Doutrina

Legítima defesa

Jorge Godinho

1. Introdução

A legítima defesa, isto é, o direito de defesa (artigo 21.º, 2.ª parte, da Constituição) é uma das causas de justificação do facto (art. 44.º, n.º 5 do Código Penal). Comprovada a sua plena verificação, a ilicitude do facto tem-se por excluída. Isto significa que o agente que praticou um facto típico não deve ser punido por tal, concluindo-se pela inexistência de ilicitude e, como tal, de responsabilidade criminal.

A legítima defesa fundamenta-se, em termos objectivos, na consideração de que o Direito não deve ter de ceder perante o ilícito e subjectivamente, no reconhecimento aos cidadãos de um direito de auto-defesa dos seus interesses. O agressor viola a paz jurídica e ameaça bens determinados. O defendente protege o direito objectivo e os seus interesses.

Na averiguação concreta sobre se uma conduta deve ou não ser considerada como tendo sido praticada em legítima defesa são tidos em conta vários critérios. Com vista à sistematização destes critérios podemos distinguir entre pressupostos e requisitos da legítima defesa.

Os primeiros são critérios de justificação mínimos, sem cuja verificação não se pode falar da existência de actuação em legítima defesa. Sem a verificação dos pressupostos (agressão actual e ilícita) o acto é ilícito, não havendo justificação, total ou parcial, caso não se verifique outra causa de justificação (p. ex., o estado da necessidade).

Os requisitos são critérios de justificação a cuja averiguação só é de proceder quando se verifique que no caso concreto estão presentes os pressupostos da legítima defesa. A ausência de requisitos de legítima defesa significa que o facto é parcialmente justificado, mas não totalmente. Não é concedido o benefício pleno da legítima defesa, falando então a lei de excesso de legítima defesa.

2. Pressupostos

É pressuposto da legítima defesa a existência de uma agressão actual e ilícita.

Por agressão entende-se a lesão ou colocação em perigo de interesses ou bens juridicamente tutelados, proveniente de uma acção humana. À defesa contra animais ou coisas inanimadas ou sem vida é aplicável o estado de necessidade. A agressão relevante para a legítima defesa não tem de ser culposa e pode consistir numa omissão. Admite-se legítima defesa contra agressões provenientes de inimputáveis e pessoas agindo em erro.

A legítima defesa de bens públicos não é em princípio de admitir, a não ser que estejam simultaneamente em causa bens particulares.

O problema da actualidade da agressão é de natureza temporal: só pode haver legítima defesa durante a ocorrência da agressão – não antes nem depois. Antes da agressão nada há que defender. Por outro lado, quando termina a agressão termina a licitude da defesa. O que se faça depois é crime, injustificado.

O carácter actual da agressão deve ser visto do ponto de vista do agredido. A agressão deixa de ser actual no momento em que o defendente se apercebe de que a agressão parou. É claro no entanto que se o defendente continua a agredir quando já terminou a agressão isso é uma consequência dos factos anteriores. Haverá então um crime doloso, não justificado, mas atenuado devido a provocação (agressão anterior).

Esta é actual se os factos praticados, salvo circunstâncias imprevisíveis, representam uma perigosidade imediata ou próxima para os interesses ofendidos, de tal modo que a defesa não pode sem aumento do perigo ser retardada.

A tentativa constitui agressão actual. No entanto, não se deve fazer depender a solução a dar à questão de saber se a agressão é actual do problema de saber se existe crime tentado ou consumado. A legítima defesa não depende do conceito de consumação, mas sim da utilidade da defesa no contexto da agressão. No caso do furto, a questão da actualidade da agressão não depende da teoria da consumação do tipo que serve de critério.

Deve haver contiguidade da defesa com o facto que a causa. Não é de admitir a existência de legítima defesa quando se provoca uma perturbação pública nova, sem contiguidade com a agressão.

A agressão fundamentadora da legítima defesa deve ser ilícita, mas não tem de ser punível. A ilicitude (ilegalidade) da agressão afere-se em termos penais: deve tratar-se de uma agressão de bens jurídico-penalmente tutelados. Se os bens em questão não são penalmente tutelados poderá ser aplicável o regime da legítima defesa previsto no Código Civil. De resto, a agressão não tem de constituir crime ou sequer de ser culposa. O direito de defesa não pode depender da culpa do agressor. Se existe um dever de tolerar a agressão, esta não é ilícita.

