Um licenciado em direito, com curso concluído em 2004, pela Universidade de Ciência e Tecnologia (UCTM) que, em Junho de 2009 obteve aproveitamento no Curso de Introdução ao Direito de Macau, com a duração de três quadrimestres, ministrado pela Faculdade de Direito de da Universidade de Macau requereu, em Outubro de 2009, à Associação dos Advogados de Macau (AAM) a inscrição na Associação. Não tendo havido decisão expressa desse pedido, o licenciado, em 23 de Dezembro de 2009, interpôs recurso contencioso contra o indeferimento tácito da AAM.
Entretanto a Direcção da AAM indeferiu, por deliberação de 15 de Dezembro de 2010, por unanimidade o pedido de inscrição apresentado pelo referido licenciado.
A AAM impediu o licenciado de se candidatar ao estágio de advocacia argumentando, por exemplo, que as qualificações académicas do recorrente não o habilitavam para o exercício da advocacia na RAEM já que o curso de direito da UCTM não correspondia a uma licenciatura em direito de Macau, nem a AAM o reconhecia para efeitos de admissão ao estágio de advocacia, uma vez que considerava que o n.º 1 do artigo 3.º do Regulamento Administrativo n.º 26/2003 (verificação de habilitações académicas), de 25 de Agosto, lhe conferia o poder discricionário de verificação de habilitações académicas para efeitos de acesso à advocacia.
O licenciado pela UCTM desistiu do processo de indeferimento tácito e, em 27 de Janeiro de 2011, interpôs recurso contencioso para o Tribunal Administrativo (TA) da referida deliberação da Direcção da AAM, tendo obtido provimento. A Direcção da AAM interpôs recurso jurisdicional da sentença do TA para o Tribunal de Segunda Instância (TSI). O TSI, através do acórdão de 23 de Outubro de 2014, processo n.º 664/2013, anulou o acto recorrido (a deliberação da Direcção da AAM) por violação de lei com fundamento em violação de várias normas.
Em nota informativa do Tribunal de Última Instância relativa ao acórdão do TSI é referido que «nem o Estatuto do Advogado ora vigente, nem o Regulamento do Acesso à Advocacia anterior à introdução de alterações confere à AAM qualquer poder discricionário no âmbito do reconhecimento e verificação de habilitações académicas. Antes pelo contrário, ambos vinculam a AAM à aceitação de uma licenciatura em Direito desde que obtida em Macau, daí que não possa a AAM subverter a lei, impondo restrições aos requisitos legais para a inscrição como advogado estagiário».
Note-se que os Estatutos da UTCM foram aprovados pela Ordem Executiva n.º 20/2000 e o curso de licenciatura em direito da UCTM foi aprovado pela Ordem Executiva n.º 36/2000. Por outro lado, o Gabinete de Apoio ao Ensino Superior considerou que os alunos licenciados em direito pela UCTM tinham habilitações suficientes para se inscreverem como advogados estagiários e os licenciados em direito pela UCTM podem inscrever-se nos concursos abertos na função pública, bem como no curso de estágio de formação para magistrados judiciais e do Ministério Público.
Outro argumento apresentado pela Direcção da AAM para sustentar a sua decisão de não admissão ao estágio deste licenciado baseou-se no artigo 19.º do Regulamento de Acesso à Advocacia, publicado no BO n.º 50/1999 de 15/12/1999. Nos termos da versão original deste artigo, com a epígrafe «provas de admissão», apenas se exigiam provas de admissão ao estágio aos licenciados em direito por universidade que não fosse de Macau.
Na pendência do recurso interposto pelo licenciado pela UCTM, a AAM alterou o artigo 19.º do Regulamento de Acesso à Advocacia, conforme Aviso publicado no Boletim Oficial da RAEM n.º 45, II série, de 9 de Novembro de 2011, passando a exigir-se um exame de admissão ao estágio a todos os licenciados em direito com habilitações «reconhecidas» pela AAM.
