Jogo

Fortuna sem azar

No período do Ano Novo Chinês, Ano do Porco, foi noticiado que uma jovem de 16 anos, acompanhada da mãe, tinha ganho um prémio de 740 mil dólares de Hong Kong quando jogava numa máquina de um casino.

A questão pode ser analisada em duas vertentes:

– Terá o casino de pagar à menor, representada pela mãe, o prémio?;

– Poderá o casino ser sancionado por ter permitido a entrada de uma menor para jogar um jogo de fortuna e azar?

Em termos normativos, a Lei n.º 16/2001, que define o regime jurídico da exploração de jogos de fortuna ou azar em casino, proíbe, na alínea 1) do n.º 1 do artigo 24.º, aos menores de 18 anos, o acesso às salas ou zonas de jogo. Por seu lado, o n.º 2 do artigo 52.º remete para regulamentação complementar as disposições necessárias à execução da lei, nomeadamente as relativas à utilização e frequência das salas de jogo e às infracções administrativas. Ora, essas disposições, designadamente as que deveriam estabelecer sanções para os casinos que não cumprissem a referida proibição, ainda não foram publicadas.

O casino, quando a menor se dispôs a levantar o montante referido, pediu-lhe a identificação e optou por não pagar o prémio, devolvendo mais de 40 fichas para «slot-machines», valor que teria sido gasto pela menor. De acordo com uma notícia publicada no jornal JTM, de 22/2/2007, intitulada «Jurista diz que existe um Projecto-Lei que nunca foi discutido», a mãe da menor exigiu o pagamento da totalidade do prémio e apresentou uma queixa aos quadros superiores da subconcessionária do jogo.

Na notícia referida é citado um jurista que afirma o seguinte: «Ao jogar nos casinos celebra-se uma espécie de contrato jurídico, isto é, quando algum cliente investe o seu dinheiro em qualquer tipo de jogo num casino, ao carregar no botão, espera um determinado resultado». Logo, acrescenta, «o prémio é lhe devido».

Porém – adverte o mesmo jurista –, no caso em questão o «contrato jurídico é ilegal por duas razões diferentes», que passa a explicar. «A primeira, como é óbvia, é o facto de um menor não poder estar dentro de uma sala ou zona de jogo. A segunda, é que qualquer pessoa menor de 18 anos de idade não tem capacidade jurídica para celebrar um contrato, pois carece de capacidade para o exercício de direitos, a não ser que esteja legalmente emancipada». Assim, conclui, o «contrato jurídico» estabelecido entre a jovem e o casino «deve ser assumido, à partida, como nulo». Mas, sublinha ainda, se nesta situação a menor não tem direito ao prémio em questão, «a concessionária também não tem direito a ficar com o dinheiro que foi investido pelo cliente, devendo restituir a totalidade da soma».

Quanto a nós, cremos que o contrato de jogo que a menor celebrou com a empresa que gere o casino não é nulo (como diz o jurista acabado de citar), mas meramente anulável, nos termos do artigo 114.º do Código Civil. Ora, isso reduz consideravelmente o âmbito de pessoas com legitimidade para o impugnar em juízo, além de sujeitar tal impugnação a um prazo (cfr. artigos 114.º e 279.º do Código Civil). Isto é lógico, pois a sujeição do menor a uma incapacidade de exercício visa proteger o próprio menor (e, no fundo, também os seus pais, que poderiam acabar por sofrer as consequências dos seus actos), e não a contraparte. No caso em apreço, se a adolescente tivesse perdido no jogo, os seus pais poderiam invocar a sua menoridade para obterem judicialmente a anulação do contrato de jogo e, assim, livrarem a sua filha (ou livrarem-se a si próprios) da obrigação de pagar a dívida; ao invés, tendo a adolescente ganho, os seus pais certamente não terão interesse na anulação do contrato e, como a própria empresa não tem legitimidade para arguir a sua anulabilidade, ele produzirá os seus efeitos normais, pelo que a empresa terá que pagar a sua dívida.

