Por Paula Escarameia*
Se acaso a questão de Timor-Leste tem sido frequentes vezes abordada pela imprensa portuguesa (que, lamentavelmente, se encontra relativamente isolada neste esforço de informação sobre o problema) sob os pontos de vista político e humanitário, o mesmo não se tem passado quanto aos seus aspectos jurídicos, que raras vezes têm vindo a lume.
Agora que Portugal intentou contra a Austrália uma acção perante o Tribunal Internacional de Justiça, relativa ao acordo, por esta concluído com a Indonésia, para exploração de petróleo no mar de Timor, parece relevante sublinhar sinteticamente alguns dos princípios e normas de Direito Internacional que têm vindo a ser invocados pelas partes envolvidas na questão. Parece-me, sobretudo, interessante, apresentar um pequeno resumo dos argumentos que a Indonésia invocou perante a Assembleia Geral das Nações Unidas, mormente no seu Quarto Comité (para Assuntos de Descolonização), perante o Conselho de Segurança e em conversações e correspondência diplomáticas. Como esta invocação não foi nunca feita perante um órgão judicial (devido à não aceitação da jurisdição do Tribunal Internacional de Justiça pela Indonésia e à rejeição desta em submeter a questão a qualquer outro tribunal internacional, designadamente a um tribunal arbitral, escolhido pelas partes), o caso nunca foi analisado pormenorizadamente nos seus aspectos legais.
Contudo, a Indonésia foi fortalecendo a sua posição na comunidade internacional, conseguindo sucessivamente mais votos a seu favor na série de resoluções aprovadas pelas Nações Unidas e tendo sido bem sucedida na tarefa fundamental de fazer o mundo esquecer este problema. O porquê desta evolução será, pois, a razão de ser deste artigo, que começará com um resumo breve dos principais factos do problema para se poder debruçar depois sobre a questão jurídica propriamente dita. O espaço limitado, inerente a uma publicação como esta, forçar-me-á, evidentemente, a uma selecção muito grande de acontecimentos e de alegações jurídicas, o que, inevitavelmente, tornará a exposição, não só necessariamente incompleta, como também, aos olhos de alguns leitores, parcial. A única garantia que posso, por isso, oferecer, é a de que me esforcei para que tal não sucedesse, tendo recolhido os dados de publicações internacionais (sempre que possível, das Nações Unidas) ou de livros generalizadamente aceites e tendo aferido esta informação segundo várias fontes diferentes.
Em 1974, aquando do 25 de Abril em Portugal, Timor-Leste era um território de cerca de 600.000 habitantes, dos quais 95% eram analfabetos e menos de dez possuíam educação de nível superior, sendo a taxa de mortalidade no primeiro ano de vida superior a 50%.
Apesar das grandes riquezas dos cerca de 19.000 km2 deste território montanhoso, nas quais se podem incluir vários minérios (sobretudo cobre, ouro e magnésio), petróleo, madeiras preciosas e plantações de café (constituindo este a principal exportação), o estado de desenvolvimento era muito diminuto, sendo a balança de pagamentos sistematicamente deficitária, e o produto nacional bruto per capita cerca de metade do Laos, o estado mais pobre da região. A situação não é de estranhar, já que, para referir um exemplo, só em 1960 é que a electricidade foi, pela primeira vez, instalada na capital, Dili.
A estrutura social era hierarquizada e tribal, sendo os chefes das tribos os régulos ou liurais. A população era maioritariamente animista contando-se, contudo, cerca de 200.000 católicos e existindo, também, sectores minoritários da população com outras religiões, como era o caso dos chineses, que constituíam o grosso da classe comercial do território.
Timor foi sempre, desde que Fernando Serrão acostou, pela primeira vez, às suas praias, entre 1512 e 1520, o território mais esquecido pela metrópole. Na realidade, os primeiros navegadores usaram-no apenas como entreposto comercial (sendo este comércio, fundamentalmente, o da madeira de sândalo, então abundante na ilha), tendo sido os frades dominicanos os primeiros europeus a estabelecerem-se permanentemente no território, nos finais do século XVI. A administração oficial portuguesa foi apenas instituída em 1702, tendo aí permanecido relativamente pacificamente até 1910, ano em que D. Boaventura, um liurai, encabeçou uma revolta contra o estado português e instalou um governo próprio no interior montanhoso que se manteve por 18 meses, até que foi derrotado pelas tropas portuguesas.
O acontecimento seguinte de algum relevo é a 2.ª Guerra Mundial, na qual Timor se viu envolvido devido às tropas australianas, que aí se instalaram e foram atacadas pelas forças japonesas. Calcula-se que, em virtude da guerra, cerca de 2.000 timorenses tenham perecido. Parece não ter havido tentativa nenhuma de afastamento da metrópole no pós guerra, tendo a soberania de Portugal sido restaurada pacificamente. Esta tendência, contudo, vai alterar-se nos meses que se seguiram ao 25 de Abril em Portugal.
No seguimento da revolução na metrópole, cuja legitimidade se baseou, largamente, na questão colonial, a Lei Constitucional n.º 7, de Julho de 1974, veio declarar a intenção de descolonização de todas as colónias portuguesas, nelas tendo sido incluído Timor, oficialmente categorizada como província ultramarina pelo anterior regime a partir da reforma de 195l.
