Direito de manifestação

Acórdão do TUI: manifestação de opiniões dos cidadãos sobre o Referendo Civil 2014 sobre a Eleição do Chefe do Executivo de Macau

Processo n.º 100/2014

Recurso relativo ao direito de reunião e manifestação

Recorrente: Chao Teng Hei, presidente do conselho executivo da Associação “Open Macau Society”

Recorrido: Presidente do Conselho de Administração do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais

Data da sessão: 18 de Julho de 2014

Votação: Com declaração de voto

Juízes: Song Man Lei, Lai Kin Hong e Sam Keng Tan

Observacões: Acórdão relatado pelo Exm.º Primeiro Adjunto Dr. Lai Kin Hong, nos termos do n.º 4 do art.º 627.º do Código de Processo Civil.

Resultado: Acordam em negar provimento ao recurso interposto pela recorrente Associação “Open Macau Society”.

(Tradução)

ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO
ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU

I. Preâmbulo

CHAO TENG HEI, na qualidade do Presidente do Conselho Executivo da Associação “Open Macau Society”, vem, nos termos do art.º 12.º da Lei n.º 2/93/M, recorrer para este Tribunal de Última Instância, da decisão proferida pelo Presidente do Conselho de Administração do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais, que não permitiu a realização da reunião de “Iniciativa de manifestação de opiniões dos cidadãos sobre o Referendo Civil 2014 sobre a Eleição do Chefe do Executivo de Macau”, solicitando a anulação da decisão recorrida.

Findo a distribuição legal e os procedimentos de preparação antes do julgamento, e tendo corrido vistos pelos dois Juízes-Adjuntos, veio a Relatora apresentar o seguinte projecto de acórdão para efeitos de votação na conferência:

1. Relatório

CHAO TENG HEI, Presidente do Conselho Executivo da Associação “Open Macau Society”, vem interpor recurso ao Tribunal de Última Instância, nos termos do art.º 12.º da Lei n.º 2/93/M, da decisão proferida em 11 de Agosto de 2014 pelo Presidente do Conselho de Administração do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais, que não permitiu a realização da actividade de “Referendo Civil 2014 sobre a Eleição do Chefe do Executivo de Macau” datada em 24 de Agosto de 2014 nas áreas públicas.

Alega o recorrente que as actividades pretendidas pela Associação “Open Macau Society” são reuniões, e a decisão recorrida violou o princípio da igualdade.

Devidamente citada, respondeu a entidade recorrida, entendendo que o Tribunal de Última Instância não tem competência para julgar o presente processo, alegando que a decisão impugnada se compagina com a legislação vigente e cláusulas de ordem pública geral também prevalecentes, não padecendo por isso de quaisquer vícios.

2. Factos provados

Conforme os elementos constantes dos autos, são considerados provados os seguintes factos:

– A Associação “Open Macau Society” avisou previamente por escrito, em 4 de Agosto de 2014, o Presidente do Conselho de Administração do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais de que se realizaria reunião no dia 24 de Agosto entre as 11H00 até às 21H00, nas áreas públicas para peões da Rua

Um do Bairro Iao Hon, da Rua de Martinho Montenegro, da Rua do Campo, da Rua de S. Lourenço, da Rua de Coimbra (ao lado de Jardim Flower City), respectivamente, tendo como tema “Iniciativa de manifestação de opiniões dos cidadãos sobre o ‘Referendo Civil 2014 sobre a Eleição do Chefe do Executivo de Macau’”.

– A Associação “Open Macau Society” apresentou, no aviso prévio, o teor da actividade que é “pela convocação na hora e no local escolhido e abaixo indicado, são reunidos os cidadãos que têm o objectivo comum de revelar os seus pontos de vista sobre a eleição do Chefe do Executivo, para que, por meio do referendo simulado (votação) e com respeito equitativo às opiniões dos cidadãos, se forme uma opinião colectiva.

– Por ofício de 11 de Agosto, o Presidente do Conselho de Administração do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais notificou a associação promotora da decisão de não permitir a realização das actividades acima referidas nas áreas publica.

