Por: João Soares, advogado*
O advogado foi proscrito, aviltado, ridicularizado, mas sempre soube resistir ao longo da história da humanidade, imune à voragem do tempo e às diversidades dos sistemas. Na verdade, tal como o pato de Goethe, muitas vezes parecendo desaparecido nas águas agitadas, sempre surgiu, mais fresco e revitalizado, dos seus mergulhos.
Também a sua presença se justifica no nosso tempo. Na verdade, onde houver um conflito e a necessidade de restabelecer a harmonia por ele posta em crise, aí haverá lugar para o intercessor, o medianeiro, o protector ou o patrono, como sempre foi entendido o advogado ao longo dos tempos. É que se a vida social implica integração, não é menos verdade que ela não dispensa o dissenso. Pela sua natureza, ela é uma realidade de equilíbrio instável. Além disso, mercê da complexidade das sociedades actuais, estas são objecto de regulação extensa e sofisticada. Depois, os poderes públicos nunca abdicaram de restringir e condicionar o «espaço de senhorio» dos particulares, para além de que novos poderes disputam a autonomia destes. Tudo, pois, factores que potenciam o conflito. E isto num momento em que os particulares se tornam cada vez mais cônscios da sua cidadania e lutam pela defesa dos seus direitos e interesses legítimos, afirmando a sua esfera de autonomia em face de todos os poderes aviltantes.
O advogado é, pois, aquele que é chamado (ad-vocatus) a vir em socorro de alguém que se encontra em situação de carência ou de fragilidade, em virtude do conflito em que se encontra inserido, aconselhando-o, auxiliando-o ou representando-o, na busca da solução pacificadora. E, no tempo da «medicina do homem são», como é o actual, é também aquele que, cada vez mais, é chamado a esclarecer o sentido de uma concreta normatividade, a aconselhar o comportamento lícito ou a ajudar na escolha da melhor solução para um problema, visando sempre prevenir a eclosão de eventuais conflitos.
Pela natureza das coisas, o advogado é o confidente mais próximo do cidadão, intervém nas relações pessoais e sociais mais delicadas e sensíveis, contacta com toda sorte de fraquezas e misérias do ser humano, com os seus sofrimentos, as suas angústias e as suas inquietações. Os momentos do advogado são dramáticos, vivos, pungentes, desconcertantes, estimulantes. Nas suas mãos são colocados os valores mais relevantes do cidadão: a liberdade, a honra, o património. E as pessoas que o procuram, assim como a sociedade em geral, têm necessidade de depositar nele a sua total confiança, a certeza de que a defesa dos seus direitos está bem entregue.
E por força disto e em virtude do contributo que lhe é pedido, compreende-se que ao advogado seja de exigir um grande arcaboiço de conhecimentos, que seja um jurisperito, e qualidades de trabalho e de reflexão, que lhe permitam perspectivar e encontrar as soluções mais correctas e sensatas do ponto de vista normativo, doutrinal e jurisprudencial. Além disto, e não é pouco, a ele se exige ainda que seja uma pessoa capaz de adoptar um alto nível de conduta ética: que seja livre e independente, submetido apenas à sua consciência e às regras deontológicas da profissão, digno e honesto, recto e honrado. Só assim ele poderá dar provas da imparcialidade dos seus juízos, da justeza dos seus conselhos e da seriedade da sua conduta e caucionar a confiança pública que nele é depositada.
Assim é que dos diplomas concernentes à profissão de advogado, em vigor desde os inícios dos anos noventa, se pode extrair, nomeadamente: que a profissão de advogado cumpre uma eminente função social e que é de relevante interesse público; que o advogado se deve considerar sempre um servidor da justiça e do direito; que deve pugnar sempre pela correcta aplicação da lei, pela descoberta da verdade e pela rápida administração da justiça; que deve exercer com dignidade e prestígio a profissão; que deve ser digno da honra e das responsabilidades a ela inerentes; que deve manter sempre e em quaisquer situações a maior independência e isenção; que deve recusar o patrocínio de toda a questão que não considere justa; que as suas retribuições se designam por «honorários», justamente por serem merecidas e ganhas com honra; que lhe é vedada toda a espécie de publicidade profissional; que lhe é proibido solicitar ou angariar clientes, por si ou por interposta pessoal; que deve cumprir, pontual e escrupulosamente, todos os deveres consignados no Código Deontológico.
E este diploma leva longe a legião dos deveres que impõe ao advogado, afirmando que uns são deveres para com a entidade representativa da classe dos advogados, outros para com os clientes, outros ainda para com os advogados e outros, finalmente, para com os magistrados. E, apesar do extenso rol de deveres que consagra, tal diploma não se fica por aqui, pois determina que o advogado cumprirá ainda, pontual e escrupulosamente, quaisquer outros deveres que resultem das leis, usos, costumes e tradições.
