Professor da disciplina de «Introdução ao Estudo do Direito» nos anos lectivos de 1988/1989 e 1989/1990, Jorge Fonseca esteve no lançamento do Curso de Direito em Macau. Mestre em Direito pertence aos quadros docentes da Faculdade de Direito de Lisboa e solicitou a rescisão do seu contrato no ano lectivo em curso.
Referindo-se ao lançamento do Curso de Direito considera:
«O Direito» – O senhor esteve no lançamento do «O Curso de Direito em Macau tendo sido o seu primeiro coordenador científico. Que reflexão lhe merece esse período?
Jorge Fonseca — Em primeiro lugar, devo esclarecer que não fui coordenador científico do Curso. Fui um dos coordenadores residentes. A coordenação científica foi da responsabilidade do Professor Doutor Oliveira Ascensão.
O primeiro ano do Curso, sendo uma fase de arranque e instalação, teria sempre que ser marcado por algumas dificuldades e insuficiências, a todos os níveis. Devo dizer, porém, que, para as condições existentes no momento, o balanço é clara e globalmente positivo.
Havia uma equipa docente qualificada e experimentada, seleccionada em concurso público, entre docentes das principais Faculdades de Direito portuguesas; a regência das disciplinas estava atribuída, salvo num caso, a mestres; havia coordenação científica e pedagógica, controlo científico dos programas e projectos de investigação científica; havia, igualmente, um clima e ambições universitários. Enfim, durante o primeiro ano foram lançadas bases seguras para a edificação de um verdadeiro curso superior de Direito, forja indispensável à formação de quadros superiores necessários ao Território, para os períodos de transição e pós-transição.
«D.» – Entretanto no ano lectivo de 89/90 abandonou o cargo de coordenador científico. Que motivos levaram a essa decisão?
J.F. — Seria difícil e fastidioso enumerar os motivos que me levaram à decisão de abandonar o cargo de coordenador do Curso. Devo dizer, em suma, que tal decisão foi imposta pelas mesmas circunstâncias que conduziram ao corte de relações entre a Faculdade de Direito de Lisboa e a Universidade da Ásia Oriental. Para além de dificuldades criadas artificialmente, ao bom e regular funcionamento do Curso, por responsáveis da U.A.O. e da sua tutela, não se concedendo o apoio necessário (e sempre solicitado) à prossecução dos objectivos que se pretendia alcançar a nível universitário; para além das incompreensões e, às vezes, dos inequívocos bloqueios à instalação do Curso (tornou-se claro que havia — e há — gente no Território que, em defesa de seus interesses pessoais e de grupo, não estava propriamente interessada em que houvesse em Macau um curso de Direito), uma espantosa, incompreensível e surpreendente atitude de deslealdade para com a F.D.L. levou esta a cessar a colaboração com a universidade local: num momento em que o Curso era de facto orientado e dirigido pela F.D.L., foi convidado para director científico um Professor da F.D.C., sem que qualquer satisfação tivesse sido dada à F.D.L. e ao, então, orientador científico.
«D.» — Na pergunta anterior estão implícitas as diferentes opiniões que surgiram, sobretudo, a nível directivo no Curso de Direito. Que opinião tem dessa fase que culminou com a saída dos docentes da FDL?
J.F. — A saída dos docentes da F.D.L. era a única resposta à ruptura provocada pelos responsáveis da U.A.O. De mais a mais, durante todo o ano lectivo de 1989/90, os docentes da F.D.L. foram objecto de uma vergonhosa campanha de calúnias, vítimas de perseguição constante, de humilhações e vexames, vendo o seu trabalho posto em causa, pública e repetidamente, da forma mais baixa que se possa imaginar. Foi um período de verdadeiro terror psicológico. Só com muito sentido das responsabilidades e por elevada consideração pelos alunos foi possível manter o funcionamento do Curso.
Recordo um pormenor significativo: em Julho de 1989, logo após a ruptura, eu e o dr. Vitalino Canas dispusemo-nos, a pedido insistente do Professor Machado da Silva, então Presidente da Comissão Instaladora do Curso, a contactar o Conselho Científico da F.D.L. para que este não pusesse entraves à nossa permanência em Macau, por mais um ano lectivo, a fim de ser assegurado o funcionamento das aulas. Tal desiderato foi atingido, numa altura em que um eventual abandono dos assistentes da F.DL. — seis num total de oito docentes — poria em sério risco a continuidade do Curso. Apesar disso nenhuma palavra de agradecimento foi ouvida. Pelo contrário, teve início a campanha de desacreditação do trabalho dos professores.
«D.» — A permanência em Macau, apenas dois anos, como professor do Curso de Direito em que medida influenciou a sua carreira profissional?
J.F. — Foi uma experiência nova, portanto, enriquecedora do ponto de vista pedagógico.
«D.» — O que acha do reconhecimento tácito, e com ressalva, pela Universidade Católica das habilitações em direito de uma nossa colega que concluiu o 2.º ano e a possibilidade de atitude idêntica pelas outras universidades portuguesas?
J.F. — Creio que se trata, indiscutivelmente, de um estímulo para os alunos. Mas isso não impede o reconhecimento de que estamos perante uma solução pontual. A questão mais geral do reconhecimento do Curso, que, aliás, se prende com o seu «merecimento» científico, está ainda por resolver.
«D.» — Teve a ideia de permanecer em Macau, como alguns dos seus colegas, prestando serviço na função pública?