– A notificação do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais é do seguinte teor:

1. Entende este Instituto que, tal como referido anteriormente no acórdão do Tribunal de Última Instância do processo n.º 95/2014, o “Referendo Civil” é uma sondagem sobre opiniões dos cidadãos, uma iniciativa através da qual se manifestam as opiniões dos cidadãos, sem efeitos legais. Considerando a forma concreta da realização da respectiva actividade, consistente na colocação de meses de voto do “Referendo” nas áreas públicas, permitindo os cidadãos a participarem na votação simulada, entendemos que o mesmo serve apenas para chamar atenção das pessoas para participar na sondagem a realizar sobre a eleição do Chefe do Executivo. Nestes termos, a Associação ao efectuar o aviso prévio sobre a realização da actividade de reunião, ao abrigo da Lei n.º 2/93/M, para realizar a sondagem sobre opiniões dos cidadãos, incorre, evidentemente, numa errada interpretação sobre a concepção de “reunião” regulada pela Lei n.º 2/93/M.

2. Caso V. Ex.ª insista em considerar o “Referendo Civil 2014 sobre a Eleição do Chefe do Executivo de Macau” como reunião, o presente Instituto, por sua vez, entende que o Referendo dos cidadãos (simplesmente designado por “Referendo”) é um regime político vedado pela Constituição ou Lei constitucional, sendo previstos expressamente os assuntos sobre os quais se pode realizar “Referendo”, os processos em função dos quais se propõe e se aprova o assunto de “Referendo”, o procedimento concreto e o sistema de administração de referendo e o critério de confirmação do resultado de referendo. A Constituição do nosso país e a lei constitucional Lei Básica não estabelecem o instituto de referendo, e a R.A.E.M., subordinada directamente ao Governo Popular Central, não tem o poder de estabelecer este instituto. O alegado “Referendo”, tanto governamental como civil, é considerado um desafio e destruição à Constituição da R.P.C. e à Lei Básica, sendo completamente incompatível com o estatuto jurídico da R.A.E.M. Pelo que, nos termos do art.º 2.º e art.º 6.º da Lei n.º 2/93/M, este Instituto não permite a realização da reunião do “Referendo Civil 2014 sobre a Eleição do Chefe do Executivo de Macau” nas áreas públicas.

3. Pelo exposto, entende este Instituto que, segundo o aviso prévio, a actividade que V. Ex.ª pretende realizar nas áreas públicas não é “reunião” prevista na Lei n.º 2/93/M. Assim sendo, quanto à realização por V. Ex.ª das respectivas actividades nos supracitados cinco locais e de ocupação eventual de áreas públicas por causa disso, solicita-se que seja submetido o respectivo requerimento para a sua autorização, segundo as formalidades administrativas em geral.

3. Direito

O recorrente entende que as actividades pretendidas pela Associação “Open Macau Society” “preenchem a definição de reunião invocada pelo Tribunal de Última Instância na decisão proferida no processo nº 95/2014”, que “o funcionamento das mesas de voto de referendo civil configura essencialmente uma reunião” e que o recorrido violou o princípio da igualdade, pelo que recorreu para o Tribunal de Última Instância nos termos do artigo 12º da Lei nº 2/93/M.

Em primeiro lugar, há que apurar se o “Referendo Civil 2014 sobre a Eleição do Chefe do Executivo de Macau”, actividades pretendidas pela Associação “Open Macau Society”, têm, ou não, efectivamente a natureza de reunião, cujo direito bem como o exercício deste direito são regulados na Lei n.º 2/93/M. E daí se decide se o Tribunal de Última Instância tem, ou não, a competência, pois a intervenção deste Tribunal nos termos do art.º 12.º da Lei n.º 2/93/M pressupõe a não permissão ou restrição da realização de reunião ou manifestação.

É consabido que as competências do Tribunal de Última Instância são consagradas na lei.

Para além das competências expressamente previstas nas al.s 1) a 15) do n.º 2 do art.º 44.º da Lei de Bases da Organização Judiciária, compete ainda ao Tribunal de Última Instância “exercer quaisquer outras competências conferidas por lei”.