Assim, começam a formar-se os primeiros partidos políticos em Timor-Leste, dos quais os principais eram a FRETILIN (que nesta altura ainda usava a sigla ASDT), a UDT e a APODETI. Se bem que os respectivos programas políticos tivessem variado com o decurso do tempo, parece possível realçar, em linhas gerais, o aspecto que agora nos interessa mais, isto é, o que estes programas previam quanto ao destino político-internacional de Timor-Leste. A FRETILIN defendia a independência do território o mais rapidamente possível, enquanto a UDT propunha um período de transição, relativamente longo, após o qual haveria uma consulta à população sobre o destino do território, e a APODETI, um partido cuja representação era muito mais diminuta que a dos dois anteriores, defendia a integração na Indonésia.
Em Janeiro de 1975, a FRETILIN e a UDT acordaram numa coligação e conjuntamente solicitaram negociações com Portugal para preparação da futura independência. Entretanto, tornam-se constantes os apelos na imprensa e rádio indonésias para integração de Timor neste estado. Aliás começam a surgir conflitos na fronteira com o Timor Ocidental, tendo sido proibida a entrada neste território indonésio a qualquer jornalista durante todo o ano de 1975.
Em parte acompanhando a radicalização das posições políticas em Portugal, a coligação FRETILIN/UDT termina alguns meses depois da sua constituição e, quando em Junho de 1975, Portugal promove uma conferência aqui em Macau para acordar o futuro do território, a FRETILIN recusa-se a participar, invocando não ser a independência negociável e não aceitar sentar-se à mesa de negociações com a APODETI. O acordo que acabou por resultar desta conferência estabelecia um governo provisório conjunto (2 representantes de Portugal e 3 representantes dos timorenses) que funcionaria até 1978, ano em que se realizariam eleições com vista à determinação do estatuto jurídico-internacional de Timor-Leste. Os factos mostram claramente que este acordo nunca passou de letra morta.
Entretanto, em Junho de 1975, realizam-se eleições autárquicas, que dão uma vitória esmagadora de 90% dos votos à FRETILIN que, embora sendo, indiscutivelmente, um partido com grande implantação no território, tinha enviado “brigadas revolucionárias” por todo o interior para “esclarecer” a população quanto às opções políticas a tomar.
A UDT radicaliza, igualmente as suas posições e, em 11 de Agosto, depois dum golpe de estado, assume o poder e apresenta a Portugal um ultimatum (rejeitado por este) para concessão de independência a Timor sob a sua égide. A guerra civil, mais ou menos latente desde a quebra da coligação, acaba por eclodir violentamente, tendo o exército português debandado para as fileiras da FRETILIN ou da UDT.
É só então que Portugal internacionaliza o problema através duma carta, datada de 22 de Agosto e dirigida ao Secretário-Geral das Nações Unidas, em que se afirma que a administração portuguesa perdeu por completo o controlo da situação e em que se pede a intervenção duma coligação internacional de forças armadas para restaurar a paz. Uma semana depois, o governador parte para Ataúro (uma pequena ilha ao largo de Dili), alegando temer ser feito refém por qualquer das partes em luta.
O apelo português cai no esquecimento e a guerra civil vem a terminar em Setembro, com a vitória da FRETILIN, contando-se as baixas entre 2.000 a 3.000 pessoas. Em consequência da perseguição conduzida pela FRETILIN, os seus inimigos políticos refugiam-se na parte Ocidental de Timor, onde formam o MAC (Movimento Anti-Comunista), que parece ter pedido a intervenção da Indonésia.
Entretanto, a FRETILIN consegue restaurar a ordem em Timor-Leste, empreendendo, inclusivé, algumas das reformas preconizadas pelo seu programa político que, embora reflectisse influência marxista, se aproximava mais do modelo terceiro-mundista do que da ortodoxia soviética ou maoista.
Com o consolidar da situação, a FRETILIN proclama, em 29 de Novembro, a independência de Timor-Leste, não tendo, no entanto, este estado sido reconhecido por Portugal, Indonésia ou Austrália, embora o fosse por outros 15 estados, em que avultam as antigas colónias portuguesas de África.
Precisamente um dia depois de ter sido um dos estados a subscrever uma proposta de resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas, em que se afirmava o direito de auto-determinação para o povo maubere (o povo de Timor-Leste), a Indonésia ataca Dili, na manhã de 7 de Dezembro de 1975, tendo as suas forças armadas provocado, só nesse dia e nessa cidade, cerca de 2.000 mortos.
Portugal põe imediatamente termo às relações diplomáticas com a Indonésia e, em 8 de Dezembro, as autoridades portuguesas deixam definitivamente Ataúro, rumo a Portugal.
E enquanto as autoridades indonésias preparam a nova assembleia regional, constituída, na sua maioria, por membros da APODETI e alguns da UDT, a FRETILIN refugia-se no interior montanhoso, onde começa a guerrilha que ainda hoje perdura.
A 18 de Dezembro, a bandeira portuguesa é substituída pela da Indonésia e o território é totalmente isolado do exterior, tendo sido permitidas apenas, no período entre Janeiro e Junho de 1976 uma breve visita do representante do Secretário-Geral das Nações Unidas e uma visita de 3 horas de alguns jornalistas. Para mais, estas visitas não foram de modo algum elucidativas (veja-se, no mesmo sentido, o relatório do enviado do Secretário-Geral) até porque, pelo menos até Abril de 1976, a FRETILIN controlava ainda cerca de 80% do território.