A Direcção de Coordenação e Inspecção de Jogos viria a decidir entregar o prémio ganho pela menor à mãe e a sancionar o casino com uma advertência. Numa notícia publicada no jornal Hoje Macau, de 26/2/2007, com o subtítulo «Um mal menor» um responsável da DICJ referiu que «“A lei só veda a entrada nos casinos, mas ela entrou. O casino não a impediu, ela apostou, não cometeu nenhuma fraude ao jogar”, (…) mas a decisão foi tomada um bocadinho contra vontade”. Segundo o responsável, a tarefa não foi fácil. Recorreu-se à “legislação complementar”, ouviram-se vários juristas – incluindo alguns “de fora” – e até juízes, que terão considerado baixa a hipótese de o caso contra a jovem vir a vingar em tribunal. “Optámos pelo mal menor”».

Em artigo assinado no jornal Hoje Macau, de 3/2/2007, intitulado «Um mal maior», Duarte Santos, um docente da Universidade de Macau discorda juridicamente da decisão da DICJ de entregar o prémio à mãe da menor. Declara o autor do artigo: «Quando um menor joga está a defraudar a lei e não o seu contrário, daí resultando, nos termos do art. 1071.º, n.º 2, do Código Civil (diploma que regula genericamente o contrato de jogo e aposta), que o negócio realizado nestas condições não produz quaisquer efeitos jurídicos, ou seja, ele é nulo porque viola lei imperativa tal como o prescreve o artigo art. 287.º do Código Civil. Afinal, parece haver uma sanção para a situação em causa, apesar de à DICJ ter passado despercebida. Saber se ela é suficiente é uma outra questão.»

Pela nossa parte, não concordamos com a interpretação que o autor do artigo faz do n.º 2 do artigo 1171.º do Código Civil.

Por um lado, cremos que a expressão «fraude na execução», aí utilizada, significa simplesmente «batota no jogo». Ora, a jogadora em causa não fez batota.

Por outro lado, quando haja realmente batota, a sanção jurídica daí decorrente não será, em nosso entender, a nulidade do contrato, nem sequer a anulabilidade, mas tão-somente a sua ineficácia jurídica em relação ao batoteiro ganhador. Tenha-se em conta que a invalidade (nulidade ou anulabilidade) de um acto jurídico resulta normalmente da falta de um pressuposto ou elemento legalmente exigido para a prática desse acto; os vícios que ocorram após a prática do acto jurídico, nomeadamente na fase da sua execução, não prejudicam a sua validade (isto é, a sua aptidão intrínseca para produzir efeitos jurídicos), mas apenas, eventualmente, a sua eficácia jurídica (ou seja, a sua produção de efeitos jurídicos). À luz deste princípio geral, a fraude na execução do contrato (e não na sua celebração) só poderia conduzir à sua ineficácia jurídica – e a uma ineficácia jurídica que, em nome de princípios como a justiça (suum cuique tribuere), a boa fé (nomeadamente, na sua vertente de tutela da confiança legítima) e o «pacta sunt servanda», só poderia prejudicar o próprio responsável pela fraude. Ora, é precisamente essa, a nosso ver, a solução que o n.º 2 do artigo 1171.º do Código Civil exprime, ao dizer que o contrato «não produz qualquer efeito em benefício de quem a praticou». Recorde-se, que, quando o Código Civil pretende cominar um acto com a sanção de nulidade, costuma afirmar explicitamente que ele é nulo, em vez de recorrer a expressões como «não produz qualquer efeito jurídico».