3. Requisitos

Os requisitos da legítima defesa são a necessidade do meio empregue, a impossibilidade de recurso à força pública e a inexistência de excesso na causa da agressão. Tratam-se de restrições implícitas ao direito de legítima defesa.

Quando estejam disponíveis vários meios para reagir à agressão, o defendente deve empregar o meio menos gravoso à sua disposição. O meio menos gravoso é aquele que menos dano causa ao agressor, em condições de razoável indiferença para o agredido. Pode-se diferenciar entre a espécie do meio (p. ex., é menos gravoso reagir à paulada do que a tiro) ou a quantidade da lesão (p. ex., é menos gravoso disparar para o ar do que para as pernas ou para a cabeça). São abrangidos pela legítima defesa as acções dirigidas ao agressor e aos meios por este empregues na agressão.

A defesa é permitida com vista a parar a agressão. Isto não significa que apenas se possa rechaçar a agressão mas não já contra-atacar (defesa ofensiva). Pode-se fazer tudo (e apenas) o que for necessário para parar a agressão. A lesão infligida ao agressor deve ser o menor possível.

Há excesso, objectivamente, se foi utilizado um meio mais gravoso, havendo à disposição meios menos gravosos. Se só um meio útil e eficaz para parar a agressão está disponível é esse meio que se pode usar, sendo irrelevantes considerações acerca da desproporção dos valores ou interesses em jogo, salvo casos extremos. Na legítima defesa em princípio não se apela à ponderação de bens.

E de notar que na averiguação da existência de excesso nos meios não se pode ser demasiado rigoroso para com o defendente, porquanto este está numa aflição imediata, o que retira ou pode retirar discernimento. Na avaliação da necessidade do meio devem ter-se em conta as capacidades concretas do defendente, na situação concreta em que se encontrava.

Para além disto devem ter-se em conta todas as circunstâncias concretas da ocorrência da agressão e da defesa, designadamente a intensidade e perigosidade da agressão.

Em termos objectivos, há excesso de legítima defesa se se utilizou meio mais gravoso do que o necessário para repelir a agressão. O excesso de legítima defesa é objectivamente ilícito e fundamenta a responsabilidade criminal. Admite-se legítima defesa contra o excesso de legítima defesa.

Em termos subjectivos, pode-se distinguir entre o excesso doloso e o excesso culposo. Esta distinção refere-se aos meios empregues e não à finalidade da defesa: a contra-agressão em que consiste a defesa é sempre dolosa. Não repugna ao Direito que, por exemplo, alguém queira matar para se defender. 0 que repugna é que alguém para se defender tenha morto outrem quando se poderia ter defendido de uma outra forma, que não implicasse a perda de uma vida.

Há excesso nos meios doloso quando o agente tem consciência da existência de meios menos gravosos do que o necessário e opta conscientemente pela utilização de meios mais gravosos. Há excesso nos meios culposo quando, não havendo excesso doloso, seria exigível ao agente que empregasse meios menos gravosos.

O excesso de legítima defesa é um crime punível, doloso ou negligente, consoante o caso, aplicando-se, nos termos gerais, a distinção entre dolo e negligência e a regra da punibilidade dos crimes negligentes a título excepcional.

Caso o excesso de legítima defesa, doloso ou culposo, seja motivado por perturbação ou medo desculpável o agente não é punido.

Outro requisito da legítima defesa é a impossibilidade de recurso à força pública, às forças da ordem (polícias, etc.) (art. 46.º, n.º 2). Pode ser exigível ao defendente que, em vez de reagir à agressão, apele à intervenção dos órgãos públicos competentes, se a ajuda destes se conseguir de forma útil e eficaz e se estes estiverem dispostos a actuar. Este requisito já implicitamente se poderia ter como compreendido na exigência da necessidade do meio e da mesma forma pode ser doloso ou culposo. A exigência deste requisito encontra apoio no artigo 21.º, 2.ª parte, da Constituição.

A agressão deve ser livre na causa (actio libera in causa), isto é: não deve haver excesso na causa. Com isto se pretende significar que na análise jurídica da situação concreta, se bem que num primeiro momento nos podemos restringir apenas aos factos imediatamente relevantes, num momento posterior cabe analisar outros factos não directa e imediatamente relevantes. Exemplificando: quem comete um crime num estado de inimputabilidade não é punido. Deve- se no entanto perguntar se o agente tem culpa na criação do estado de inimputabilidade em que se colocou. Se o agente tem culpa do estado (ex: embriaguez) que é a causa do facto, tem culpa da consequência. Esta análise progride até aos limites consentidos pela causalidade. Não se podendo imputar num primeiro momento o facto por não haver dolo ou culpa, cabe perguntar se na causa do facto há dolo ou culpa.

