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«A atitude isolacionista dos EUA não pode durar muito tempo»

A Dr.ª Paula Escarameia, que leccionou a cadeira de Direito Internacional Público Geral e Regional, no Curso de Direito da Universidade de Macau, no ano lectivo 1990/1991, concedeu, em 2/12/2002, uma entrevista, que transcrevemos, ao jornal Público.

«A concessão de imunidade aos soldados envolvidos em missões de manutenção de paz prejudica a imagem do Tribunal Penal Internacional (TPI), diz a jurista portuguesa que foi a primeira mulher eleita para a Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas.

A entrada em vigor do TPI foi feita num tempo recorde, o que, para Paula Escarameia, demonstra grande vontade política de criar uma jurisdição penal internacional. Em entrevista ao PÚBLICO, a jurista portuguesa faz um balanço dos trabalhos da Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas, para a qual foi eleita no ano passado. Doutorada pela Universidade de Harvard e conselheira jurídica da missão permanente de Portugal na ONU (1995-1998), Paula Escarameia foi a primeira mulher a entrar na comissão, tendo obtido 155 de 178 possíveis votos, o maior número alguma vez recebido por uma candidatura portuguesa na ONU.

P – A concessão de imunidade aos soldados dos EUA envolvidos em missões de manutenção de paz não veio prejudicar a imagem de uma justiça internacional e igual para todos?

R – Veio prejudicar e não devia ter sido aprovada, mas foram tantas as pressões dos EUA sobre o Conselho de Segurança… Os “peacekeepers” não devem estar imunes. Ninguém deve estar imune ao TPI. O que acabou por ficar na resolução 1422 não é definitivo. Durante um ano, os “peacekeepers” estarão imunes, mas, passado esse prazo, o Conselho de Segurança tem que voltar a aprovar essa concessão, que não abrange apenas os americanos, mas qualquer pessoa envolvida nas missões.

P – Apesar de terem conseguido apenas uma concessão temporária, os EUA continuam a bater-se por uma imunidade absoluta. Em que ponto está a questão?

R – Está tudo dependente dos acontecimentos. Se não tivesse havido o 11 de Setembro, certamente que a situação não seria esta. Depende se a Administração Bush decidir fortalecer ou enfraquecer o seu isolacionismo. Espero que o enfraqueça, no sentido de haver maior colaboração dos EUA com os outros Estados e de acabar com a atitude de medo e hostilidade em relação ao TPI, que não existia no tempo da Administração Clinton. A resolução 1422 resolve apenas um pequeno problema dos EUA, que nem sequer é o principal, porque diz respeito a uma minoria, os “peacekeepers”. Os EUA não se opõem à existência do TPI, mas opõem-se a que este julgue os americanos. Actualmente, os EUA tentam concluir acordos bilaterais com vários Estados, no sentido de estes não entregarem cidadãos americanos ao Tribunal.

P – Desde o Tratado de Roma, que negociou o estatuto do TPI em 1998, quais os avanços registados?

R – O facto de o Tratado ter entrado em vigor num tempo absolutamente recorde e de o Tribunal poder começar a funcionar em meados de 2003. Em 1998, mesmo os mais optimistas apontavam para dali a oito, dez anos. Para entrar em vigor era preciso ser ratificado por um número muito elevado de Estados (60). Actualmente já 84 o fizeram.

Foi um triunfo enorme, que mostrou que há uma grande vontade política, o que dá ao TPI uma garantia de resistência.

P – Qual o papel específico da União Europeia (UE) na dinamização do TPI?

R – Foi enorme. A grande força motora a nível de Estados foi a UE. Houve outro grupo, o dos “like-minded” [países que pensavam de modo semelhante sobre o TPI], que foi muito activo nos primeiros tempos, quando ainda não se sabia se haveria ou não Tribunal. Todos os membros da UE estavam nesse grupo, excepto a França. Depois, as organizações não governamentais desempenharam um papel de destaque.

P – E qual o papel de Portugal?

R – Quase não há artigos que não contemplem propostas de Portugal. Por exemplo, foi o primeiro país a propor que o Procurador pudesse, por sua própria iniciativa, intentar uma acção junto do Tribunal, podendo receber queixas de quem quer que seja.

P – A ONU continua a desempenhar eficazmente o seu papel de apaziguadora de conflitos…

R – Foi dada uma relevância enorme à ONU depois da Guerra Fria, sem lhe terem sido dados os meios. A ONU tem um problema financeiro enorme, muito atribuído ao Estado que actualmente desenvolve uma política unilateralista. Actualmente, os EUA só pagam 22 por cento do orçamento da ONU [até há pouco tempo pagavam 25], mas o problema é que não pagam ou pagam tardiamente. O orçamento total da ONU no mundo inteiro é menor do que o da polícia de Nova Iorque…

P -… ou o unilateralismo vai ganhando avanço?

R – Talvez esteja a ser demasiado optimista, mas acho que a atitude isolacionista dos EUA não pode durar muito tempo. Embora ainda consigam alguns aliados, não vão conseguir muitos mais a longo prazo. Não estou a ver como é que escalando os antagonismos se pode resolver alguma coisa. O mundo acredita que as acções da ONU não são totalmente politicamente motivadas. Os EUA não são um substituto da ONU. O perigo do terrorismo fez com que ganhassem aliados nesse campo, mas não ganharam noutros, como se viu no caso da invasão ao Iraque. Não têm o apoio do mundo em tudo.

P – O que pensa dos contornos da actual guerra declarada ao terrorismo internacional?

R – Há vários problemas do ponto de vista da regulamentação. Não existe uma definição jurídica, mas apenas várias convenções parciais sobre terrorismo, que o definem sectorialmente. Depois, há a questão da exclusão de certas entidades: é preciso determinar se os movimentos de libertação são terroristas e o que é o terrorismo de Estado. Estes dois pontos estão a dificultar o andamento das negociações.

Por outro lado, há acções de tal modo devastadoras que ninguém pode dizer que não são terroristas. O 11 de Setembro foi, sem dúvida, um acto terrorista. Mas até que ponto isto pode ser transformado noutro conceito? Os EUA consideraram o 11 de Setembro um ataque armado, que dá origem a uma resposta por legítima defesa. Isto é uma inovação, porque a legítima defesa é a resposta a um ataque armado feito por um Estado. De certo modo, percebo a posição dos EUA quando dizem que as leis existentes estão completamente desadequadas ao tempo em que vivemos. Temos leis preparadas para um mundo de interacção entre Estados, não para um mundo onde existem Al-Qaedas…

Por Sofia Branco: www.publico.pt – 2/12/2002

Dados

A Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas nasceu em 1947.

É composta por 34 personalidades de reconhecido mérito, nomeadas pelos respectivos Estados e eleitas pelos membros da Assembleia Geral da ONU.

Reúne-se três meses por ano, em Genebra (Suíça).

Os mandatos duram 5 anos.

Em 7 de Novembro de 2001 entraram as primeiras mulheres. Actualmente tem duas, a portuguesa Paula Escarameia e a chinesa Xue Hanqin.

O objectivo da Comissão é codificar e desenvolver o Direito Internacional».

03/12/2002

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