Na verdade, não se conhece outra profissão para a qual tenha sido sentida a necessidade da consagração positiva de uma miríade tão grande de deveres e de uma magreza tão austera de direitos. Na verdade, contam-se pelos dedos de uma mão os direitos que lhe são reconhecidos. Contrariamente à do magistrado, a quem é conferida directamente pela lei e logo no momento em que inicia as suas funções, a autoridade do advogado, longe de provir de direitos e prerrogativas que a lei (não) lhe concede, advém-lhe antes da honorabilidade e do prestígio que conseguir granjear e que só obterá ao longo de uma vida de cumprimento exigente das normas da deontologia profissional e de exercício proficiente do mandato confiado.
É, pois, submetido a esta infinidade de deveres que vemos o advogado a desincumbir-se da sua complexa e nobre função. Na verdade, é um privado, mas a sua actividade não se reduz ao exercício de uma mera profissão; não é funcionário público, mas está incumbido de uma função social de manifesto interesse público; exerce uma função de interesse público, mas não está subordinado a hierarquias, actua com liberdade e independência, submetido apenas ao direito e à justiça e aos ditames da sua consciência.
A função do advogado visa pois fazer triunfar a ordem jurídica na sociedade, de acordo com o seu travejamento axiológico, contribuindo para que seja factor de consenso, de harmonia e de paz social e, com isso, para que a sociedade se desenvolva em termos mais justos e mais humanos.
É assim, por exemplo, que encontramos o advogado, no seu dia-a-dia, no seu escritório, a satisfazer as necessidades de esclarecimento, informação, aconselhamento dos clientes que o procuram, prevenindo e acautelando o surgimento da ilicitude e do conflito. Tal como o advogado de empresa, por exemplo, a esclarecer a sua cliente sobre as diferentes implicações, em termos do direito comercial, fiscal, laboral ou da propriedade intelectual e industrial, decorrentes das decisões ou das estratégias a adoptar, ou a redigir minutas contratuais, as mais simples ou as mais complexas, ou a conceber as reformas estatutárias solicitadas, etc.
Mesmo perante o conflito, vemos também o advogado a promover a construção da solução do conflito pelas próprias partes, em conformidade com o ditado popular de que «mais vale um mau acordo do que uma boa demanda».
E havendo necessidade de franquear as portas do tribunal em busca da solução justa para o conflito, aí temos o protagonismo do advogado, representando o seu cliente. Na verdade, a ele cabe escolher e expor os factos mais relevantes, formular as pretensões em termos processualmente adequados, pronunciar-se sobre múltiplos problemas processuais, requerer a produção de meios de prova, intervir na produção da prova, apreciar livremente os meios probatórios, expor as suas teses de direito. E se há razões para que o cliente se não conforme com a decisão proferida, aí estará novamente o advogado a esgrimir argumentos contra a decisão do juiz, tentando convencer o tribunal de recurso da bondade dos mesmos e assim obter a decisão que lhe seja favorável.
O que significa que o advogado participa na função judicial e que, por força da dialéctica que se estabelece entre ele e o juiz, contribui decisivamente para a formação da decisão e, consequentemente, para a criação e efectivação do direito. Razão por que se afirma que juízes e advogados são imprescindíveis à função judicial, os quais se encontram irmanados na mesma missão de fazer triunfar, cada um a seu modo, a ordem jurídica. E face à contribuição decisiva que o advogado pode dar para uma boa e justa decisão da causa, afigura-se-nos que deverá ser desejo de qualquer juiz ter sempre, a seu lado, um bom advogado.
É certo que, de vez em quando, se ouvem vozes negando ou lançando o equívoco sobre a necessidade da constituição de advogado nos processos judiciais, mas trata-se, seguramente, de uma posição que releva de uma completa incompreensão dos mecanismos de funcionamento da justiça. Sem a mão competente dos advogados o processo seria um caos, o espaço da irracionalidade dos impulsos e das paixões das partes, abundariam os incidentes e as irredutibilidades, e o juiz e a sua função asfixiariam. A verdade é que não é concebível a realização do direito sem intervenção dos juízes e, em colaboração com estes, dos advogados. É o advogado que esclarece as partes acerca do seu direito e do modo adequando de o defender, é o advogado que expurga do tribunal as causas inviáveis, que modera as paixões do cliente, que selecciona os factos relevantes, que requer os meios de prova adequados, que alega de facto e de direito, que argumenta no sentido de convencer o juiz sobre a bondade das suas teses, e é ainda o advogado que, como os seus argumentos, critica e põe em causa a decisão proferida.
Importante é que o advogado represente o seu cliente, com brio e dignidade, emprestando à causa todos os seus conhecimentos, toda a sua experiência, todo o seu dinamismo, toda a sua combatividade, nunca esquecendo o respeito que deve ao tribunal e às vestes talares que enverga e nunca enveredando por direcção oposta àquela que lhe é traçada pela função que exerce, que é a de ser servidor do direito e da justiça.
Através de todas estas formas de intervenção, o advogado exerce a sua profissão e cumpre a função social e de relevante interesse público em que a mesma se traduz, sendo apaziguador dos conflitos sociais, promotor do triunfo da ordem jurídica e agente do equilíbrio e da paz social.