Agora, se aquilo que o citado docente pretendia dizer é que tinha havido fraude na própria celebração do contrato (por a adolescente ter enganado o pobre casino acerca da sua idade), então a disposição do Código Civil aplicável não seria o n.º 2 do artigo 1171.º, mas o n.º 1 artigo 247.º, em articulação com o n.º 1 do artigo 246.º – tratar-se-ia, pois, de dolo, facto viciador da vontade. O dolo, tal como a menoridade em si, acarretaria apenas a anulabilidade do contrato, e não a nulidade. Ainda assim, ele ofereceria uma vantagem ao casino: dar-lhe-ia legitimidade para requerer judicialmente a anulação do contrato, já que seria ele a «vítima» do dolo (n.º 1 do artigo 247.º), ao passo que a mera situação objectiva de menoridade da jogadora, como vimos, não conferiria tal legitimidade ao casino, mas aos seus pais (al. a) do n.º 1 do artigo 114.º).

Relativamente à questão da aplicação de uma sanção à concessionária do casino por ter permitido a entrada de uma menor para jogar um jogo de fortuna ou azar, violando uma obrigação a que legal e contratualmente estava obrigada, a Lei n.º 16/2001, como referimos há pouco, não prevê uma sanção específica, remetendo para regulamentação complementar a sua fixação.

Poder-se-ia admitir ainda, como direito aplicável ao caso, a responsabilidade civil da RAEM por omissão legislativa, uma vez que não foram publicadas as necessárias disposições de execução da lei supramencionada. Para tanto, seria necessário que esta omissão fosse ilícita e culposa.

Ora, será ela ilícita e culposa?

Seria fácil reputá-la de ilícita, se a Lei do Jogo tivesse fixado um prazo para a aprovação ou publicação das normas em falta: expirado o prazo sem que estas tivessem sido aprovadas ou publicadas, o órgão faltoso incorreria indubitavelmente em ilegalidade por omissão. Não havendo prazo, poder-se-á discutir se a obrigação de as aprovar e publicar é – utilizando agora uma terminologia do Direito Civil – uma obrigação «cum voluerit» (para cumprir quando quiser) ou uma obrigação «cum potuerit» (para cumprir quando puder). Tratando-se de uma obrigação imposta pelo Direito Público a uma entidade pública – e destinada, portanto, à prossecução de um interesse público, e não privado –, deveremos considerá-la uma obrigação «cum potuerit».

Ora, é difícil de crer que, ao longo destes 6 anos que transcorreram desde a publicação da lei exequenda (a mencionada Lei n.º 16/2001), o Governo não tenha tido possibilidade de levar por diante o procedimento necessário à aprovação das normas de execução em falta. Lembre-se, por exemplo, que o Governo não regateou recursos nem tempo para efectuar as alterações normativas necessárias para que os casinos pudessem conceder crédito para jogo, fazendo assim a vontade às concessionárias norte-americanas! Nestas circunstâncias, podemos considerar que a omissão é ilícita. E também será culposa, se for exacto aquilo que afirma o jurista citado na mesma notícia: que, o Governo só não avançou com aquele procedimento porque «ainda não há muito interesse em regulamentar esta matéria». Interesse de quem, nesse caso? Não seria difícil de adivinhar! Mas teria alguém legitimidade processual para exigir em juízo a dita indemnização? Pelo menos por enquanto, não nos parece, pois ninguém sofreu, na sua própria esfera jurídica, um prejuízo. A pessoa potencialmente prejudicada teve sorte e saiu beneficiada, pelo menos em termos patrimoniais imediatos. Trata-se, contudo, de uma questão que reclama maior reflexão.

Por outro lado, o jornal Hoje Macau, e também o próprio JTM, numa entrevista com o Director da DICJ, vieram mais tarde a relatar algo que nos parece divergir das declarações do jurista citado na notícia anterior. Referem eles: «O director da DICJ reiterou que o Governo está a preparar uma pacote legislativo abrangente sobre o sector do jogo, que inclui também este tipo de infracções administrativas. Seguramente regulamentada estará a questão dos menores de idade que ganhem prémios em casinos, de forma a impedir que situações idênticas se repitam. A DICJ irá sugerir que a legislação preveja a não atribuição do prémio ganho por menores, bem como a inclusão de penas para as concessionárias se um menor for encontrado dentro de um casino, que não deverão passar de sanções pecuniárias. “Esperamos que o processo decorra o mais depressa possível, para que estes diplomas entrem em vigor ainda no decorrer deste ano”, adiantou». Afinal, há ou não um projecto de lei já preparado sobre a matéria que aqui nos preocupa? Eis algo que a imprensa poderia continuar a tentar descobrir.