Ora, é consabido que o Tribunal de Última Instância, sendo o órgão supremo da organização judiciária da RAEM, funciona normalmente como tribunal de recurso, julgando as causas em recurso correspondente a segundo grau ou terceiro grau de jurisdição. E são raros os casos em que a lei prevê a intervenção imediata deste Tribunal, que decide em primeira, e também em última, instância.

Tal intervenção imediata tem que resultar expressamente das normas legais, tais como a al. 10) do n.º 2 do art.º 44.º da Lei de Bases da Organização Judiciária (exercer jurisdição em matéria de habeas corpus), os art.ºs 36.º a 38.º e 138.º da Lei n.º 3/2001 (Regime Eleitoral da Assembleia Legislativa da RAEM), os art.ºs 97.º e 101.º da Lei Eleitoral para o Chefe do Executivo, bem como o art.º 12.º da Lei n.º 2/93/M.

E nos termos do n.º 1 do art.º 12.º da Lei n.º 2/93/M, “das decisões das autoridades que não permitam ou restrinjam a realização de reunião ou manifestação, cabe recurso para o Tribunal de Última Instância, a interpor por qualquer dos promotores no prazo de 8 dias contados da data do conhecimento da decisão impugnada”.

A intervenção imediata do Tribunal de Última Instância justifica-se com o facto de estar em causa o exercício dos direitos fundamentais consagrados na Lei Básica da RAEM, direito de reunião e de manifestação.

In casu, da resposta a dar à questão de saber se as actividades de “Referendo Civil 2014 sobre a Eleição do Chefe do Executivo de Macau” pretendidas pela Associação “Open Macau Society” têm a natureza de “reunião” depende se o Tribunal de Última Instância tem intervenção imediata nos termos do n.º 1 do art.º 12.º da Lei n.º 2/93/M.

Nos avisos prévios dirigidos ao Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais, a associação promotora qualificou as actividades como “reunião”; a entidade recorrida, entretanto, entende que as respectivas actividades não têm a natureza de reunião por se tratar apenas duma sondagem sobre opiniões dos cidadãos, cuja efectiva forma de realização é a colocação, em lugares públicos, das mesas de voto do “referendo” para que os cidadãos procedam à votação simulada.

Como se sabe, o direito de reunião e de manifestação é um direito fundamental consagrado no artigo 27.º da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau para os residentes de Macau, que se encontra também garantido na Lei n.º 2/93/M, cujo 1º artigo prevê expressamente que todos os residentes de Macau têm o direito de se reunir, pacificamente e sem armas, em lugares públicos, abertos ao público ou particulares, sem necessidade de qualquer autorização e gozam ainda do direito de manifestação.

No que diz respeito à questão em causa, o legislador não define juridicamente a reunião.

No Processo n.º 95/2014 do Tribunal de Última Instância, citámos as definições de reunião dadas por académicos, como a seguir exposta:

«Entende-se que “em termos gerais, podemos dizer que a reunião (para efeitos da liberdade de reunião) consiste na concentração de pessoas num determinado local, ligadas por um fim comum de troca de ideias, debate e formação colectiva de opinião. Por outras palavras, reunião é um ajuntamento (geralmente intencional e organizado), sem carácter permanente, de pessoas que ouvem discursos e/ou debatem ideias, com vista à defesa de ideias ou de outros interesses comuns e à formação de opiniões colectivas”. E “a reunião faz-se para expor e discutir ideias”, sendo certo que, para se poder falar de reunião, o fim comum terá de ser considerado e o fim (elemento teleológico) da reunião está intimamente ligado ao carácter instrumental que caracteriza esta liberdade.[1]

Por outro lado, “para haver uma reunião em sentido constitucional não basta que algumas pessoas se encontrem juntas. A reunião exige, desde logo, consciência e vontade colectiva de reunião, pelo que se distingue do simples e fortuito encontro (na rua, no cinema, numa exposição, etc.); por outro lado, a reunião supõe uma ligação intrínseca, um laço comum entre os participantes, pelo que se distingue do simples ajuntamento ou concentração ocasionais (v.g., afluxo de pessoas por motivo de um acidente, de numa alteração na via pública, etc.); finalmente, a reunião supõe um escopo autónomo e próprio, pelo que se distingue do simples trabalho em grupo ou da actuação em conjunto para realizar outro objectivo (grupo excursionista, etc.); finalmente, a reunião supõe a sua duração temporária sem permanência institucional, o que se distingue de associação”[2

Em resumo, entende-se por reunião a actividade que consiste na concentração de pessoas para troca de ideias, exposição e debate de opinião e expressão de vontade. Nem toda a concentração de pessoas se pode designar por reunião, pois depende ainda da forma e do conteúdo da sua realização.