Entretanto, a Assembleia Regional, instituída pelas autoridades indonésias, aprova, em 31 de Maio, por unanimidade e após um debate que demorou menos de duas horas, uma petição em que solicitava à Indonésia integração do território neste estado. Na sequência da mesma, em 17 de Julho, o parlamento indonésio aprova a integração de Timor-Leste, que passou, assim, a ser a 27.ª província da Indonésia.
A violência, muitas vezes puramente gratuita das atrocidades cometidas pelos soldados indonésios, foi impressionante e poderá ser parcialmente explicada pela falta de disciplina dum exército que sofreu também muitas baixas e em que os soldados tinham frequentes vezes os salários em atraso; pelo choque de duas culturas com poucos pontos em comum, começando pela língua (Basa indonésio e Tetum timorense) e terminando na religião, sendo provável que a ideia de guerra santa tivesse desempenhado algum papel, já que a Indonésia é maioritariamente muçulmana; pelas ordens do poder político de total destruição da resistência, já que a Indonésia, sendo um arquipélago constituído por mais de 3.000 ilhas onde se falam mais de 300 línguas, adoptou uma organização política altamente centralizada, o que, aliado ao regime de ditadura militar, originou movimentos de guerrilha nas Celebes, nas Molucas do Sul e, principalmente, na parte ocidental da Papua (West Irian); por razões de ideologia política, já que o regime de direita pretendia irradicar da zona o que considerava como um potencial centro de expansão do comunismo; por necessidade de aquisição de novas terras de cultivo, problema que se coloca com alguma seriedade a um país que, como a Indonésia, tem uma população de cerca de 150 milhões de habitantes e possui uma taxa de crescimento de 1 milhão de pessoas por ano; ou por outras eventuais razões.
Olhemos, entretanto, para o que se vai passar nas Nações Unidas, organização esta de que Portugal é membro desde 1955. De referir que, no seguimento de duas importantes resoluções da Assembleia Geral (res.1514(XV) e res.1541(XV)), as Nações Unidas tinham incluído Timor-Leste na lista de territórios considerados colónias e em relação aos quais era necessária a apresentação de relatórios pela potência administrante para que fosse avaliada internacionalmente a intenção da criação de estruturas governativas próprias, em cumprimento da alínea e) do art 73.º da Carta das Nações Unidas. Portugal nunca cumpriu esta obrigação, invocando ser um estado pluricontinental com províncias ultramarinas que não se podiam assimilar a colónias.
É apenas após a invasão da Indonésia, que, a 12 de Dezembro, a Assembleia Geral aprova uma resolução [res. 3485(XXX)], afirmando o direito do povo de Timor à autodeterminação, exigindo que a Indonésia retirasse as suas forças imediatamente do território e reconhecendo Portugal como a potência administrante do mesmo. A resolução foi largamente maioritária, já que foi aprovada por 72 votos afirmativos e apenas 10 contra, sendo as abstenções extremamente elevadas (43), certamente devido ao quase completo desconhecimento da situação pelo mundo exterior. Esta resolução, que, por provir da Assembleia, não tem natureza jurídica obrigatória, foi seguida, no dia 22 desse mês, por uma outra, desta vez do Conselho de Segurança, e como tal, segundo o art. 25.º da Carta, obrigatória: res. 384 (1975). Esta segunda resolução, aprovada por unanimidade, repete quase que textualmente a anterior, apresentando como novidade a missão confiada ao Secretário-Geral de nomear um seu representante para se deslocar a Timor e observar a situação directamente.
Na sequência do disposto, foi nomeado o Director-Geral da representação das Nações Unidas em Genebra, o Sr. Guicciardi, a quem a Indonésia permitiu fazer uma visita de dois dias, em que viu três cidades. No relatório por este apresentado salienta-se a afirmação de que não lhe foi possível ficar ciente da situação, já que não lhe foi dado acesso à maior parte do território (de lembrar que, nesta altura, a FRETILIN controlava mais de 80% deste), podendo apenas visitar as zonas relativamente pacíficas.
A partir deste momento, com o território totalmente fechado ao exterior, Timor vai perdendo cada vez mais apoiantes. Assim, na próxima resolução, aprovada pelo Conselho de Segurança (res. 389/76, de 22 de Abril), já surgem duas abstenções: a do Japão e, mais importante, a dos Estados Unidos. Este país veio mesmo, em Junho desse ano, a reconhecer “de facto” a soberania da Indonésia sobre Timor.
No meio deste silêncio, quase absoluto, a que Timor fora votado, o primeiro relatório com alguma projecção que veio a público foi o de um grupo de padres indonésios a quem foi permitida uma breve visita. Trata-se dum relatório emocional devido ao choque que os seus autores tiveram ao constatar que, desde a invasão da Indonésia, tinham perecido, pelo menos, 100.000 timorenses em virtude das hostilidades. Contudo, e apesar da realização prévia, nesse ano, da Conferência dos Países Não-Alinhados, a posição timorense continuou a perder apoio na Assembleia Geral, onde é aprovada, em 1 de Dezembro, uma outra resolução (res. 31/53), cujo texto é bastante semelhante ao das que a precederam, mas que apenas consegue 68 votos a favor contra já 20 votos negativos e 49 abstenções. A tendência decrescente volta a manifestar-se em 1977, tendo a resolução 32/34 sido aprovada por 67 votos a favor, 26 contra e 47 abstenções. A isto junta-se o facto de que se começa a esboçar, nesta resolução, a tendência para já não ter como foco principal a questão da autodeterminação de Timor-Leste mas sim o problema humanitário no território, o que, seria de supor, congregaria apoio internacional mais generalizado.