Seja como for, é bom, realmente, que a referida legislação seja aprovada depressa, mas ela não deverá garantir apenas que os prémios ganhos por menores lhes não sejam atribuídos, como realça o Director da DICJ; tem de assegurar igualmente que as dívidas por eles contraídas,  em consequência de um contrato de jogo não sejam havidas como obrigações civis, e nem sequer como obrigações naturais, e que o dinheiro por eles despendido para jogo lhes seja restituído. Para tanto, poder-se-á estipular que o contrato de jogo celebrado por um menor seja juridicamente inexistente.

Carlos Veiga e António Katchi, em co-autoria

14/03/2007

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Fortuna com azar

Em sentido contrário aos argumentos expostos, o Doutor Jorge A. F. Godinho, Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Macau, num texto intitulado «The 16-year old gambler», publicado no seu «site» e na «Macau Business, March 2007», considera, tradução de «O Direito», que:

«Como professor de Direito, é sempre gratificante quando casos imaginados para serem discutidos nas aulas se vêm a verificar na vida real. Isso faz com que os académicos se sintam, afinal, úteis. Tal aconteceu nestes últimos dias. Nas minhas aulas de Direito do Jogo, eu pergunto aos alunos o que sucederia se um menor ou um trabalhador da Administração Pública entrassem num casino, jogassem em slot machines e ganhassem um grande, «gordo» jackpot.

Conforme foi amplamente noticiado, isso ocorreu em Macau com uma pessoa de 16 anos que ganhou 740 000 dólares de Hong Kong no casino Sands. A reacção de todas as pessoas com quem eu falei foi a de que o casino deveria pagar o jackpot ao menor ou à sua família. A Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos, segundo foi noticiado, pronunciou-se no mesmo sentido, embora eu desconheça a justificação. O Sr. Coutinho, em entrevista à TDM, afirmou que, se o casino não pagasse, estaríamos perante uma «fraude». Parece haver uma onda de simpatia pela pobre jogadora e de antipatia pelo rico casino.

Eu permito-me divergir. A minha interpretação da lei é a de que aos menores e aos trabalhadores da Administração Pública não deverão ser pagos quaisquer jackpots que tenham ganho em contravenção às disposições legais que claramente estatuem que eles não podem entrar em casinos. Se eles não podem entrar, é obviamente porque não podem jogar: isto é uma norma imperativa, um preceito de ordem pública, que tem de ser visto como tendo implicações no domínio do Direito dos Contratos, por razões de política pública (public policy). A lei procura prevenir o surgimento do problema do jogo em pessoas de tenra idade, bem como em trabalhadores da Administração Pública de quaisquer idades que sejam viciados no jogo de casino e, logo, mais susceptíveis de corrupção. Trata-se de uma mera questão de interpretação teleológica da lei.

Com a decisão que foi tomada, de pagar o jackpot, pense-se na mensagem que assim foi veiculada: os menores e os trabalhadores da Administração Pública vão agora crer que a única coisa que precisarão de fazer é enganarem o porteiro, fingindo ser mais velhos (v.g., usando maquilhagem e roupa adequadas) ou entrarem através de uma porta traseira. Logo que estejam lá dentro, estará tudo bem, e poderão jogar à vontade. Isto é, evidentemente, uma mensagem errada. A mensagem correcta é a de que quem é menor ou trabalhador da Administração Pública não pode jogar e que, se jogar, não receberá quaisquer ganhos. Se essa pessoa realmente quiser jogar, então que espere até completar 18 anos de idade ou saia da função pública. Parece-me óbvio.»