In casu, conforme o conteúdo do aviso prévio escrito apresentado pela Associação “Open Macau Society”, a actividade pretendida pela aludida associação tem como tema “Iniciativa de manifestação de opiniões dos cidadãos sobre o ‘Referendo Civil 2014 sobre a Eleição do Chefe do Executivo de Macau’”, cujo teor é “pela convocação…, são reunidos os cidadãos que têm o objectivo comum de revelar os seus pontos de vista sobre a eleição do Chefe do Executivo, para que, por meio do referendo simulado (votação) e com respeito equitativo às opiniões dos cidadãos, se forme uma opinião colectiva”.

A Associação “Open Macau Society” designou a dita actividade por “referendo civil” e qualificou-a como reunião.

Desde logo, é de salientar que, no sistema jurídico vigente em Macau, o legislador não criou o regime jurídico respeitante ao “referendo dos cidadãos” (ou simplesmente designado por “referendo”), nem encontramos qualquer disposição legal correspondente, pelo que o alegado “referendo civil” da Associação “Open Macau Society” não tem base legal nenhuma nem produz qualquer efeito jurídico.

Ademais, do aviso prévio escrito apresentado pela Associação “Open Macau Society” se constata que a actividade pretendida pela referida associação é, formalmente, uma votação simulada que permite que os cidadãos votem simuladamente nas mesas de voto simuladas que sejam colocadas em lugares públicos, cujo conteúdo é recolher as opiniões e sugestões dos cidadãos sobre a eleição do Chefe do Executivo. Assim sendo, o que se consegue, e também efectivamente se pode alcançar, com o “referendo civil” não é mais do que uma sondagem sobre opiniões dos cidadãos que não possui nenhum efeito jurídico.

Por conseguinte, o alegado “referendo civil” é, efectivamente, uma sondagem sobre opiniões dos cidadãos.

Apesar de que a organizadora designa a actividade por “reunião”, a verdade é que, na qualificação jurídica duma determinada questão, tal como sustentado no acórdão do processo n.º 95/2014 deste Tribunal, “o tribunal não está vinculado à qualificação dada por interessados, podendo fazer qualificação diferente, segundo o seu entender.”

Afigura-se-nos que, quer em termos da forma, quer em termos do conteúdo, não é correcta a qualificação de actividade feita pela organizadora.

Como acima indicado, o objectivo de reunião consiste na concentração de pessoas num determinado local, ligadas por um fim comum de troca de ideias, exposição e debate de opiniões e expressão de vontades, mas a actividade em causa visa recolher opiniões através de simulação de votação, o que não corresponde à intenção de troca de ideias, exposição e debate de opiniões, muito menos formação imediata de opinião colectiva.

A Associação “Open Macau Society” realiza a actividade com o fim de expressar a opinião dos cidadãos, mas falando exclusivamente neste aspecto, nem todas as actividades de expressão de opinião dos cidadãos têm a natureza de reunião, o que releva é a forma e o conteúdo da respectiva actividade.

Pelo exposto, afigura-se-nos que a actividade que a Associação “Open Macau Society” pretende realizar – recolhimento e expressão de opinião dos cidadãos através de simulação de votação em mesas de voto a colocar em área pública – não deve ser considerada como “reunião” em sentido técnico-jurídico, cujo direito merece a protecção da lei e a interdição ou restrição do exercício deste direito justifica a intervenção do Tribunal de Última Instância.

Termos em que, é de concluir que o Tribunal de Última Instância não tem competência para conhecer do presente processo, visto que a intervenção do Tribunal de Última Instância nos termos do art.º 12.º da Lei n.º 2/93/M pressupõe a não permissão ou restrição da realização de reunião ou manifestação, o que não é caso dos autos.