Na realidade, a situação em Timor, no aspecto humanitário, agudiza-se extremamente, havendo notícias de um número imenso de baixas em combate e de fome generalizada, sendo esta sobretudo devida à prática utilizada pela Indonésia de deslocar as populações das suas aldeias para “campos de acolhimento”, evitando, assim, o suporte material dado pelas populações à guerrilha.
Apesar disto, o apoio na Assembleia Geral continua a decrescer, e embora ainda seja suficiente para a aprovação das sucessivas resoluções, a margem de votos vai-se estreitando progressivamente (vide res. n.os 33/39, de Dezembro de 1978, 34/40, de Novembro de 1979, 35/27, de Novembro de 1980, 36/50, de Novembro de 1981 e 37/30, de Novembro de 1982).
Concomitantemente, a posição da Indonésia consolidava-se, tendo a Austrália, em 1978, reconhecido “de facto” a integração de Timor na Indonésia, para, no ano seguinte, a vir a reconhecer “de jure”. O facto de terem vindo a público os primeiros relatórios do Comité Internacional da Cruz Vermelha e do Catholic Relief Services, que, apesar dos constantes apelos para actuarem em Timor-Leste, só o puderam fazer quase quatro anos depois da invasão, relatórios estes que estimam que cerca de 1/3 da população pereceu em virtude da guerra e que muitos mais milhares morrerão nos “campos de acolhimento” devido à fome e doenças, não fez alterar a posição mundial. Por outro lado, os relatórios da Amnistia Internacional, que, finalmente, conseguiu permissão para entrar no território, são, para dizer o mínimo, arrepiantes, descrevendo a tortura generalizada dos presos, as mortes gratuitas, a fome e as doenças nas prisões. A situação em Timor foi descrita por vários observadores como de verdadeiro genocídio do povo maubere, genocídio este, para alguns (que afirmam que cerca de metade da população pereceu), que constituiu o pior caso após a 2.ª Guerra Mundial, chegando a ultrapassar o do Cambodja.
Surpreendentemente, contudo, se analisarmos a evolução do apoio mundial (de que as resoluções da Assembleia Geral parecem ser um bom índice), deparamos com a última resolução, praticamente processual (querendo eu afirmar com isto que há uma remissão de competências para outros órgãos, não sendo ela propriamente o lugar onde se afirma substantivamente nenhuma posição, sendo de notar que o direito à autodeterminação já não consta do seu texto), que consegue apenas 50 votos a favor sendo 46 os votos contra e 50 as abstenções. Percebe-se, pois, a razão por que não houve propostas de resoluções posteriormente. Portugal, contudo, não desistiu, passando a centrar os esforços na diplomacia e, em parte, posteriormente, nas instâncias comunitárias e europeias.
Porque será, então, que, apesar da situação não ter melhorado em Timor-Leste, a série de resoluções mostra, não só um apoio decrescente, mas também uma evolução de conteúdo um pouco inquietante (autodeterminação/problema humanitário/cáracter processual)?
Penso que há razões mais profundas, de cariz estrutural, sobretudo ao nível das nossas estruturas orgânicas internacionais, mormente a das Nações Unidas, e ao nível das estruturas conceptuais internacionais, mormente em relação à extrema amplitude e fluidez do conteúdo do conceito de autodeterminação, mas elas fazem parte dum estudo longo que fiz no passado e não me parecem possíveis de resumir em poucas palavras.
Assim, debruçar-me-ei sobre outra categoria de causas, mais imediatas e visíveis, notando apenas que não as considero como a raiz do problema.
Vejamos, pois, a posição da Indonésia na cena mundial. Tendo sido uma colónia holandesa até 1949, ano em que acedeu à independência, goza, em princípio, da simpatia, ou, pelo menos, da compreensão, da maioria dos povos em vias de desenvolvimento, quase todos eles anteriores colónias, que constituem hoje o grosso dos membros das Nações Unidas. O facto de ter sido membro fundador do Movimento dos Não-Alinhados só vai, naturalmente, reforçar esta posição. Para além disso, a União Soviética e os estados da Europa Oriental, então sob sua influência, não tinham, pela mesma razão, qualquer intenção de hostilizar esta antiga colónia. Aliás, a União Soviética desinteressou-se quase que completamente do caso, não havendo na sua imprensa quase que nenhuma referência a Timor-Leste. Mesmo a República Popular da China, cujo envolvimento com a FRETILIN era mais acentuado, não lhe dedicou muita atenção.