A referida alteração serviu de argumento para que a AAM considerasse inútil o recurso apresentado pelo licenciado, invocando a alínea b), n.º 1 do artigo 118.º do Código do Procedimento Administrativo que estipula que têm eficácia retroactiva os actos administrativos «que dêem execução a decisões dos tribunais, anulatórias de actos administrativos, salvo tratando-se de actos renováveis».
O TSI não acolheu este argumento. Por exemplo, na pg. 54 do acórdão é referido o seguinte: ‘Podemos, assim, afirmar que «A execução das sentenças de anulação de actos administrativos não passa necessariamente em todos os casos pela prática de um novo acto e, quando passa, isso não significa que o acto anulado seja renovável, sendo que o acto é renovável nos casos em que os fundamentos que determinaram a anulação do acto não impedem a Administração de praticar um outro acto, de conteúdo igual ao do primeiro»[14] o que não parece ser o caso, pois não se compreende que a entidade recorrida fosse praticar um novo acto, pretensamente renovador do primeiro, ao abrigo de uma regulamentação que não existia ao tempo do acto renovado’.
A consequência da anulação, pelo TSI, da deliberação da Direcção da AAM que impediu o licenciado da UCTM de se candidatar ao estágio de advocacia é que a AAM vai ter de praticar novo acto, no prazo de trinta dias após o acórdão do TSI ter transitado em julgado, nos termos do artigo 174.º, n.º 1 do Código do Processo Administrativo Contencioso, decidindo o requerimento apresentado pelo recorrente de acordo com as normas existentes no momento de apresentação desse requerimento, nomeadamente as als. c) e d) do n.º 1 do artigo 4.º do Regulamento de Acesso à Advocacia e o artigo 19.º do Estatuto dos Advogados. Verificadas que sejam as referidas condições – sendo que a da al. a) já se deve considerar verificada por força do acórdão do TSI – deverá a Direcção da AAM praticar acto com o sentido de o admitir ao estágio de advocacia, sem o submeter a qualquer exame de admissão, porque sendo o candidato titular de licenciatura em direito por universidade de Macau, tal como prevê a al. a), a este não era exigido que se submetesse a qualquer exame.
O estágio de advocacia, um curso de formação profissional, que, nos termos do artigo 18.º, n.º 1 do Regulamento de Acesso à Advocacia, se «destina à preparação do ingresso dos estagiários no exercício da advocacia, através da aprendizagem e da prática progressiva das regras técnicas e deontológicas da profissão», integra uma componente escolar e uma prática. Tanto quanto sabemos, esta estrutura do estágio existe desde 1991, data da publicação do Estatuto do Advogado, e na componente escolar, os estagiários tinham aulas de deontologia profissional, registos e notariado e prática processual civil e penal. No fim de cada módulo eram sujeitos a exame escrito e a avaliação final (ver artigos 24.º e ss do referido Regulamento). Nos anos 2000 o estágio foi alterado, passando a componente escolar a integrar mais seis módulos (processo de inventário de menores, registo predial, registo comercial, processo administrativo e fiscal e custas), bem como, no que respeita à avaliação dos estagiários, um exame final escrito e oral e, como referimos anteriormente, um exame de admissão ao estágio, desde 2011. O curso de direito da Faculdade de Direito da Universidade de Macau começou a funcionar em 1988 e os primeiros licenciados em direito concluíram o curso em 1992. O curso de direito da UCTM iniciou-se em 2000.
O licenciado em direito que recorreu da deliberação da AAM foi patrocinado, oficiosamente, pelo advogado João Soares, docente da Faculdade de Direito da Universidade de Macau, entre 1989 e 2004, tendo leccionado, entre outras, as disciplinas de direito administrativo e introdução ao estudo do direito. A participação do professor João Soares no processo foi referida num artigo publicado no Jornal Tribuna de Macau, em 24 Julho 2013, denominado «Tribunal dá razão a licenciado da UCTM no acesso ao estágio de advocacia».
16/11/2014