Isto significa que não é por alguém estar a sofrer uma agressão actual e ilícita que há necessariamente legítima defesa e justificação do facto.

Mesmo que na análise do contexto próximo da acção se chegue a uma conclusão negativa quanto à imputação e à responsabilidade, isso não termina a indagação. Deve-se regredir a análise a contextos anteriores quantas vezes o permitir a teoria da causalidade adoptada. Se o agente tem culpa na criação da situação em que surge como defendente, o facto que pratique em reacção à agressão é-lhe imputável.

Assim deve-se perguntar porque é que a agressão ocorreu. Se aquele que se defende deu causa à agressão não é justo que o facto seja justificado. Se o agredido deu causa à agressão, não deve beneficiar da justificação plena, ocorrendo uma restrição ao seu direito de defesa. Por outro lado, não deve ter de ficar inteiramente à mercê do ataque do provocado-agressor. Há que aplicar um regime análogo ao excesso nos meios, por haver defesa culpada.

Cabe distinguir entre excesso na causa doloso e culposo. Excesso na causa só verdadeiramente existe quando alguém dá causa à agressão por mera culpa. Com efeito, se alguém estimulou dolosamente o agressor o que verdadeiramente se verifica é a existência de um ardil: a produção dolosa de uma situação aparente de defesa (defesa preordenada). E uma armadilha, uma situação que revela perigosidade, frieza de ânimo. E crime, e agravado, não havendo qualquer justificação. Só há justificação parcial se o excesso na causa é culposo ou doloso não preordenado, o que sucede quando alguém dá causa a uma reacção agressiva sem intenção ou consciência de o estar a fazer.

Assim, por analogia com o excesso nos meios e por aplicação do regime geral dos crimes negligentes, o excesso na causa culposo só é punido se a lei admitir a punição do crime negligente correspondente.

A actio libera in causa é uma estrutura analítica aplicável a todos os casos de responsabilidade fundada na culpa.

4. Legítima Defesa Alheia

A legítima defesa alheia deve ser tratada em alguns aspectos de forma mais benévola e noutros de forma mais severa do que a legítima defesa própria.

É pressuposto, da mesma forma, a existência de uma agressão actual e ilícita. No entanto, em situações confusas, já em curso, um terceiro pode não ter meios de saber quem é o agressor e quem é o defendente. As condições de licitude da intervenção de um terceiro têm de ser abrandados pois não podem estar dependentes de saber quem começou a agressão – o que, na relação entre agressor e defendente, é fundamental. Desencorajar-se-ia a legítima defesa alheia se se exigisse ao terceiro que intervém com vontade de pacificar que apurasse sempre quem é o agressor. A legítima defesa alheia é um acto nobre que não deve ser desencorajado.

Relativamente à intensidade do meio empregue na defesa, deve ser-se mais exigente. Para com o agredido é-se benévolo porque este está a sofrer um ataque, o que não se passa com o terceiro.

Relativamente aos elementos subjectivos, pode suceder que a perturbação emocional de um terceiro seja até maior do que a do agredido. Seja o caso de um pai que depara com uma agressão a um filho.

5. Elementos Subjectivos

Nas causas de justificação há elementos objectivos e subjectivos.

A este propósito, discute-se se é de exigir do defendente um particular conteúdo de vontade ou uma intenção caracterizada de certo modo (animus defendendi) e se é de exigir o conhecimento da agressão actual e ilícita.

A resposta a ambas as questões é, a nosso ver, negativa. Os sentimentos do defendente (quaisquer que sejam, o que pode incluir o desejo de vingança) não são relevantes. Nada mais se exige para além da existência de uma agressão actual e ilícita.

Também não é de exigir o conhecimento da agressão. Uma defesa casual, por coincidência, beneficia da legítima defesa.

A necessidade de proceder à investigação do conteúdo psíquico do agente desequilibraria o instituto, pois é muitas vezes difícil provar o animus defendendi. A legítima defesa é um direito básico; a ordem jurídica tem de assistir ao defendente que deve ser tratado benevolentemente. Se se impusesse um requisito subjectivo positivo estar-se-ia a sobrecarregar o agente com um ónus difícil de provar.