A Indonésia possui, ainda, a maior população muçulmana do mundo, pelo que conta os países árabes entre os seus mais chegados aliados. Por outro lado, tem um regime de direita é produtora de petróleo, mantém relações económicas com a maioria dos países industrializados e apresenta um elevado índice de investimento estrangeiro, sendo numerosas, entre outras, as companhias americanas e japonesas que operam no seu território. Estes interesses económicos foram decisivos para o comportamento destes e outros estados exportadores de capital, tendo os Estados Unidos reconhecido a integração logo em 1976. Finalmente, tem uma das maiores forças armadas do mundo, sendo de tal modo temida militarmente pelos seus vizinhos próximos que surge como o principal perigo potencial nos documentos do ministério da defesa da Austrália, um estado com uma grande extensão territorial e com uma população diminuta de apenas cerca de 15 milhões de habitantes.
Poder-se-á, no entanto, perguntar, se o Direito Internacional terá que ficar sempre subjugado aos condicionalismos da política mundial e não tem capacidade para ser um travão a situações como esta. No fim de contas, Portugal, em nome do povo maubere, tem armas jurídicas muito fortes nesse caso, a começar pela proibição do uso de força nas relações internacionais. Vamos, pois, tentar sumariar a série de argumentos de cariz jurídico que Portugal e a Indonésia têm vindo a apresentar ao longo dos anos em correspondência diplomática, conversações, perante os órgãos das Nações Unidas, etc., para perceber o porquê duma situação que se arrasta já há quase 16 anos.
Há, pelo menos, 4 grandes áreas jurídico-internacionais que se podem aplicar a este caso: o ordenamento relativo aos direitos humanos, as regras que regem a utilização da força armada, as normas referentes à possibilidade de uso de agressão armada e os preceitos respeitantes ao conceito de autodeterminação dos povos.
Estes dois últimos pontos merecem atenção especial, não só porque o debate entre as partes se tem fundamentalmente centrado neles, como também porque a controvérsia face aos dois primeiros é fundamentalmente factual, não tendo, por isso, para nós, tão grande interesse.
Assim, farei apenas uma referência muito breve a alguns diplomas jurídico-internacionais que foram e continuam a ser violados pelas autoridades em Timor-Leste. No campo dos direitos humanos há, sobretudo, a assinalar, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948 que, entre muitos outros, consagra o direito à vida, liberdade e segurança (art. 3.º), condena a tortura (art. 5.º) e a prisão arbitrária (art. 9.º), reconhece o direito a um julgamento justo (art. 10.º), a liberdade de circulação (art. 13.º) e de opinião e de expressão (art. 19.º), preceituando a não-discriminação (art. 2.º) e a igualdade perante a lei (art. 7.º). Estes e outros direitos estão igualmente consagrados nos Pactos Internacionais de 1966, respectivamente referentes aos Direitos Civis e Políticos e aos Direitos Económicos, Sociais e Culturais, afirmando ambas as convenções, logo no artigo 1.º, o direito dos povos à autodeterminação. De referir, ainda, a Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio, de 1948, que tem como objecto um dos poucos crimes que, pela sua extrema gravidade, origina a responsabilidade internacional dos seus autores.
No campo das leis que regulam internacionalmente a condução de hostilidades (e que, na sua maioria, se aplicam também às guerras civis, o que não exime a Indonésia de responsabilidade ainda que esta invoque que a guerra contra a resistência é um assunto interno), podem citar-se, entre muitas outras, as quatro Convenções de Genebra de 1949 para a protecção de soldados e marinheiros doentes e feridos, dos prisioneiros de guerra e da população civil.
Como já foi referido, o debate centrou-se, no entanto, fundamentalmente à volta de outros conceitos: a agressão armada e a autodeterminação.
Quanto ao primeiro, face ao ataque armado da Indonésia, a 7 de Dezembro de 1975, é relativamente fácil de contrapor o n.º 4 do art. 2.º da Carta das Nações Unidas (“Todos os Membros deverão abster-se, nas suas relações internacionais, da ameaça ou uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer estado, ou de qualquer outra acção incompatível com os Propósitos das Nações Unidas”) que vem expressamente consagrar um dos pilares básicos sobre que assenta todo o ordenamento jurídico do pós-guerra e que aflora várias vezes na Carta, designadamente no Preâmbulo e no n.º 1 do art. 1.º.
A Indonésia nunca veio afirmar que a sua acção não se tinha cifrado no uso da força, até porque o conceito de agressão ficou consagrado, de modo relativamente claro, na res. 3314, aprovada pela Assembleia Geral em 1974, cabendo este tipo de acção perfeitamente nesse conceito.
No entanto, a Indonésia utilizou, e continua a utilizar, vários argumentos a seu favor, servindo-se, para isso, das excepções ao art. 2.º (4) consagradas na Carta. Assim, veio invocar, por vezes, a ideia de legítima defesa (art. 51.º) em relação a ataques armados, que afirmou existirem contra o seu território e que partiam da fronteira com Timor Ocidental. Estatui o art. 51.º: “Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente de legítima defesa individual ou colectiva se ocorrer um ataque armado contra um Membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha adoptado medidas necessárias para a manutenção da paz e segurança. As medidas que forem tomadas pelos Membros no exercício deste direito de legítima defesa serão imediatamente comunicadas ao Conselho de Segurança e não deverão, de maneira nenhuma, prejudicar a autoridade e a responsabilidade que a Carta atribui ao Conselho de Segurança para actuar, a qualquer altura, do modo que considerar necessário para manter ou restaurar a paz e segurança internacionais”.