4.Decisão

Face ao expendido, acordam em não conhecer do recurso.

Sem custas.

Após a discussão e votação, o supracitado projecto de acórdão não obteve a concordância da maioria, e cabe ao 1º Juiz-Adjunto proferir, de acordo com as opiniões e fundamentos acompanhados por maioria de votos, a seguinte decisão:

II. Fundamentação

De acordo com a ideia fundamental do direito administrativo vigente em Macau, não são totalmente coincidentes os parâmetros para determinar se os actos dos governantes, ou seja a Administração Pública, e dos governados, ou seja os cidadãos, são legais, sendo uma parte coincidentes e a outra parte não.

Os actos, quer da Administração Pública, quer dos cidadãos, podem ser basicamente classificados nas seguintes três situações:

1. Actos secundum legem;

2. Actos praeter legem; e

3. Actos contra legem.

Sendo o governante e sujeito do exercício dos poderes públicos, a Administração Pública pode praticar apenas os actos que a lei lhe permite e atribui poderes para praticar, ou seja os actos secundum legem.

Por outra palavra, todos os actos praticados pela Administração Pública sem autorização ou poderes atribuídos por lei são actos praeter legem, ou actos praticados com violação da lei, isto é, actos contra legem, sendo ambos considerados actos ilegais.

É relativamente maior o âmbito das actividades lícitas para os cidadãos, ou seja governados, porque estes podem praticar todos os actos que não sejam proibidos por lei, e por outra palavra, podem agir de forma secundum legem e praeter legem. A diferença entre um e o outro consiste em que, naquela, o cidadão pratica o acto porque a lei lhe atribui esse direito, e neste, o cidadão pratica o acto sem violar a lei porque o mesmo não é proibido. In casu, as actividades que o recorrente pretende realizar são reunião de ‘Referendo Civil 2014 sobre a Eleição do Chefe do Executivo de Macau”.

Entendemos que trata-se, substancialmente, de actividades de as massas convergirem, no tempo e no lugar específicos, para exprimir, por votação, o seu concordo ou a sua oposição sobre um tema.

Nos termos do art.º 27.º da Lei Básica da RAEM e art.º 1.º da Lei n.º 2/93/M, os residentes de Macau têm o direito de se reunir em lugares públicos.

Porém, quer a Lei Básica e a referida Lei n.º 2/93/M, quer qualquer outra lei vigente, não conferem aos residentes de Macau o direito à realização de referendo (referendum).

Assim, apesar de não constituir acto contra legem, o “referendo” que o recorrente pretende realizar é acto sem efeito jurídico reconhecido por lei e não protegido por lei.

Se a parte de “reunião” das actividades que o recorrente pretende realizar encontra-se no âmbito de actividades de que este tem direito segundo a lei, a parte de “referendo” já não faz parte de tais actividades.

De facto, a realização de reunião é um acto secundum legem, enquanto a realização de “referendo” é um acto praeter legem.

Por isso, a prática do primeiro acto é seu direito mas a prática do segundo acto já não é, só que sendo um cidadão, pode o recorrente praticar actos que não são proibidos por lei, mas certo é que, isso não constitui seu direito.

Quanto à relação jurídica entre os sujeitos activo e passivo, se uma parte goza de um direito, a outra parte tem que assumir as respectivas obrigações.

Desta forma, no caso de se tratar dum direito gozado pelos cidadãos, a Administração Público obriga-se a criar condições para garantir o exercício de tal direito.

Tais como os direitos de reunião e de manifestação previstos pela Lei n.º 2/93/M, tem a Administração Pública certas obrigações de assegurar o exercício desses direitos.

No entanto, se a prática dos actos tem na sua base apenas a inexistência de proibição expressa por lei, não se constitui o exercício de direito, razão pela qual a Administração Pública não se obriga a assegurar ou criar condições para a prática de tais actos.