A ordem jurídica deve assistir ao agredido pois, de facto, num primeiro momento há uma agressão e o ilícito triunfa o facto consumado funciona sempre.

Perguntar-se-á: como se distingue o agressor do agredido numa situação de legítima defesa casual? A resposta tem de ser, a nosso ver, a de que a legítima defesa beneficia ambos: é esta a consequência que se deve aceitar, para não desequilibrar o instituto. No entanto, as situações de legítima defesa casual são raríssimas.

Em conclusão: a defesa com excesso nos meios, na causa ou sem recurso à força pública (quando exigível) é ilícita, podendo a pena ser atenuada. Ainda as sim, o agente não deve ser punido se agiu dominado por perturbação, susto ou medo.

6. Erro

Seja qual for o tratamento que se der ao problema do animus defendendi, o erro releva negativamente.

A suposição de um estado de coisas que, a existir, excluiria a ilicitude do facto, é causa de exclusão de dolo, por aplicação das regras sobre o erro. O erro pode incidir sobre os pressupostos ou sobre os requisitos de legítima defesa.

Havendo erro sobre os pressupostos, o dolo é excluído.

Havendo erro sobre os requisitos, por maioria de razão, o dolo é também excluído: se existe uma situação real de legítima defesa e o defendente erra apenas quanto à existência de um meio menos gravoso, faz sentido que o dolo seja excluído. O erro sobre os requisitos exige maior benevolência.

Discute-se o tratamento a dar aos casos de excesso de legítima defesa putativa, em que alguém, supondo a existência de uma agressão actual e ilícita, reage de uma forma que, a existir a agressão, seria excessiva. A nosso ver, não se pode aplicar o regime do excesso de legítima defesa porque este pressupõe a existência de uma agressão real. Por outro lado, a exclusão do dolo só é de aplicar quando a acção, a existir a agressão, fosse plenamente justificada, mas não já quando há excesso. Isto porque aquele que actua em excesso de legítima defesa em reacção a uma agressão real é punido com a pena aplicável ao crime doloso correspondente, eventualmente atenuada. Não faria sentido que aquele que age em excesso de legítima defesa putativa viesse a ser punido de forma mais benévola.

7. Casuística

a) A é nadador-salvador em serviço numa praia. Ao ver B, banhista, em dificuldades e a pedir socorro, A nada faz. C aponta uma arma a A e diz-lhe que o mata se não for salvar B.

b) A vê que B vai fazer explodir dois pilares da ponte Macau-Taipa. Para deter B, A, que não pode em tempo útil alertar quem quer que seja, agride B na cabeça.

c) A, pianista, toca diariamente. B, exasperado por não conseguir dormir, invade a casa deste e destrói o piano.

d) A, furta a carteira de B e foge. B, após demorada perseguição consegue agarrar A, dá-lhe vários socos e murros e recupera a carteira.

e) Em certo dia, A agride B. Três dias depois B, para se vingar da agressão sofrida, agride A.

f) A, circulando na rua, ouve B correr na sua direcção. Julgando que B o ia agredir, A vira-se de repente e dispara, matando B.

g) A, recluso num estabelecimento prisional, não foi libertado no dia em que devia ter sido. Exasperado, A agrediu um guarda e furtou-lhe a arma, com a qual destruiu as portas fechadas que encontrou até conseguir escapar do estabelecimento prisional.

BIBLIOGRAFIA: Eduardo Correia, Direito Criminal, II, Coimbra, 1965; Figueiredo Dias, Direito Penal, policopiado, Coimbra, 1975; Manuel Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal Português, I, Verbo, 1981; Claus Roxin, As restrições ético-sociais ao direito de legítima defesa, in Problemas fundamentais de Direito Penal, Vega, Lisboa, 1986, pág. 197 e ss.; Günter Stratenwerth, Derecho Penal, Parte General, I, El Hecho Punible (tradução castelhana da 2.ª edição alemã, 1976), Madrid, 1982; Johannes Wessels, Derecho Penal, Parte General (tradução castelhana da 2.ª edição alemã, 1976), Buenos Aires, 1980; H. H. Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte General (tradução castelhana da 3.ª edição alemão, 1978). vol. I, Barcelona, 1981.

Jorge Godinho – Jurista Gabinete para os Assuntos Legislativos

Artigo publicado na edição de «O Direito» de Janeiro de 1993

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