Para além das dúvidas que possam surgir relativamente à verdade factual invocada, pode, pelo texto do artigo, verificar-se que a Indonésia não cumpriu o processo obrigatório de comunicação ao Conselho de Segurança, tendo, até, sucedido precisamente o contrário, já que desrespeitou abertamente as resoluções aprovadas por este órgão. Mas mesmo considerando que não se levantavam estas objecções, seria sempre de invocar um princípio geral de Direito Internacional que se aplica a todos os seus ramos: a ideia de que a resposta tem que ser proporcional ao mal sofrido. E fácil de ver que a resposta da Indonésia aos ataques fronteiriços, que invocou, tem uma dimensão muito mais vasta, traduzindo-se na ocupação permanente de todo um território, situação esta nitidamente ilegal e muito mais grave, por exemplo, que a situação (ilegal, segundo o meu ponto de vista) de Israel face aos territórios ocupados.
É também frequente encontrar-se, na argumentação da Indonésia, a ideia de que a sua intervenção visou a garantia da segurança regional contra o perigo da existência dum foco do comunismo que desiquilibraria a situação de forças existente na zona. Embora este argumento apareça formulado em termos políticos, parece-me que se pode assimilar juridicamente ao conceito de legítima defesa preventiva, isto é, a ideia de que a defesa armada poderá surgir antes do ataque armado efectivo desde que exista um “perigo iminente”.
Têm corrido rios de tinta sobre o debate que opõe os que defendem a possibilidade da legitima defesa preventiva, e que empregam, entre outros, frequentemente, o argumento de que se trata dum direito “inerente”, anterior à própria Carta, e fazendo parte dos princípios gerais ou do costume internacional, e os que negam essa possibilidade, oferecendo para tal, não só razões de ordem político-social, designadamente a perigosidade de suposições subjectivas, mas também, entre outros, o facto do art. 51.º ser uma excepção ao art. 2.º (4), não devendo nunca, como tal, ser interpretado extensivamente. O debate continua, mas parece-me correcto afirmar que a maioria da doutrina internacional se opõe à possibilidade da legítima defesa preventiva.
Mas, e voltando ao nosso caso, ainda que fosse de admitir esse conceito, restar-nos-iam muitas dúvidas quanto aos factos (o governo da FRETILIN constituiria um “perigo iminente” para a Indonésia?), a certeza de que o processo exigido, por maioria de razão, de informação ao Conselho de Segurança, não fora cumprido e a desproporção da resposta da Indonésia.
Outro argumento repetidas vezes usado pela Indonésia tem sido o de que a sua intervenção foi consequência duma solicitação por parte do povo de Timor referindo-se, mais especificamente, ao pedido que parece ter sido feito pelo MAC, aquando da vitória da FRETILIN, depois da guerra civil. Novamente, embora não formulado em termos jurídicos, parece-me que o que se invoca aqui é a possibilidade de legítima defesa colectiva, prevista, como vimos, no texto do art. 51.º da Carta. Assim, um terceiro estado pode usar da força armada para com um estado agressor se o fizer a pedido e em defesa do estado-vítima, tendo sido com base nesta possibilidade que as regras da NATO e do Pacto de Varsóvia foram delineadas. Só que, segundo o Direito Internacional Consuetudinário, o pedido tem que partir do governo estabelecido e reconhecido internacionalmente e não dos partidos da oposição, como parece ter sido o caso aqui.
Finalmente, a Indonésia justificou, por vezes, a sua intervenção, como sendo um acto de humanidade, destinado a colmatar a situação caótica criada em Timor-Leste pelo que várias vezes designou como “negligência criminosa” de Portugal. Mais uma vez, estamos perante uma categoria que tem originado um debate aceso na doutrina internacionalista e que consistiria, basicamente, na possibilidade de um estado usar da força armada contra outro se este segundo estivesse a cometer atrocidades em relação à sua própria população. É que o texto do art. 2.º (4), segundo alguns, proíbe apenas “a ameaça ou uso da força contra a integridade territorial e a independência política de qualquer estado…”, deixando em aberto a possibilidade de intervenções visando outros fins. E, se acaso a comunidade internacional tem, mais ou menos pacificamente, aceitado intervenções estrangeiras em casos como o Cambodja ou o Uganda e, contemporaneamente, a das forças aliadas no norte do Iraque para proteger os curdos, o certo é que, mesmo os que defendem a intervenção humanitária, exigem que esta seja proporcional ao mal que pretende evitar, seja reduzida ao mínimo necessário para obtenção dos objectivos visados e termine prontamente, só podendo ocorrer quando vidas humanas estiverem em jogo e, para alguns, após notificação ao Conselho de Segurança. Os factos mostram-nos claramente que a Indonésia não pode utilizar este argumento para justificar a sua intervenção armada e, muito menos, a sua permanência em Timor-Leste.
Na realidade, a Indonésia, embora tenha várias vezes enunciado os argumentos acima referidos, centrou a manutenção da sua posição fundamentalmente em torno de outro conceito: a autodeterminação do povo de Timor.
Poderá parecer estranho, à primeira vista, que a sua principal linha de argumentação se sirva exactamente do mesmo conceito que os defensores da sua retirada tanto têm utilizado. Isto, claro, revela-nos muito sobre a estrutura dos conceitos em si, mas não é aqui altura própria para abordar esse tema. Vejamos, pois, como é possível estabelecer essas duas linhas de raciocínio tão diferentes, que se originam num conceito comum.