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Também em sentido contrário se pronuncia o Dr. Gonçalo Cabral.

Em sua opinião a solução adequada é mais simples e reduz-se ao seguinte:

a) A norma que proíbe o acesso de menores a casinos tem como único objectivo proibir os menores de jogarem;

b) Estas proibições fazem parte da ordem pública da RAEM;

c) Consequentemente o contrato de jogo em casino, quando o jogador é menor, é nulo nos termos do artigo 273.º, n.º 2, do Código Civil.

23/03/2007

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Fortuna sem azar, sim

Quanto a nós, que saudamos cordialmente os autores destes dois textos, continuamos a crer que o contrato de jogo que a menor celebrou com a empresa que gere o casino não é nulo, mas meramente anulável, e entendemos igualmente que, mesmo na hipótese de ele ser nulo, a nulidade não seria invocável pela empresa.

Continuamos a crer que o contrato é meramente anulável, e não nulo, pelos motivos que já expusemos anteriormente. A invocação do n.º 2 do artigo 273.º do Código Civil não nos leva a mudar de opinião, porquanto esta norma se refere a um vício atinente ao objecto do negócio jurídico, e não aos seus sujeitos. Com efeito, e embora ela não mencione especificamente o «objecto» – quiçá por tal menção já constar do número precedente –, essa norma insere-se num artigo que tem por epígrafe «Requisitos do objecto negocial». Julgamos, pois, que este preceito só fulmina com a sanção de nulidade os negócios jurídicos ofensivos da ordem pública quando tal ofensa resulte do seu objecto, e não de aspectos ligados aos seus sujeitos. Justificar-se-á aplicar analogicamente este preceito aos casos em que o vício se relacione com os sujeitos? Eis uma questão a ponderar, mas, de momento, não estamos convencidos de que devamos enveredar por essa via.

Por outro lado, consideramos que, mesmo que por hipótese a violação da proibição legal de os menores entrarem em casinos e aí jogarem acarretasse a nulidade do contrato de jogo, tal nulidade não poderia, no caso concreto em questão, ser invocada pela empresa que gere o casino. E porquê?

É certo que, em regra, a nulidade é invocável por qualquer interessado (artigo 279.º do Código Civil). E, no caso em questão, a empresa gestora do casino é obviamente a principal interessada na declaração de nulidade do contrato.

Contudo, se entendermos que a empresa teve culpa na referida infracção, ou seja, que ela culposamente (já veremos como) deixou a menor entrar no casino e jogar, então, ao prevalecer-se dessa infracção para com fundamento nela se furtar ao pagamento da sua dívida, estará a violar o princípio da boa fé. Mais exactamente, estará a incorrer num venire contra factum proprium, por se ter primeiramente comportado como se a menor pudesse entrar no casino e jogar, vindo depois a adoptar um comportamento oposto relativamente à mesma situação concreta; concomitantemente, estará a incorrer num tu quoque, por ter contribuído culposamente para a ilegalidade que inquina o contrato, vindo agora a invocar essa mesma ilegalidade em seu benefício.

Ora, o exercício de um direito em termos que excedam os limites impostos pela boa fé constitui, segundo o artigo 326.º do Código Civil, um abuso do direito, sendo havido pelo mesmo preceito como «ilegítimo». Portanto, no caso que estamos a analisar, se a empresa gestora do casino exercesse o seu direito de invocar a nulidade do contrato nas circunstâncias que acabámos de descrever, estaria a exercê-lo de modo abusivo e, logo, ilegítimo.

Quando é que poderemos considerar que uma empresa gestora de um casino tem culpa neste tipo de infracção?

A culpa, como se sabe, reveste duas modalidades: dolo e negligência.