J.F. — Essa possibilidade nunca esteve no meu pensamento. Por razões de índole pessoal e profissional, o meu regresso sempre esteve previsto, cumprido o período de dois anos de contrato com a U.A.O..
«D.» — De um ponto de vista social e cultural qual a sua opinião sobre Macau? Tem assim tantas «especificidades» ou elas são tantas quantos os interesses particulares de ocasião? Esta questão tem a perspectiva de o senhor conhecer bem as particularidades de uma transição política, uma vez que foi, após a independência, Secretário-Geral dos Negócios Estrangeiros de Cabo Verde.
J.F. — Não se pode ter a pretensão de, apenas com dois anos de permanência em Macau, «dissertar» sobre as especificidades sociais e culturais do Território. Elas são, todavia, bem visíveis.
Por relação com Cabo Verde, a situação de Macau é bem diferente. A transição em Cabo Verde foi uma transição de uma situação colonial para uma de afirmação de independência do país. Em Macau esta questão não se põe sequer. Do que se trata é de garantir uma gestão que contribua para uma afirmação de autonomia, o mais ampla possível, num quadro político bem determinado, do qual faz parte, inelutavelmente, esta verdade: o detentor do poder soberano é a China Popular. Nesta ordem de considerações, talvez se possa dizer que a luta do povo cabo-verdiano pela independência nacional, por comparação com a luta das gentes de Macau por uma sua afirmação individualizada, tenha sido relativamente menos difícil e complexa.
«D.» — Vai-se doutorar em Direito? Em caso afirmativo como vai conciliar essa opção com a intenção de regressar a Cabo Verde para participar activamente no processo de abertura política em curso?
J.F. — A resposta é afirmativa, se bem que, com a «turbulências» vividas em Macau, a preparação do doutoramento não tenha avançado grandemente nestes dois últimos anos. O regresso a Cabo Verde não será, pois, um abandono. Apenas um abrandamento do ritmo dos trabalhos. Quando muito uma sua suspensão temporária.
«D.» — Vai para Cabo Verde como membro do Movimento para a Democracia. Recentemente este movimento realizou um congresso onde definiu a sua linha política. Qual a orientação ideológica, a nível de programa, que resultou desse congresso?
J.F. — O MpD visa sobretudo a institucionalização de um regime de democracia em Cabo Verde, após quinze anos de vigência de um regime e de um sistema de poderes totalitário. Do totalitarismo possível, nas condições sociais e culturais específicas do país.
Em linhas gerais, poderei dizer-lhe que o MpD tem um programa para a democracia política e a defesa e a afirmação dos direitos, liberdades e garantias individuais, pondo-se fim, nomeadamente, à polícia política; para uma democracia económica em que coexistam e actuem, em condições de concorrência e igualdade, agentes económicos públicos, associativos e privados, devendo a actividade económica estatal resumir-se ao mínimo social e estrategicamente indispensável; para a afirmação do poder local e das regiões, sem os quais não é possível um desenvolvimento equilibrado, justo e harmonioso do país; para uma democracia cultural, partindo de que a cultura deve ser vista como uma componente de toda a vida social. Como, a um tempo, condição e resultante de uma afirmação efectiva e do aprofundamento da ideia democrática que o MpD propugna a todos os níveis da vida nacional. E um programa que visa a realização da justiça social, reduzindo-se o fosso hoje existente entre ricos e pobres.
Não nos preocupa, assim, em atenção, sobretudo, às concretas condições políticas em que se desenrola o processo de democratização do país, o rótulo ideológico do nosso programa. Mas, se quiser, dir-lhe-ei que, sendo um Movimento, onde cabem diferentes sensibilidades políticas (ao fim e ao cabo, todos os democratas), se tivesse que traçar uma bissectriz ela consubstanciar-se-ia no que hoje são os valores da social-democracia e do socialismo democrático.
«D.» — O Movimento para a Democracia vai participar em eleições multipartidárias que se irão realizar em breve em Cabo Verde. Como analisa o actual momento político e quais as perspectivas eleitorais de MpD?
J.F. — Vive-se hoje em Cabo Verde um ambiente de entusiasmo e de confiança no futuro só igualáveis, talvez, ao clima vivido no período que se seguiu imediatamente à independência.
O MpD tem sabido congregar à sua volta todo o descontentamento gerado por estes quinze anos de regime de partido único, estando solidamente implantado em todos os cantos do país.
Tudo aponta para uma vitória eleitoral a 13 de Janeiro próximo.
«D.» — O senhor é um entusiasta do desporto, nomeadamente do futebol, participando nos encontros entre alunos e professores. No jantar de despedida um colega que discursou referiu que íamos perder um grande professor de Direito Criminal tendo, de seguida, outro colega dado a achega que perdíamos também um grande defesa central! Como adepto do Vitória de Setúbal que medidas preconiza para acabar com as «cabazadas» que a equipa tem levado no actual campeonato?
J.F. — O Vitória necessita de um treinador competente e ambicioso… e um poucochinho mais de sorte. Estou convencido de que ainda estará a tempo de conseguir um lugar «europeu».
«D.» — Considera a hipótese de voltar a Macau como professor do Curso de Direito, ou como titular de um cargo político, ou como um professor amigo que assiste, a convite da nossa associação, à primeira cerimónia de graduação deste curso?
J.F. — O regresso a Macau é sempre uma hipótese. Quem sabe se na qualidade de professor do Curso de Direito.
Entrevista publicada na edição de «O Direito» de Janeiro de 1991