Mas a verdade é que o actual contexto económico e social em que nos é dado viver não é favorável ao exercício ético-social da profissão de advogado. Com efeito, estamos caídos na era do falso e do vazio, onde se acentua o descrédito nos valores morais que constituíram a urdidura das sociedades tradicionais e onde apenas há guarida para as regras do mercado, para o lucro e para os interesses do capital. Generaliza-se a ideia de que toda actividade humana deve girar à volta do que é financeiramente rentável e até que o prestígio e a honorabilidade da pessoa se medem pela sua capacidade de acumulação de riqueza. E vai-se mesmo ao ponto de se aceitar acriticamente a ideia de que quanto maior for o poder económico de uma pessoa ou a sua capacidade de acumular riqueza, maior será o seu prestígio e dignidade social.
É pois nesta sociedade, descrente das valorações éticas, que o advogado é chamado a exercer a sua actividade profissional e a interrogar-se sobre qual é verdadeiramente o papel que nela deve desempenhar. Por força das actuais circunstâncias, estão criadas as condições ideais para que o advogado resvale ou se veja envolvido por situações susceptíveis de o colocarem em oposição frontal à directriz que lhe é traçada pelas regras a que está vinculado. Na verdade, não faltará muito para que a advocacia passe a ser entendida e exercida como um simples negócio de prestação de serviços e tanto mais rentável quando menos for de respeitar as regras éticas da profissão. Não será difícil que advocacia de negócios esqueça, definitivamente, se não esqueceu já há muito, a razão de ser da profissão e se transforme num instrumento ao serviço do lucro e dos interesses do grande capital. Que o advogado, com dificuldades económicas e irresignado a uma vida pessoal e familiar de dificuldades, se tenha de “prostituir”, alugando a sua competência a todo o tipo de interesses e causas, com o único propósito de cobrar “honorários” elevados dos “seus” clientes para os distribuir, em percentagens elevadas, por pessoas alheias à profissão. Que os advogados, com dificuldades em se instalarem por conta própria ou a encontrarem condições mais condizentes com o seu estatuto, tenham de aceitar a sua completa “proletarização” como trabalhadores de outros advogados, integrando autênticas “linhas de montagem” de produção de papéis e de peças processuais, sem qualquer autonomia e independência técnica, a troco de uma remuneração fixa ao fim do mês.
Todas estas situações, e muitas outras poderão existir, são susceptíveis de pôr em causa a matriz axial da advocacia, tal como tradicionalmente entendida.
Face às circunstâncias actuais, impõe-se perguntar: que tipo de advocacia e de advogados pretende a sociedade em que estamos inseridos? Meros agentes económicos e empresários prestadores de serviços? Mercenários prontos para a defesa de quaisquer interesses? Malabaristas e manipuladores das normas legais ao serviço dos interesses da grande empresa e do grande capital? Praticantes do tráfico de influências? Perturbadores e semeadores da discórdia? Tecnocratas e equilibristas? Empregados de conta alheia?
E nós, advogados, que máscaras pretendemos afivelar nesta nossa sociedade? Que sentido devemos atribuir, hic et nunc, à nossa profissão? Fará sentido ainda continuar a lutar por uma função ético-social da advocacia? Temos as condições necessárias e adequadas para continuarmos a prestar um contributo válido à sociedade? De que tipo de classe profissional queremos nós fazer parte e que imagem dela pretendemos transmitir? Que características e que atributos permitirão o reforço do prestígio da classe? Poderão ainda os advogados subsistir com dignidade?
É este um debate que urge fazer e que apenas poderá ser feito por nós, por todos nós advogados, com total liberdade e autonomia, conscientes dos pergaminhos que as nossas togas claramente tiveram no passado e dos reais problemas que classe tem de enfrentar e que não podemos fazer de conta que não existem, mas com a reconfortante certeza de que, qualquer que seja a crise em que nos encontremos mergulhados, a nossa profissão surgirá sempre mais fresca e revigorada, tal como afinal o pato de Goethe, depois dos seus mergulhos.
Texto motivado pelo Dia do Advogado, 19 de Maio de todos os anos (ocorreu no Domingo passado), em que se venera Santo Ivo (Yves Hélory de Kermartin), o padroeiro dos advogados, falecido nesse dia do ano de 1303, o qual, tendo sido juiz, padre e advogado, soube sempre fazer da justiça e da dignidade humana as referências fundamentais da sua actividade profissional. Pretendo, com este texto, evocar ainda a memória de dois Ilustre Colegas falecidos, que tive o grato privilégio de conhecer, o Dr. Jorge Azeredo Osório e o Dr. Henrique de Senna Fernandes, de quem guardo, bem vivo, o imperecível legado do seu exemplo.
*João Soares foi professor na Faculdade de Direito da Universidade de Macau entre 1989 e 2004.
Texto publicado, em 21/5/2013, na edição impressa do jornal Ponto Final
24/5/2013