Assim sendo, a empresa terá culpa nos seguintes casos:

– quando intencionalmente deixa um menor entrar no casino e jogar, mesmo sabendo que ele é menor, havendo, então, dolo;

– quando, por incumprimento dos deveres de cuidado a que está juridicamente adstrita, permite que um menor entre no casino e jogue, havendo, então, negligência.

Ora, será que, no caso concreto que motivou a presente discussão, a empresa gestora do casino cumpriu os deveres de cuidado a que estava juridicamente adstrita?

Carlos Veiga e António Katchi, em co-autoria

26/03/2007

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Fortuna com azar, sim

A disposição do CC de onde resulta a nulidade do contrato em causa é o artigo 287.º do Código Civil, que dispõe: «Os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo são nulos, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei.»

Este preceito deve ser conjugado com a disposição legal de carácter imperativo da lei do jogo que proíbe os menores de entrar em casinos e, por maioria de razão, de celebrar contratos de jogo e aposta em casino (se não podem entrar é obviamente porque não podem jogar). De ambos os preceitos resulta com inexcedível clareza que o contrato é nulo. O mesmo se dirá de um funcionário público que ganhe um jackpot, aliás.

Por outro lado, não se pode dizer que o casino estaria impedido de invocar a nulidade, pelo facto de ter deixado entrar a menor (uma de entre as 50000 pessoas que foram ao casino no dia em causa), pois tal interpretação assenta numa lógica meramente privatista e conflitua com a norma imperativa em causa: os menores não podem jogar (e ganhar ou perder), ponto final, e não se pode vir através de esquemas privatísticos subverter normas de direito público. Haverá uma infracção administrativa por parte do casino, mas destituída de efeitos civis.

De resto, e admitindo que haveria negligência por parte do casino no controle das entradas, é evidente que há dolo por parte do menor: o menor não só não está inocente, como sabe perfeitamente que não pode entrar e jogar, e que o fez em violação da lei. Este tipo de «chico-espertismo» não pode ser encorajado com um regime de mera anulabilidade, que estimularia os menores a tentarem entrar em casinos por todas as formas possíveis e imaginárias.

Pelo exposto, sou também da opinião de que a lei não precisa de ser alterada neste ponto: precisa é de ser bem interpretada.

Em geral, creio que a minha discordância com os vossos pontos de vista reside em vocês se focarem demasiado em aspectos de direito privado, sem retirarem das normas de direito público todas as suas consequências. O problema tem de ser visto sobretudo da óptica do direito administrativo, que exprime valores imperativos, tais como o de evitar que os menores «derretam» todo o seu dinheiro em casinos, o que é de bom senso.

Já explanei estes argumentos em artigo publicado no «Macau Closer» de Março, disponível na minha página.

Jorge A. F. Godinho

31/03/2007

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Fortuna sem azar, sim, sim

Nós discordamos da aplicação do artigo 287.º do Código Civil a este caso, pois entendemos que ela é precludida pelo disposto no artigo 114.º do mesmo diploma.

O artigo 287.º estabelece uma regra geral, ressalvando expressamente os «casos em que outra solução resulte da lei». Ora, se é certo que a legislação reguladora dos jogos de fortuna ou azar não contém nenhuma regra especial para os contratos de jogo celebrados por menores – abrindo aparentemente espaço para a aplicação da dita regra geral –, o facto é que o próprio Código Civil, no mencionado artigo 114.º, estabelece um regime particular para os negócios jurídicos celebrados pelos menores. Este regime possui, por um lado, um carácter geral dentro do referido âmbito – os negócios jurídicos celebrados pelos menores – e, por outro, um carácter especial dentro do universo dos negócios jurídicos. Ele representa, por conseguinte, um regime especial em relação ao artigo 287.º.

Assim sendo, consideramos que a menoridade do jogador implica a anulabilidade do contrato de jogo, salvo se outra solução decorrer de uma norma ainda mais especial ou de uma norma excepcional – normas que, conforme assinalámos há pouco, cremos inexistirem na legislação actual.