Portugal, em nome do povo de quem, internacionalmente, é ainda a potência administrante, poderia invocar a Carta das Nações Unidas que, por duas vezes, refere expressamente o direito dos povos à autodeterminação (arts. 1.º (2) e 55.º) e os capítulos XI (“Declaração relativa aos Territórios sem Governo Próprio”, territórios estes vulgarmente chamados colónias) e XII (“Sistema Internacional de Tutela”, sucessor do sistema de mandatos da Sociedade das Nações), que se lhe referem implicitamente. No entanto, poder-se-ia basear fundamentalmente nos articulados de duas resoluções aprovadas pela Assembleia Geral em 1960: res. 1514 (XV) (Declaração de Concessão de Independência aos Povos e Países Colonizados), que foi aprovada sem nenhum voto contra e com apenas 9 abstenções, e res. 1541(XV) (Princípios que Devem Guiar os Membros na Determinação da Existência da Obrigação de Transmissão de Informação Exigida pelo Art. 73.º e) da Carta).
Estas resoluções, que se podem considerar parte do Direito Internacional pela aceitação generalizada de que foram objecto, vieram desenvolver significativamente o articulado da Carta e serviram de base ao grande movimento da descolonização, particularmente importante na década de 60. A primeira vem, basicamente, afirmar que todos os povos têm direito à autodeterminação e que a sujeição de povos ao domínio estrangeiro constitui a negação de direitos humanos fundamentais, contraria a Carta das Nações Unidas e é um impedimento à paz e segurança mundiais. Proíbe, ainda o uso da força para impedir que um povo dominado possa atingir a independência A segunda destas resoluções afirma basicamente, que a apresentação de informação relativamente à colónias é um dever jurídico internacional, consagrado no art. 73.º e) da Carta, fornecendo ainda os indicadores para inclusão de determinado território na categoria de colónia (prima facie, sê-lo-á se separado geograficamente do estado que o administra e se distinto étnica e/ou culturalmente deste). Esclarece, ainda, que a autodeterminação pode ter como consequência, não apenas a independência mas também a associação livre com outro estado ou mesmo a integração, exigindo para estas duas últimas opções um processo próprio de manifestação da vontade.
Assim, pareceria fácil uma defesa baseada no direito do povo maubere à autodeterminação, direito esse ainda não exercido.
Contudo, a Indonésia apresentou insistentemente, como ainda hoje o faz, o argumento de que o povo de Timor exerceu o seu direito de autodetemminação através da integração na Indonésia. Para tal, invocou, como provas, o pedido de ajuda que o MAC teria feito após a vitória da FRETILIN, a resolução da Assembleia Popular Regional no sentido da integração e as petições enviadas, no seguimento desta resolução, ao presidente Suharto e ao parlamento indonésio. Se acaso a documentação pode impressionar num meio diplomático ou político, certamente o mesmo não sucederia se um órgão judicial dela se ocupasse, já que a res. 1541(XV), no Princípio IX do seu Anexo, prescreve: “A integração tem que ser resultado das seguintes circunstâncias:
a) O território a integrar deve ter atingido um grau avançado de governo próprio, com instituições políticas livres, para que os seus povos tenham capacidade para fazer uma escolha responsável, através de processos, de todos conhecidos, e democráticos;
b) A integração deve ser o resultado da vontade, livremente expressa, dos povos do território, actuando com perfeito conhecimento da mudança do seu estatuto territorial, e tendo as suas intenções sido expressas através de processos democráticos, de todos conhecidos, conduzidos imparcialmente e baseados num sufrágio universal de todos os adultos. As Nações Unidas poderão, quando o considerarem necessário, fiscalizar estes processos”.
Como é óbvio, o processo de integração de Timor não tem quase nada que ver com o processo exigido legalmente. O MAC era apenas um grupo de refugiados políticos e a Assembleia Regional um corpo de 28 deputados nomeados pela Indonésia tendo apenas cinco deles sido eleitos por grupos restritos apoiantes das novas autoridades.
Mas a Indonésia tem também insistido na ideia de que o povo maubere pretendia a integração já que existiam laços profundos com o povo indonésio, não só históricos (invocando os antigos impérios pré-coloniais de Srivijaya e Majapahit, que abrangeriam toda a região) como também étnicos e culturais, para além da contiguidade geográfica. Este tipo de argumento tem aparecido frequentemente entre povos vizinhos (veja-se, por exemplo, a sua invocação pela União Indiana aquando da anexação de Goa, pela Argentina em relação às Falklands/Malvinas, e, mais recentemente, pelo Iraque face ao Kuwait) e nunca foi aceite pela maioria da doutrina internacional (nem pela jurisprudência nem pela prática dos estados). Mas, ainda que este argumento tivesse algum significado jurídico, parece que a História não o acompanha totalmente, pois, segundo afirmam vários historiadores, os antigos impérios nunca englobaram o território de Timor-Leste, sendo este nitidamente distinto, em termos culturais, da Indonésia (ou da cultura javanesa, que oficialmente predomina) pois tanto a influência hindu, responsável pela introdução da escrita em Java, como a muçulmana, responsável pela religião, não se fizeram praticamente sentir em Timor-Leste. Para mais, este território esteve sujeito à influência portuguesa que, se não foi muito profunda em cada momento, foi, sem dúvida, muito longa. Etnicamente, parece que o povo maubere é muito mais aparentado com os melanésios (sendo a estrutura social e outros aspectos culturais muito semelhantes aos da Papua por exemplo) que com a etnia malaia, predominante em Java.