A Administração Pública não só não tem esta obrigação, como ainda não é permitida por lei para criar as respectivas condições, sob pena de praticar actos praeter legem acima referidos, ou seja actuar fora da lei. Por não ser acto cuja prática se encontra expressamente permitida por lei, constitui-se, de forma suficiente, acto ilegal.

Aplicando este raciocínio jurídico ao caso sub judice, termos que, no caso de os órgãos administrativos permitirem ao recorrente, conforme o aviso prévio deste, realizar em lugares públicos reuniões que tenham o conteúdo de “referendo”, isso significa que os órgãos administrativos reconhecem o seu direito de realização de “referendo”, e que os próprios órgãos administrativos têm a obrigação de, nos termos da Lei n.º 2/93/M, criar condições correspondentes, tais como restringir a utilização, por parte de outras pessoas e em tempo específico, do espaço público que as actividades pretendem ocupar.

Obviamente, por a realização de “referendo” não ser direito do recorrente, os órgãos administrativos não se obrigam nem são permitidas por lei a criar condições para a realização do “referendo” que o recorrente pretende.

Por outra palavra, se a Administração Pública permite a reunião que tenha o conteúdo de “referendo” do aviso prévio, verifica-se acto ilegal por a Administração Público não estar a actuar no espaço permitido por lei, ou seja praeter legem.

Na verdade, todos os actos da Administração Pública têm de ser praticados em obediência ao princípio da legalidade. De acordo com o princípio da legalidade consagrado no n.º 1 do art.º 3.º do Código do Procedimento Administrativo, os órgãos da Administração Pública devem actuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes estejam atribuídos e em conformidade com os fins para que os mesmos poderes lhes forem conferidos.

Desta forma, só quando o “referendo” que o recorrente pretende realizar constituir um direito atribuído aos residentes por lei, é que os órgãos administrativos têm a obrigação de permitir a sua realização, e criar ou assegurar condições para tal. Se o “referendo” não é direito do recorrente, mas a Administração Pública o permite, viola-se, sem dúvida, o princípio da legalidade acima referido.

Permitir o recorrente realizar em lugares públicos a reunião contendo actividades de referendo fará necessariamente com que os órgãos administrativos estejam obrigados a restringir os outros residentes que não participam na reunião em causa de, durante a realização das actividades, utilizar ou passar livremente pelo respectivo lugar, o que equivale, substancialmente, ao reconhecimento do direito do recorrente de realizar o referendo que pretende.

Por outra palavra, obriga-se a restringir o direito dos outros residentes de livre utilização e circulação em espaços públicos, para que pudesse o recorrente realizar o referendo de que não tem direito, mas apenas não proibido por lei.

Porém, tal como acima referido, temos de reiterar que só quando a lei conferir ao recorrente o direito de realizar o referendo, é que pode a Administração Pública impor as referidas restrições aos outros residentes.

Por isso, segundo o princípio da legalidade, não se vislumbra que a Administração Pública tem qualquer fundamento de direito ou legitimidade para restringir, sem poderes lhe conferidos e obrigações lhe impostas por lei, o direito de livre circulação em espaços públicos de umas pessoas, para que outras pessoas pudessem realizar o referendo de que não têm direito, mas apenas não proibido por lei.

Nestes termos, considerando que são indivisíveis as partes de reunião e de referendo nas actividades que o recorrente pretende realizar, é de concluir que a decisão proferida pelo Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais, que não autorizou a realização de reunião com conteúdo de “referendo” em lugares públicos pretendida pela recorrente Associação “Open Macau Society”, não viola a lei.

III. Decisão

Face ao expendido, acordam neste Tribunal de Última Instância em negar provimento ao recurso interposto pela recorrente Associação “Open Macau Society”.

Custas pela recorrente, com a taxa de justiça fixada em 2UC.

Registe e notifique.

RAEM, 18 de Agosto de 2014.

Juízes: Lai Kin Hon – Sam Keng Tan – Song Man Lei (Como relatora primitiva, votei vencido de acordo com o “projecto de acórdão” constante do preâmbulo do presente acórdão.)

Notas

1 António Francisco de Sousa, Direito de Reunião e de Manifestação, 2009, p. 16 e 28.

2 J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, Coimbra Editora, 2007, p. 637

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