Talvez se pudesse objectar a este entendimento, alegando que o artigo 114.º tem em vista a menoridade enquanto circunstância geradora de mera incapacidade de exercício, nos termos do artigo 112.º, e não de incapacidade de gozo, como sucede no caso em apreço. Repare-se, pois,  neste pormenor: com respeito ao contrato de jogo, a incapacidade dos menores não é apenas de exercício, mas também de gozo, uma vez que eles não podem nunca ser partes num tal contrato. Se a sua incapacidade fosse apenas de exercício, eles poderiam ser partes nesse contrato, desde que este tivesse sido celebrado em seu nome pelos respectivos representantes legais.

Ora, poder-se-ia considerar que, quando a menoridade implicasse incapacidade de gozo, o vício do contrato seria mais grave e este mereceria, por isso, uma sanção jurídica mais grave, que seria a nulidade (ou, eventualmente, a inexistência jurídica).

Todavia, não vislumbramos semelhante orientação no Código Civil de Macau.

Um dos domínios em que está enraizada a incapacidade de gozo dos menores – ainda que, neste caso, apenas até aos 16 anos de idade, exclusive – é o casamento. Uma idade inferior a 16 anos constitui um impedimento matrimonial dirimente absoluto, «obstando ao casamento» da pessoa a quem respeita (artigo 1479.º, proémio e alínea a)). Isto significa que uma pessoa com menos de 16 anos não pode contrair casamento, mesmo que os seus representantes legais lhe dêem autorização ou se disponham a agir em sua representação.

Esta proibição exprime uma posição moral e política com longa tradição histórica e hoje quase universalmente aceite: aquela segundo a qual o casamento deve ser uma opção tomada livremente por pessoas com suficiente maturidade física e psíquica, devendo, portanto, ser banido o casamento de crianças. Dificilmente se poderia, pois, deixar de inscrever a referida proibição na ordem pública de Macau.

Não obstante, a sanção que o Código Civil comina para os contratos de casamento celebrados por menores de 16 anos não é, nem a nulidade (sanção, aliás, omissa no regime jurídico do casamento definido no Código Civil), nem a inexistência jurídica (estabelecida, por exemplo, no artigo 1501.º, e), para os casamentos celebrados por pessoas do mesmo sexo, ainda que maiores). A sanção que ele impõe é, muito simplesmente, a anulabilidade (artigo 1504.º, a), conjugado com o artigo 1479.º, a)).

Na análise do caso em discussão, nós não estamos a ignorar o Direito Administrativo e as suas possíveis implicações no domínio dos contratos. Mas, estando a resolver uma questão de Direito Civil – o grau de invalidade de um contrato de jogo – para a qual não encontramos resposta na legislação especial aplicável, temos naturalmente que recorrer às normas e princípios do Código Civil. É o mesmo caminho, aliás, que foi trilhado pelos nossos interlocutores. Se, ao invés, nos estivéssemos a pronunciar sobre uma questão de Direito Administrativo – por exemplo, a responsabilidade emergente da infracção administrativa que foi cometida no mesmo caso –, aí teríamos de nos apoiar sobretudo nas normas e princípios de Direito Administrativo. Sem nunca esquecermos, claro está, a unidade da ordem jurídica, que também não olvidámos na análise da primeira questão.

Apenas como informação complementar, indirectamente relacionada com o caso, registe-se a notícia, jornal «Ponto Final» de 9/04/07, do jovem de 17 anos, contratado por uma estação de televisão de Hong Kong, que entrou em vários casinos do Território sem que lhe fosse exigida identificação. «O jovem de 17 anos fez dez tentativas para entrar nos vários estabelecimentos de jogo, tendo sido bem sucedido em cinco delas, sem que tivesse sido alvo de controlo por parte da segurança à porta. No interior dos casinos, não foi pedido ao jovem para se identificar».

Carlos Veiga e António Katchi, em co-autoria

26/04/2007

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