Interligado com o argumento anterior, pode observar-se que a Indonésia invoca, por vezes, nas suas declarações, o conceito de “integridade territorial” para justificar a sua presença em Timor-Leste, já que este território é tido como parte integrante do seu estado. Embora nem sempre explicitamente, a Indonésia pode estar a pretender invocar o parágrafo 6 da res. 1514 (XV), que estatui: “Toda a tentativa destinada à destruição parcial ou total da unidade nacional e da integridade territorial de um país é incompatível com os propósitos e princípios da Carta das Nações Unidas”. Assim, a linha de argumentação é a de que a Indonésia pré-colonial englobava Timor-Leste, não podendo este território opor-se agora a essa integridade territorial, sendo a solução da independência uma violação da “unidade nacional”. Se acaso os dados históricos confirmassem a posição da Indonésia, este argumento poderia impressionar. Só que esta seria uma interpretação extremamente tortuosa do referido parágrafo. Os trabalhos preparatórios, as declarações feitas aquando da sua aprovação e, subsequentemente, a Carta da Organização de Unidade Africana (designadamente, o seu art. 3.º) e a Carta Africana dos Direitos Humanos, que contém disposições semelhantes, apontam para uma interpretação diferente: a razão de ser desta disposição é meramente a de permitir aos novos estados recém descolonizados a manutenção a sua unidade nacional após o exercício do direito de autodeterminação em relação à potência colonizadora. Especialmente em África com a estrutura tribal geralmente distinta das fronteiras estaduais estabelecidas, problemas como os do Katanga ou do Biafra não tardaram a surgir, pretendendo-se, por isso, retirar a base jurídica à invocação feita por esses movimentos do direito de autodeterminação. Totalmente diferente é a posição de Timor-Leste face à Indonésia devendo notar-se que, num caso de mais fácil assimilação, como era o dos enclaves portugueses na Índia, a invocação deste argumento por este estado, perante o Tribunal Internacional de Justiça, no caso do direito de passagem por território indiano, não foi bem sucedida.
Por último, talvez seja apenas de salientar que a Indonésia afirmou várias vezes que a autodeterminação em Timor-Leste não poderia nunca conduzir à independência política mas que, face ao desinteresse de Portugal, teria que necessariamente se traduzir na integração na Indonésia visto Timor-Leste ser um território extremamente subdesenvolvido, sem viabilidade económica para se manter como sujeito de Direito Internacional. Mesmo que se concorde com a afirmação no plano dos factos, o que, face às riquezas naturais de Timor, pode ser discutível, não tem esta qualquer suporte jurídico pois, não só nunca foi este requisito exigido pelo Direito Internacional para a existência dum estado, como, a partir da res. 1514 (XV), foi expressamente afastado pelo seu parágrafo 3, que estatui: “A inadequação da preparação política, económica, social ou educacional não deve nunca servir como pretexto para retardar a independência”.
Percorremos, assim, sinteticamente, os principais aspectos duma argumentação que se arrasta já há quase 16 anos, em círculos diplomáticos, em debates perante órgãos políticos internacionais, em declarações de governos, na doutrina e, num futuro próximo, em alegações perante um órgão judicial embora como aspecto lateral. Entretanto, a resistência mantém a sua penosa luta agora já não em nome dum partido ou ideologia mas, sobretudo desde 1983, ano em que a UDT e a FRETILIN se coligaram de novo, em nome duma nação que tem o direito de ser lembrada por um mundo que, afinal, acabou por conseguir a independência da Namíbia prepara-se para testemunhar a solução para o problema do Sara Ocidental e condenou tão vivamente a recente invasão do Kuwait.
NOTA: Devido à escassez de tempo de que dispus para escrever este texto (cerca de dois dias) e, sobretudo, devido à natureza da publicação em que se insere, dispensei-me de fazer notas. Assim, apesar de o ter escrito de memória, com a ajuda de alguns tópicos que tinha anotado, gostaria de fazer referência a algumas obras que foram fundamentais na aquisição de conhecimentos: para além dos materiais das Nações Unidas, de importância primordial, queria salientar, quanto ao aspecto factual, as obras de James Dunn Timor — a People Betrayed (Jacaranda Press, Milton, QLD, 1983) e de Adriano Moreira O Drama de Timor — Relatório da ONU sobre Descolonização (Intervenção, Lisboa, 1977) e, quanto aos aspectos jurídicos, o excelente artigo de Roger Clark “The “Decolonization” of East Timor and the United Nations Norms on Self -Determination and Agression” 7 Yale Journal of World Public Order 2, 1980-1981.
*Prof. Dr.ª Paula Escarameia, docente de Direito Internacional Público Geral e Regional, do Curso de Direito da UAO. Artigo publicado na edição de “O Direito” de Maio de 1991. A Dr.ª Paula Escarameia foi, desde 1994, conselheira jurídica de Portugal junto da Organização das Nações Unidas em Nova Iorque.
Artigo publicado na edição de “O Direito” de Maio de 1991.