessoas e no final de  2013 a população total de Macau era composta por 607.500 pessoas (Estatísticas Demográficas referentes ao 3º Trimestre de 2013 da Direcção dos Serviços de Estatísticas e Censos).

O número de casinos aumentou substancialmente. Em 2002 havia 11 casinos e em 2013 havia 35, número que não inclui os denominados «Mocha Clubs», locais onde se pode jogar em máquinas. Muitos casinos são, também, por exemplo, hotéis, centros comerciais, etc., de modo que necessitam de milhares de trabalhadores para funcionarem. Macau tem uma área reduzida, em 2012 tinha 29,9 km².

Estes factores, entre outros, contribuem para a especulação imobiliária que se verifica.

O projecto de lei apresentado na AL visava que a actualização anual de renda dos diversos tipos de arrendamento, fosse o resultado da variação do índice de preços no consumidor, excepto a habitação correspondente aos últimos doze meses. Obteve sete votos a favor, cinco abstenções e dezoito contra, dois deputados não estiveram presentes.

A maioria dos deputados eleitos por sufrágio directo, seis, votaram a favor, cinco votaram contra, dois abstiveram-se e um deputado presente na AL ausentou-se na altura da votação. Um deputado eleito por sufrágio indirecto votou a favor, três abstiveram-se, sete votaram contra e um não esteve presente na AL. Os 7 deputados nomeados pelo Chefe do Executivo à AL votaram contra.

Na legislatura anterior, IV legislatura, 4.ª sessão legislativa 2012/2013 da AL, já tinha sido apresentado um projecto de lei semelhante, denominado «Regime da Actualização das Rendas de Bens Imóveis Destinados a Habitação», que foi debatido e votado na generalidade na AL no dia 22/5/2013. Obteve quatro votos a favor, cinco deputados abstiveram-se e onze votaram contra. Sete deputados não estiveram presentes na AL.

O projecto de lei debatido e votado na generalidade na AL, no dia 2/1/2014, tem algumas diferenças relativamente ao projecto debatido e votado, na generalidade, na AL no dia 22/5/2013. O âmbito de aplicação do diploma foi alargado, para além da habitação passou a abranger também, por exemplo, os arrendamentos comerciais, uma forma, segundo a nota explicativa do diploma, de salvaguardar as pequenas e médias empresas dos aumentos significativos de rendas. Muitas empresas têm sido obrigadas a encerrar a sua actividade por não poderem suportar o aumento das rendas.

O Código Civil, artigo 969.º e ss., prevê normas relativas ao arrendamento, pelo que o projecto de lei apresentado na AL se trata de uma lei avulsa. Mesmo que o projecto apresentado implicasse a derrogação de alguma norma do C.C., isso seria normal. Um eventual conflito entre normas seria resolvido segundo os princípios conhecidos, prevalência de norma especial ou excepcional sobre norma geral e de norma posterior sobre norma anterior.

Talvez a única disposição do C.C., que seria afectada fosse o artigo 999.º, n.º 1, al. a): onde se lê «Nos termos e condições que resultem do contrato ou por acordo posterior das partes».

Mas o próprio Código Civil, artigo 399.º, já estipula, ao enunciar o princípio da liberdade contratual, que é dentro dos limites da lei. Portanto, também as disposições do Código Civil que falam sobre renda se devem obviamente entender sempre com a ressalva implícita «dentro dos limites da lei», ou «salvo limites estabelecidos na lei».

Quanto ao argumento de que o diploma contraria o princípio do capitalismo seguindo a mesma lógica, a limitação legal de juros, resultante da combinação da fixação da taxa de juro legal com as disposições do CC sobre juro usurário, não são então, também elas, contrárias ao capitalismo?

O diploma foi criticado, ainda, porque protegia mais os arrendatários e não previa garantias para os senhorios. Mas os direitos e deveres das partes, locador e locatário, já estão genericamente regulados no Código Civil e os senhorios já têm uma clara posição de supremacia, podem, nomeadamente, denunciar o contrato após 2 anos.

Por outro lado, se o valor das rendas for limitado, maior será a probabilidade de os inquilinos as poderem pagar pontualmente e, portanto, maior será, em princípio, a probabilidade de eles efectivamente as pagarem pontualmente.

E se as rendas não forem altíssimas, maior folga haverá no orçamento das famílias para cuidarem da sua habitação, procedendo a pequenos arranjos à sua própria custa.

Tenha-se ainda em conta que, como estipula o artigo 7.º da Lei Básica, os terrenos de Macau são propriedade do Estado, salvo os terrenos que sejam reconhecidos, de acordo com a lei, como propriedade privada, antes do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau. Difícil seria conciliar a competência do Governo da Região Administrativa Especial de Macau, prevista no referido artigo, na sua gestão, uso e desenvolvimento, bem como seu arrendamento ou concessão a pessoas singulares ou colectivas para uso ou desenvolvimento, com a prática de especulação imobiliária.

Durante o debate do projecto de lei na AL nenhum deputado referiu que não existe especulação imobiliária em Macau e sendo assim seria necessário um maior debate de forma a encontrar soluções para que os interesses da comunidade fossem acautelados.

20/1/2014

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